Após
a divulgação do Relatório elaborado pelo senador Roberto Requião, voltou ao
centro do debate nacional o projeto de lei que dá nova definição aos crimes de
abuso de autoridade e disciplina a apuração dessas condutas nas esferas cível,
administrativa e criminal.
Em
um vídeo encenado por aqueles que se autointitulam a “força-tarefa” da Operação
Lava Jato, procuradores da república conclamaram a população a se mobilizar
contra o projeto de lei em questão:
Postado
na página pessoal do facebook de Deltan Dallagnol, o vídeo é emblemático.
Embora tenha sido produzido com o intuito de incitar a população contra a
reforma da lei que disciplina o abuso de autoridade ― a atual legislação do ano
de 1965 é vaga, imprecisa e tolerante em relação às práticas que deveria
reprimir ― traduz, na realidade e com precisão, a urgente necessidade de se
estabelecer limites às pretensões autoritárias das engrenagens do Poder
Judiciário.
Afinal,
por que a proposta de regulamentar a apuração de abusos de autoridade seria uma
“verdadeira vingança contra a Lava Jato” (nas palavras do procurador Carlos
Fernando) ou uma tentativa de “calar de vez a força-tarefa da Operação Lava
Jato” (nas palavras do procurador Deltan Dallagnol)?
Não
há qualquer proposta para flexibilizar regras ou mitigar direitos fundamentais.
Trata-se apenas de uma tentativa de equilibrar o jogo. Atualmente, pune-se o
mero desacato com pena de seis meses a dois anos (artigo 331 do Código Penal),
enquanto aos atos de abuso de autoridade, disciplinados atualmente pela Lei
4.898/1965, é cominada pena ínfima de dez dias a seis meses. Não é só. Há uma
tendência recente de criminalização da Defesa mediante imputação do tipo penal
de embaraço às investigações, cuja altíssima pena é de três a oito anos de
reclusão.
Sobre
a aprovação da nova lei de abuso de autoridade, o procurador da república
Deltan Dallagnol declarou seus temores e incitou a população a se manifestar
nos seguintes termos: “Admitir isso é calar de vez a força-tarefa da Lava Jato
e o próprio juiz Sergio Moro. Não permita que isso aconteça. Se manifeste
contra essa lei. Viralize esse vídeo. (…) Vamos lutar juntos contra a
impunidade e contra a corrupção”.
O discurso é muito
significativo.
Em
primeiro lugar, expõe a lógica de combate maniqueísta em que os próprios atores
se inserem. “Força-tarefa”, título que o pequeno grupo se atribui, é
tradicionalmente o nome dado a uma unidade militar para combate em uma operação
específica. Os procuradores se colocam num cenário de guerra, incitando a luta
“contra a impunidade e contra a corrupção”. Impunidade e corrupção, mas apenas
quando interessa. Aparentemente, apenas quando imputadas a alguns seletivamente
escolhidos. Afinal, como fica a impunidade dos abusos cometidos dia após dia
pelas próprias estruturas do Poder Judiciário? Não seria a utilização do
processo penal com propósitos político-partidários também uma forma de
corrupção a ser apurada?
Em
segundo lugar, o discurso coloca o juiz Sérgio Moro ao lado da “força-tarefa”
como vítimas a serem caladas pela apuração dos abusos de autoridade. Ao que
consta, o magistrado ainda não desmentiu o apoio à fala destes procuradores,
tal como contestou em nota oficial o suposto apoio mencionado pelo senador
Roberto Requião ao projeto que altera a Lei de Abuso de Autoridade.
A
toda evidência, acusação e juiz não podem trabalhar em conjunto. Não formam uma
dobradinha de super-heróis na luta contra o mal. Não há mocinhos e vilões num
processo penal democrático, mas apenas um órgão que formula uma hipótese
acusatória a ser verificada concretamente por um magistrado imparcial, segundo
regras pré-estabelecidas por um poder legislativo autônomo. Subverter essa
estrutura mediante uma aliança entre acusação e julgador para interferir na
atividade legislativa de um dos poderes da república é o próprio sintoma de que
alguma coisa está fora de ordem.
Em
terceiro lugar, o vídeo explicita o jogo político que está na essência deste
processo penal de exceção. A apuração, que deveria ser de uma conduta (direito
penal do fato), torna-se da própria pessoa (direito penal do autor): um alvo
seletivamente taxado como inimigo. É sinal dos tempos sombrios que servidores
se valham da notoriedade proporcionada pelo cargo para agir como militantes
políticos, propondo-se explicitamente a mobilizar uma nação a “não permitir”
que um projeto de lei seja aprovado.
Esses
três aspectos sintetizam o discurso que torna clara a necessidade de se limitar
os abusos. Este modo de agir ― ao encarar o processo penal como o combate a um
inimigo, ao confundir maniqueisticamente juízes e procuradores com o lado do
bem numa luta contra o mal, ao conclamar aos seus fiéis seguidores que
“viralizem” a mensagem em atitude política que transcende todos os limites da
atuação jurídica ― tem contaminado todas as engrenagens da justiça criminal.
Não
mais se trata apenas de abusos pontuais e condutas individuais. O autoritarismo
contagiou todas as instâncias e esferas de atuação do Poder Judiciário. A
tradicional busca pela ampliação das garantias individuais a todos como
paradigma deu lugar à universalização do arbítrio como solução de todos os
males.
Das
conduções coercitivas absolutamente ilegais, passando-se pelos vazamentos
seletivos com propósito nitidamente políticos e pela manipulação política das
delações premiadas, até o reconhecimento explícito do Estado de Exceção por um
Tribunal brasileiro, temos uma nova arbitrariedade a cada dia.
É
preciso dizer o óbvio: o processo penal não é campo de batalha, o direito não
pode ser confundido com a política, as garantias individuais não são um luxo
renunciável em nome de uma suposta eficiência, o intérprete não tem
discricionariedade para interpretar a lei contra o próprio texto e os juízes
devem ser imparciais.
A
partir da indignação retratada no vídeo e que também ecoa na reação de
associações de juízes e policiais país afora, fica claro que os atores responsáveis
pelas engrenagens do sistema de justiça criminal temem que suas condutas sejam
apuradas por este mesmo sistema de justiça criminal. Por um lado, ninguém
assume a prática de abusos na apuração criminal. De outro, os próprios agentes
envolvidos na persecução penal têm receio de uma punição abusiva caso suas
condutas sejam efetivamente apuradas.
Ora,
se os agentes públicos confiam que estão agindo conforme a lei e acreditam
sinceramente no funcionamento da nossa justiça criminal (esse sistema do qual
eles se dizem defensores é o mesmo que apuraria seus eventuais abusos), não há
o que temer. A menos que o pau que bata em Chico não seja adequado para
Francisco…
Nesse
contexto, vale lembrar uma pesquisa antiga, mas muito interessante, do
Instituto Data Popular, que retrata à perfeição a hipocrisia nossa de cada dia:
o levantamento mostra que 92% dos brasileiros acreditam que há racismo no país,
mas somente 1,3% da população se considera racista.
Em
tempos de irresponsabilidade e total ausência de empatia, o problema está
sempre no outro. A mesma lógica retratada na pesquisa sobre o racismo
caracteriza a atitude dos servidores que compõem as engrenagens do sistema de
justiça criminal e militam contra a apuração do abuso de autoridade.
Se
claro está que o racismo existe, não menos evidente é a constatação de que para
o senso comum o racista é sempre o outro. Da mesma forma, os abusos são fartos
e cada vez mais frequentes no sistema de justiça criminal, mas o autoritário
parece sempre ser o outro. Não há quem se autorresponsabilize pelos abusos, mas
sobra nos próprios agentes públicos o temor de serem vitimados por uma punição
abusiva.
O
atual debate sobre a reforma da Lei de Abuso de Autoridade comprova que a
condição de investigado ou réu atemoriza os próprios investigadores, acusadores
e julgadores. Inocentes e cumpridores do dever funcional que são, o temor só
pode justificar-se pelo receio de serem punidos abusivamente pelo sistema de
justiça criminal, diante da acusação de eventuais abusos de autoridade em suas
condutas funcionais.
Não
há nada mais simbólico do autoritarismo na justiça criminal do que este
incômodo causado aos próprios investigadores, acusadores e julgadores diante da
possibilidade de serem colocados, a contragosto, no lugar do outro (investigados
e acusados, vítimas do autoritarismo da persecução penal), para apuração de
seus eventuais abusos. O receio que a máquina da justiça criminal causa às suas
próprias engrenagens comprova a falência do sistema e a necessidade urgente de
se construir novos caminhos.
*Fernando Hideo Lacerda
é Advogado criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola
Paulista de Direito (EPD), nos cursos de graduação e pós-graduação. Mestre e
doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP).
http://www.revistaforum.com.br/2017/04/20/quem-tem-medo-da-apuracao-dos-abusos-de-autoridade/
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