Caro
Fernando Henrique,
Assisti
hoje com surpresa ao vídeo que o senhor gravou recentemente, onde se refere ao
"bate-boca entre Jean Wyllys e Bolsonaro" e diz que ele foi
consequência da "divisão do Brasil provocada pelo PT". Eu pensei
muito se eu deveria responder, porque o senhor teve uma atitude corajosa e
generosa comigo recentemente, quando os aliados de Eduardo Cunha tentaram
suspender meu mandato e, apesar das diferenças políticas que existem entre nós,
o senhor me defendeu publicamente. Eu sou grato por esse gesto, mas não posso
me calar diante desse vídeo, até porque meu nome é mencionado nele para
sustentar uma análise que eu acho muito injusta.
A
retórica da "divisão do Brasil" — muito repetida desde o segundo
turno das eleições de 2014 — aparece na América Latina sempre que um governo,
mesmo sem questionar as bases do modelo econômico neoliberal, desenvolve políticas
mais ou menos intensas de redistribuição da renda e melhora a qualidade de vida
dos mais pobres, ou amplia os direitos de diferentes parcelas da população
antes excluídas. Quando um governo faz isso, é acusado de "dividir"
seu país. Mas a verdade é que nossos países já estavam divididos há séculos!
Sim,
o Brasil está dividido. Em primeiro lugar, pela divisão de classes própria do
capitalismo, que, em sua versão brasileira, está marcado pela herança
escravocrata que nos dividiu — a princípio literalmente e, depois,
metaforicamente — em "casa grande e a senzala".
Ora,
segundo o censo do IBGE de 2010, os 10% mais ricos da população ganharam,
naquele ano, 44,5% do total de rendimentos; enquanto os 10% mais pobres
receberam menos de 1,1%. Ou seja, quem está na faixa mais pobre precisaria
poupar a totalidade de seus recursos durante três anos e três meses para
acumular a renda média mensal dos que pertencem à faixa mais rica!
E
esses dois "brasis" — o da casa grande e o da senzala — correspondem
também a outras divisões igualmente históricas: o país branco e o preto; o do
sul-sudeste e o do norte-nordeste; o do asfalto e o da favela; o dos jardins e
da periferia; o da empregada doméstica e o da patroa. A geografia de nossas
cidades — "cidades partidas", para usar a expressão de Zuenir Ventura
em livro nada recente e anterior à chegada do PT ao governo federal — está
marcada por uma divisão tão evidente quanto naturalizada. No Rio de Janeiro,
por exemplo, essa divisão tem uma expressão horizontal — materializada no túnel
Rebouças, que divide a cidade em zonas sul e norte — e outra vertical, em que a
favela no morro é uma outra cidade dentro da cidade, com diferentes
investimentos e serviços públicos e até leis.
Somos
um país profunda e historicamente dividido e ainda vivemos numa
"Belíndia", com uma parte pequena da população vivendo como na
Bélgica e outra muito maior vivendo como na Índia; mas esta divisão não é uma
novidade introduzida pelo PT. Ao contrário, os governos petistas trilharam,
apesar de todas as suas deficiências, um lento caminho de
"reunificação" que estendeu a cidadania a milhões de pessoas.
O
país está dividido também por outras linhas que a direita (por seu
conservadorismo) e parte da esquerda (por uma leitura anacrônica do marxismo
que secundariza todas as formas de opressão que não sejam a de classe) têm
enormes dificuldades de enxergar. Trata-se de uma divisão que não é econômica,
mas tem a ver com outras posições de sujeito, como a orientação sexual, a
identidade de gênero e a cor da pele, entre outras. E nosso país também está
dividido pela ação de aqueles que, ao mesmo tempo que defendem um Estado mínimo
no que diz respeito à economia, que permite que as desigualdades de classe se
radicalizem, querem também um Estado todo poderoso no que diz respeito aos
comportamentos e às crenças, tutelando a cama dos adultos, o útero das mulheres
e impondo os dogmas morais de uma religião. Com relação a essa segunda divisão,
os governos do PT não ajudaram muito, porque se aliaram com setores fundamentalistas,
como a direita também faz.
O
Brasil está dividido entre homens e mulheres — estas recebem menores salários;
têm menos chances de chegar a posições de poder; sofrem a violência de gênero e
têm seus direitos sexuais e reprodutivos negados. Está dividido entre
heterossexuais e "dissidentes sexuais" (LGBTs) — estes últimos têm
inúmeros direitos civis negados; são alvo de discursos de ódio por parte de
políticos e pastores fundamentalistas; sofrem violência e bullying desde
crianças e são espancados e mortos a cada dia em crimes motivados por ódio.
Está dividido entre cristãos e adeptos de religiões minoritárias (incluindo as
de matriz africana) e ateus — os dois últimos grupos sofrem as consequências da
crescente eliminação da laicidade do Estado, que pretende impor uma religião
oficial e um código moral dogmáticos que resulta da leitura fundamentalista do
texto bíblico. Está dividido entre brancos e não-brancos desde a época da
escravidão. E por aí vai...
Para
reduzir essas desigualdades, precisamos ultrapassar os limites impostos pelos governos
aliados à elite econômica e financeira; às corporações comerciais e aos
partidos políticos fisiologistas e fundamentalistas religiosos, que asseguram a
famigerada "governabilidade", hoje como nos governos anteriores.
Por
isso, a crítica que nós que nos colocamos à esquerda do PT fizemos a esses
governos foi exatamente a oposta ao discurso do seu partido e de boa parte da
mídia: a conciliação entre os dois brasis não vai nascer do retrocesso na
justiça social, nem da privatização de estatais em favor dos lucros do livre
mercado (em especial, do livre mercado financeiro), que assegura privilégios a
uma casta; a conciliação entre os dois brasis vai nascer justamente da
combinação de desenvolvimento econômico sustentável com a extensão da cidadania
que fez nascer — e tanto irrita — o antipetismo.
Precisamos
unir o Brasil, sim. Mas essa união só será possível quando acabarmos com as
fronteiras que produzem exclusão e privilégio. Se de algo o PT é culpado não é
de ter dividido o país, mas de ter feito muito menos do que muitos de nós
esperávamos para uni-lo. E o governo Temer está destruindo o muito ou pouco que
foi feito!
Por
último, apenas um esclarecimento. Não houve bate-boca nenhum no dia da votação
do impeachment. Houve um deputado que homenageou um torturador que enfiava
ratos na vagina das mulheres, e esse mesmo deputado, quando eu fui proferir meu
voto, começou a me insultar, a me chamar de veado, queima rosca e outras
expressões chulas e ofensivas. Não é a primeira vez que ele insulta, agride e ameaça
colegas e jornalistas. E dessa vez, pela primeira vez, eu reagi, no calor do
momento, depois de ter sofrido seis anos de assédio moral, insultos, calúnias e
ameaças. O senhor não pode me julgar por uma violência que não sofreu.
Atenciosamente,
Jean Wyllys
https://www.facebook.com/jean.wyllys/photos/a.201340996580582.48122.163566147024734/1385138488200821/?type=3&theater
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