sexta-feira, 3 de março de 2017

TOTALITARISMO: 1984 - 2017. Por Nirlando Beirão

O Grande Irmão traz nos cartazes onipresentes o bigodão de Stalin. O Partido, guardião do “Ingsoc” (de inglês e socialismo), vigia corpos, corações e mentes. O adversário a ser odiado, o renegado Emmanuel Goldstein, traidor do Partido, com seu rosto “judaico, magro, com um pequeno cavanhaque” e a voz que lembra “o balido de uma ovelha”, é, obviamente, uma alusão a Leon Davidovich Bronstein, aliás, Trotski.

Os dissidentes são “vaporizados” em expurgos que não deixam traços nem memória. A única verdade é a que emana do poder – e ela pode, claro, ser o tempo todo corrigida e reescrita. A democracia é o regime que enfraquece o homem. A ciência só faz sentido se atuar em prol da dominação.

Ao publicar seu arrepiante 1984, no verão de 1949, George Orwell, nascido Eric Arthur Blair, facilitou a imediata analogia com o totalitarismo soviético e as primeiras leituras vieram a ressaltar, quando a Guerra Fria começava a ferver, o até certo ponto inesperado realinhamento ideológico de alguém que tanto se interessara antes pela sorte dos deserdados do capitalismo britânico (em A Caminho de Wigan, de 1937, por exemplo) e que chegara a empunhar armas ao lado dos militantes antifascistas na Guerra Civil Espanhola (Homage to Catalonia, de 1938).

Nos poucos meses que teria, da publicação de 1984 até sua morte, em janeiro de 1950, Orwell dedicou-se a desfazer a impressão. Em carta endereçada a um dirigente sindical americano, afirmou que o romance “não foi concebido como um ataque ao socialismo ou ao Partido Trabalhista Britânico, do qual sou um entusiasta”.

As “perversões” mencionadas (expressão do autor) têm a ver tanto com o comunismo quanto com o fascismo. Leituras posteriores, como as de Christopher Hitchens, hermeneuta de Orwell, amaciaram a tese da desilusão ideológica. O totalitarismo que ele descreve, em sua versão mais tenebrosa, não está confinado a um mapa ou a uma história. Pode estar, aliás, hoje, agora, muito próximo de nós.

O venerando livro de Orwell disparou na lista de best sellers na Inglaterra, de dezembro de 2016 para cá. Com 1984, o público britânico sinaliza que o horror não tem data certa. Não é preciso muita imaginação para relacionar o boom nas vendas – e de leitura – à irrupção de Donald Trump na autoimposta figura de novo gendarme irritadiço do mundo e a vitória local, no Reino Unido, do movimento Brexit, que, ao decidir pelo afastamento em relação à Europa, proclama também uma ruptura com a tolerância, com o outro, com o diferente, com o exilado.

De fato, 1984 tem tudo a ver com 2017. O comunismo morreu (a não ser, claro, na imaginação paranoica de alguns fomentadores do ódio), mas a tentação autoritária persiste, aguça-se e triunfa com a adesão de uma classe média videotizada pela teletela da desinformação premeditada e agora propensa a estampar sua ignorância acachapante no gatilho violento das redes sociais.

Também na seara onde florescem Sergio Moro e Alexandre de Moraes, irmãos siameses no cultivo coletivo do que Orwell chamava de “insânia controlada”, no submundo regido pelo incentivo às delações desde que seletivas, politicamente orientadas, na associação entre o exercício do poder e a repressão às liberdades individuais, de culto, de se expressar sexualmente, de viver ao sabor de suas próprias convicções – em tudo e por tudo a profecia orwelliana (com direito até a este sombrio neologismo) fincou raízes no mundo em que vivemos. Os ingleses, ao reabilitarem a obra, exercem uma sabedoria tristemente irônica.

1984 descreve uma sociedade de profunda carestia, de gim vagabundo, cigarro mata-rato e pão dormido, em que só é salvo o estrato superior da nomenklatura partidária. Não é que o Estado não tivesse capacidade de ampliar os horizontes da prosperidade.

Mas a fartura distribuída configuraria a destruição de uma sociedade que tem de ser organicamente hierárquica. A desigualdade – e o capitalismo de mercado está aí para reafirmar sem o menor pudor – é operacional.

“Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante o que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferiria distinção.”

Numa sociedade em que a riqueza fosse igualmente distribuída, o poder iria escapar das mãos da casta privilegiada. “Tal sociedade não poderia ser estável.” Pois “se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler a aprenderia a pensar por si” e se voltaria contra a minoria privilegiada. “Uma sociedade hierárquica”, escreve Orwell, “só é possível na base da pobreza e da ignorância.” Ignorância é força – proclama o regime. O Brasil agradece a referência.

Entram aí em campo as ferramentas que sedimentam o status quo da opressão: a Novilíngua e a guerra permanente. A Novilíngua é o antídoto perfeito contra a crimideia, ou seja, a tentação, ainda que remota, nem sequer expressa em palavras, de pensar diferente da cartilha oficial.

O objetivo da Novilíngua não é apenas o de padronizar a linguagem; é o de subjugá-la ao seu limite ínfimo, de estreitar a gama de pensamento. A cada novo dicionário autorizado, mais vocábulos são expurgados. “No fim, tornaremos a crimideia literalmente impossível”, diz o redator do léxico. “Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência.”  

O aparato burocrático em sua integridade, com a Polícia do Pensamento à frente, está voltado, portanto, para o que em Novilíngua se chama crimedeter. É “a capacidade de deter, paralisar, como por instinto, qualquer pensamento perigoso”.

A vigilância vale para desde a mesma tenra infância. Às vezes, um involuntário espasmo nervoso pode denunciar o transgressor. “O crimedeter inclui o poder de não se perceberem analogias, de não conseguir observar erros de lógica, de se aborrecer ou se enojar por qualquer trem de pensamentos que possa tomar rumo herético.” Crimedeter – os justiceiros de Curitiba sabem muito bem o que Orwell está falando – significa promover a “estupidez protetora”.

A realidade, portanto, é proscrita. “Fatos alternativos”, como os define o staff de Donald Trump, triunfam na era da pós-verdade. No universo orwelliano, a falsificação cotidiana é realizada pelo Ministério da Verdade (assim como o Ministério da Fartura promove a fome e o Ministério do Amor encarrega-se da tortura).

Só um lunático para acreditar que a verdade pode desmascarar a fraude, diz o torturador ao torturado. “Crês que a realidade é algo objetivo, externo, que existe de per si. Acreditas também que é evidente a natureza da realidade. Mas eu te digo, Winston, a realidade não é externa. A realidade só existe no espírito, e em nenhuma outra parte. Não na mente do indivíduo, que pode se enganar. Só na mente do Partido, que é coletivo, é imortal. O que quer que o Partido afirme que é verdade, é verdade.”

Winston é o protagonista-vítima de 1984 e o torturador, O’Brien, é o colega de escritório com quem ele ingenuamente compartilhou sua malaise política e pessoal (e a inconfidência intolerável de manter uma amante também servidora do Partido).

Como traidor, delator e torturador, O’Brien expõe uma expertise sutil e uma inteligência cínica que nenhum Bolsonaro, nenhum Steve Bannon – o Darth Vader que assessora Donald Trump – haveriam de demonstrar. As didáticas palavras do torturador indicam que há lógica naquela loucura toda. A lógica exposta no lema – a liberdade é escravidão. O homem é, se não for subjugado, um bicho perigoso.

Todos os dias, o expediente da burocracia é interrompido e as teletelas orquestram, com a intensidade de futuras manifestações verde-amarelas, Os Dois Minutos de Ódio. Prenuncia o efeito selvagem do Twitter e das redes sociais.

Por toda a Oceania, pátria do Grande Irmão, a audiência se irmana num espetáculo descabelado de estupidez histérica. É preciso ter um inimigo à vista – os renegados da “Fraternidade” – e uma guerra em curso – contra a Lestásia ou a Eurásia, que se revezam nesse papel mesmo que tantos sejam os dissidentes e os impérios rivais sejam inimigos meramente fictícios.

Com certa regularidade, bombas caem, de fato, nos territórios dos “proles” – os miseráveis desprovidos de qualquer identidade social. Atribuem-se os ataques aos infiéis de turbante – desculpem, aos impiedosos lestasiáticos (ou, se for o caso, aos eurasianos). Winston desconfia que esta é a enésima “verdade” convenientemente manufaturada. Guerra é paz, proclama o lema. A ameaça externa cimenta a paz interna.

Estupidez Protetora

O regime não teme os “proles”. Apenas os ignora. “Entregues a si mesmos, continuarão, de geração em geração e de século a século, trabalhando, procriando e morrendo, não apenas sem qualquer impulso de rebeldia, como sem capacidade de descobrir que o mundo poderia ser diferente do que é.” Tão desprezíveis são os “proles” que, se o regime lhes concedesse o estatuto antigo do sufrágio universal, eles certamente votariam num opressor limpinho e escanhoado concebido em algum reality show da teletela.

A Semana do Ódio está a caminho e, com o prometido desfile de hordas furibundas de bandeiras desfraldadas, haveria de propiciar um interessante know-how aos piqueniques irados e indigestos dos patos canarinhos de agora. Freud explica – Orwell, também: “A privação sexual provocava a histeria, desejada porque podia ser transformada em febre guerreira e adoração dos chefes. Todo esse negócio de marchar para cima e para baixo, dar vivas e agitar bandeirolas é sexo que azedou”.

Abastecida a libido desviada, a Semana do Ódio robustece, desde Curitiba, perdão, à sombra da Polícia do Pensamento, a vigilância sobre os eventuais hereges – principalmente contra aqueles que nem sabem que hereges são, mas, quem sabe, poderiam vir a ser. A Polícia do Pensamento não busca fatos, provas – só convicções. As suas, naturalmente.

Uma palavra final do percuciente Orwell parece desvendar o método daqueles que fazem dos expurgos, das prisões, das perseguições, dos castigos, das denúncias gratificadas, dos interrogatórios, das torturas mentais e das condenações injustas seu estrepitoso meio de vida e seu espetáculo de autopromoção (“na Oceania não existe lei”, escreve Orwell. Daria para acrescentar o advérbio “também”). Vale a pena ouvir o que o vil, porém sincero O’Brien tem a dizer ao buscar a reeducação de Winston:

“Não nos contentamos com a obediência negativa, nem mesmo com a mais abjeta submissão. Quando finalmente te renderes a nós, deverá ser por tua livre e espontânea vontade. Não destruiremos o herege porque nos resiste; enquanto nos resiste, nunca o destruímos. Convertemo-lo, capturamos-lhe a mente, damos-lhe nova força. Nele queimamos todo o mal e toda alucinação; trazemo-lo para o nosso lado, não em aparência, mas genuinamente, de corpo e alma. Tornamo-lo um dos nossos antes de matá-lo. Nem mesmo no instante da morte podemos admitir um desvio. No passado, o herege caminhava para a fogueira ainda herético, proclamando sua heresia, nela se gloriando”.

A inquisição da Idade Média fracassou, observa o assecla do Grande Irmão. “Tinha por intuito erradicar a heresia e, por fim, só conseguiu perpetuá-la. Para cada herege queimado na fogueira surgiam milhares de outros.” Fica aqui o aviso.

https://www.cartacapital.com.br/revista/940/1984-2017




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