O
Grande Irmão traz nos cartazes onipresentes o bigodão de Stalin. O Partido,
guardião do “Ingsoc” (de inglês e socialismo), vigia corpos, corações e mentes.
O adversário a ser odiado, o renegado Emmanuel Goldstein, traidor do Partido,
com seu rosto “judaico, magro, com um pequeno cavanhaque” e a voz que lembra “o
balido de uma ovelha”, é, obviamente, uma alusão a Leon Davidovich Bronstein,
aliás, Trotski.
Os
dissidentes são “vaporizados” em expurgos que não deixam traços nem memória. A
única verdade é a que emana do poder – e ela pode, claro, ser o tempo todo
corrigida e reescrita. A democracia é o regime que enfraquece o homem. A
ciência só faz sentido se atuar em prol da dominação.
Ao
publicar seu arrepiante 1984, no verão de 1949, George Orwell, nascido Eric
Arthur Blair, facilitou a imediata analogia com o totalitarismo soviético e as
primeiras leituras vieram a ressaltar, quando a Guerra Fria começava a ferver,
o até certo ponto inesperado realinhamento ideológico de alguém que tanto se
interessara antes pela sorte dos deserdados do capitalismo britânico (em A
Caminho de Wigan, de 1937, por exemplo) e que chegara a empunhar armas ao lado
dos militantes antifascistas na Guerra Civil Espanhola (Homage to Catalonia, de
1938).
Nos
poucos meses que teria, da publicação de 1984 até sua morte, em janeiro de
1950, Orwell dedicou-se a desfazer a impressão. Em carta endereçada a um
dirigente sindical americano, afirmou que o romance “não foi concebido como um
ataque ao socialismo ou ao Partido Trabalhista Britânico, do qual sou um
entusiasta”.
As
“perversões” mencionadas (expressão do autor) têm a ver tanto com o comunismo
quanto com o fascismo. Leituras posteriores, como as de Christopher Hitchens,
hermeneuta de Orwell, amaciaram a tese da desilusão ideológica. O totalitarismo
que ele descreve, em sua versão mais tenebrosa, não está confinado a um mapa ou
a uma história. Pode estar, aliás, hoje, agora, muito próximo de nós.
O
venerando livro de Orwell disparou na lista de best sellers na Inglaterra, de
dezembro de 2016 para cá. Com 1984, o público britânico sinaliza que o horror
não tem data certa. Não é preciso muita imaginação para relacionar o boom nas
vendas – e de leitura – à irrupção de Donald Trump na autoimposta figura de
novo gendarme irritadiço do mundo e a vitória local, no Reino Unido, do
movimento Brexit, que, ao decidir pelo afastamento em relação à Europa,
proclama também uma ruptura com a tolerância, com o outro, com o diferente, com
o exilado.
De
fato, 1984 tem tudo a ver com 2017. O comunismo morreu (a não ser, claro, na
imaginação paranoica de alguns fomentadores do ódio), mas a tentação
autoritária persiste, aguça-se e triunfa com a adesão de uma classe média
videotizada pela teletela da desinformação premeditada e agora propensa a
estampar sua ignorância acachapante no gatilho violento das redes sociais.
Também
na seara onde florescem Sergio Moro e Alexandre de Moraes, irmãos siameses no
cultivo coletivo do que Orwell chamava de “insânia controlada”, no submundo
regido pelo incentivo às delações desde que seletivas, politicamente
orientadas, na associação entre o exercício do poder e a repressão às
liberdades individuais, de culto, de se expressar sexualmente, de viver ao
sabor de suas próprias convicções – em tudo e por tudo a profecia orwelliana
(com direito até a este sombrio neologismo) fincou raízes no mundo em que
vivemos. Os ingleses, ao reabilitarem a obra, exercem uma sabedoria tristemente
irônica.
1984
descreve uma sociedade de profunda carestia, de gim vagabundo, cigarro
mata-rato e pão dormido, em que só é salvo o estrato superior da nomenklatura
partidária. Não é que o Estado não tivesse capacidade de ampliar os horizontes
da prosperidade.
Mas
a fartura distribuída configuraria a destruição de uma sociedade que tem de ser
organicamente hierárquica. A desigualdade – e o capitalismo de mercado está aí
para reafirmar sem o menor pudor – é operacional.
“Num
mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante o que comer, morassem
numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião,
desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade.
Generalizando-se, a riqueza não conferiria distinção.”
Numa
sociedade em que a riqueza fosse igualmente distribuída, o poder iria escapar
das mãos da casta privilegiada. “Tal sociedade não poderia ser estável.” Pois
“se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres
humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler a aprenderia a
pensar por si” e se voltaria contra a minoria privilegiada. “Uma sociedade
hierárquica”, escreve Orwell, “só é possível na base da pobreza e da
ignorância.” Ignorância é força – proclama o regime. O Brasil agradece a
referência.
Entram
aí em campo as ferramentas que sedimentam o status quo da opressão: a
Novilíngua e a guerra permanente. A Novilíngua é o antídoto perfeito contra a
crimideia, ou seja, a tentação, ainda que remota, nem sequer expressa em
palavras, de pensar diferente da cartilha oficial.
O
objetivo da Novilíngua não é apenas o de padronizar a linguagem; é o de
subjugá-la ao seu limite ínfimo, de estreitar a gama de pensamento. A cada novo
dicionário autorizado, mais vocábulos são expurgados. “No fim, tornaremos a
crimideia literalmente impossível”, diz o redator do léxico. “Todo o mecanismo
do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento como hoje o
entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é
inconsciência.”
O
aparato burocrático em sua integridade, com a Polícia do Pensamento à frente,
está voltado, portanto, para o que em Novilíngua se chama crimedeter. É “a
capacidade de deter, paralisar, como por instinto, qualquer pensamento
perigoso”.
A
vigilância vale para desde a mesma tenra infância. Às vezes, um involuntário
espasmo nervoso pode denunciar o transgressor. “O crimedeter inclui o poder de
não se perceberem analogias, de não conseguir observar erros de lógica, de se
aborrecer ou se enojar por qualquer trem de pensamentos que possa tomar rumo
herético.” Crimedeter – os justiceiros de Curitiba sabem muito bem o que Orwell
está falando – significa promover a “estupidez protetora”.
A
realidade, portanto, é proscrita. “Fatos alternativos”, como os define o staff
de Donald Trump, triunfam na era da pós-verdade. No universo orwelliano, a
falsificação cotidiana é realizada pelo Ministério da Verdade (assim como o
Ministério da Fartura promove a fome e o Ministério do Amor encarrega-se da
tortura).
Só
um lunático para acreditar que a verdade pode desmascarar a fraude, diz o
torturador ao torturado. “Crês que a realidade é algo objetivo, externo, que
existe de per si. Acreditas também que é evidente a natureza da realidade. Mas
eu te digo, Winston, a realidade não é externa. A realidade só existe no
espírito, e em nenhuma outra parte. Não na mente do indivíduo, que pode se
enganar. Só na mente do Partido, que é coletivo, é imortal. O que quer que o
Partido afirme que é verdade, é verdade.”
Winston
é o protagonista-vítima de 1984 e o torturador, O’Brien, é o colega de
escritório com quem ele ingenuamente compartilhou sua malaise política e
pessoal (e a inconfidência intolerável de manter uma amante também servidora do
Partido).
Como
traidor, delator e torturador, O’Brien expõe uma expertise sutil e uma
inteligência cínica que nenhum Bolsonaro, nenhum Steve Bannon – o Darth Vader
que assessora Donald Trump – haveriam de demonstrar. As didáticas palavras do
torturador indicam que há lógica naquela loucura toda. A lógica exposta no lema
– a liberdade é escravidão. O homem é, se não for subjugado, um bicho perigoso.
Todos
os dias, o expediente da burocracia é interrompido e as teletelas orquestram,
com a intensidade de futuras manifestações verde-amarelas, Os Dois Minutos de
Ódio. Prenuncia o efeito selvagem do Twitter e das redes sociais.
Por
toda a Oceania, pátria do Grande Irmão, a audiência se irmana num espetáculo
descabelado de estupidez histérica. É preciso ter um inimigo à vista – os
renegados da “Fraternidade” – e uma guerra em curso – contra a Lestásia ou a
Eurásia, que se revezam nesse papel mesmo que tantos sejam os dissidentes e os
impérios rivais sejam inimigos meramente fictícios.
Com
certa regularidade, bombas caem, de fato, nos territórios dos “proles” – os
miseráveis desprovidos de qualquer identidade social. Atribuem-se os ataques
aos infiéis de turbante – desculpem, aos impiedosos lestasiáticos (ou, se for o
caso, aos eurasianos). Winston desconfia que esta é a enésima “verdade”
convenientemente manufaturada. Guerra é paz, proclama o lema. A ameaça externa
cimenta a paz interna.
Estupidez
Protetora
O
regime não teme os “proles”. Apenas os ignora. “Entregues a si mesmos,
continuarão, de geração em geração e de século a século, trabalhando,
procriando e morrendo, não apenas sem qualquer impulso de rebeldia, como sem
capacidade de descobrir que o mundo poderia ser diferente do que é.” Tão
desprezíveis são os “proles” que, se o regime lhes concedesse o estatuto antigo
do sufrágio universal, eles certamente votariam num opressor limpinho e
escanhoado concebido em algum reality show da teletela.
A
Semana do Ódio está a caminho e, com o prometido desfile de hordas furibundas
de bandeiras desfraldadas, haveria de propiciar um interessante know-how aos
piqueniques irados e indigestos dos patos canarinhos de agora. Freud explica –
Orwell, também: “A privação sexual provocava a histeria, desejada porque podia
ser transformada em febre guerreira e adoração dos chefes. Todo esse negócio de
marchar para cima e para baixo, dar vivas e agitar bandeirolas é sexo que
azedou”.
Abastecida
a libido desviada, a Semana do Ódio robustece, desde Curitiba, perdão, à sombra
da Polícia do Pensamento, a vigilância sobre os eventuais hereges –
principalmente contra aqueles que nem sabem que hereges são, mas, quem sabe,
poderiam vir a ser. A Polícia do Pensamento não busca fatos, provas – só
convicções. As suas, naturalmente.
Uma
palavra final do percuciente Orwell parece desvendar o método daqueles que
fazem dos expurgos, das prisões, das perseguições, dos castigos, das denúncias
gratificadas, dos interrogatórios, das torturas mentais e das condenações
injustas seu estrepitoso meio de vida e seu espetáculo de autopromoção (“na
Oceania não existe lei”, escreve Orwell. Daria para acrescentar o advérbio
“também”). Vale a pena ouvir o que o vil, porém sincero O’Brien tem a dizer ao
buscar a reeducação de Winston:
“Não
nos contentamos com a obediência negativa, nem mesmo com a mais abjeta
submissão. Quando finalmente te renderes a nós, deverá ser por tua livre e
espontânea vontade. Não destruiremos o herege porque nos resiste; enquanto nos
resiste, nunca o destruímos. Convertemo-lo, capturamos-lhe a mente, damos-lhe
nova força. Nele queimamos todo o mal e toda alucinação; trazemo-lo para o
nosso lado, não em aparência, mas genuinamente, de corpo e alma. Tornamo-lo um
dos nossos antes de matá-lo. Nem mesmo no instante da morte podemos admitir um
desvio. No passado, o herege caminhava para a fogueira ainda herético,
proclamando sua heresia, nela se gloriando”.
A
inquisição da Idade Média fracassou, observa o assecla do Grande Irmão. “Tinha
por intuito erradicar a heresia e, por fim, só conseguiu perpetuá-la. Para cada
herege queimado na fogueira surgiam milhares de outros.” Fica aqui o aviso.
https://www.cartacapital.com.br/revista/940/1984-2017
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