O
contrato de incorporação imobiliária é um contrato de consumo[1] e, como tal,
submete-se aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90),
também regulado por lei especial, a Lei 4.591/64, a qual representou um grande
avanço para a regulação no setor imobiliário na época, ao tratar do tema da
promessa de compra e venda e da incorporação como forma de facilitar o acesso à
casa própria enquanto desejo a ser perseguido pela maioria da população
brasileira. Mas, ao contrário do que pode parecer, a lei especial de 1964 não
regulou o tema do distrato. Esse tema continua em debate no meio jurídico,
tendo como pano de fundo a denominada "crise do setor imobiliário",
pois, com o superendividamento dos consumidores, desemprego em alta e o
contexto de crise econômica vivenciada pelo país nestes últimos anos, muitos consumidores
enfrentam a dura realidade de ter que devolver os imóveis[2].
O
grande número de “devoluções” de imóveis pelos pretensos compradores,
desfazendo negócios que, pela lei especial, seriam irretratáveis, tem levado o
setor imobiliário a pedir a elaboração de uma medida provisória, sem que seja
necessário um maior aprofundamento de discussões na sociedade civil,
pretendendo impor regra que autorize a “retenção de até 80% dos valores pagos
pelos adquirentes”.
É
preciso pontuar que o artigo 53 do CDC veda cláusulas de decaimento, em que o
consumidor perde todos (ou quase todos) os valores pagos para aquisição da casa
própria[3], como a proposta em discussão pelo setor representante das
construtoras/incorporadoras. A análise do discurso a respeito da necessidade de
regular o distrato deve iniciar pelo questionamento do verdadeiro sentido de se
considerar irretratável o contrato de aquisição de propriedade por incorporação
imobiliária na Lei 4.591/64, bem como da suposta insegurança jurídica que o desfazimento
desses contratos estaria gerando no seio social. O escopo da lei da década de
1960, como se observa na leitura de seus dispositivos, foi a proteção do
adquirente-consumidor, trazendo, como decorrência, uma série de artigos a
respeito da necessidade de registro do incorporador e transparência na
consecução de seus negócios.
O
contexto histórico da lei especial sobre incorporações também revela que a
grande preocupação estaria em tutelar o adquirente em relação ao negócio
futuro, pois o bem imóvel ainda estaria por ser construído[4]. Veja-se que essa
preocupação não era infundada na época, considerando que o Decreto-Lei 58/37,
que trata sobre o loteamento e venda de terrenos para pagamento por prestações,
trouxe a regulamentação dos efeitos da promessa de compra e venda e adjudicação
compulsória para os adquirentes que, sem qualquer segurança jurídica, perdiam
imóveis em razão de cláusulas de arrependimento e compromissários vendedores
que não cumpriam com os contratos, sem gerar qualquer consequência como direito
real.
Deve-se
sublinhar que o Código Civil de 1916, principal instrumento legislativo para a
regulação dos atos da vida civil, como a realização de contratos, não previa
hipóteses de resolução sequer por atos imprevisíveis. O artigo 478 do novo
Código Civil de 2002 inaugura essa hipótese, que já vinha sendo admitida pela
doutrina e no Direito Comparado. E assim, em um contexto em que os dogmas do
individualismo como o princípio do pacta sunt servanda e da autonomia da
vontade acabavam sendo cada vez mais questionados no contexto da sociedade de
massa[5]. Os princípios do CDC passam a integrar e reger todos os contratos,
principalmente tendo em consideração o princípio da vulnerabilidade, da boa-fé
objetiva, do equilíbrio contratual e da transparência tão caros ao Direito do
Consumidor[6].
Mencione-se,
ainda, que a Constituição de 1988 trouxe como direito fundamental também o
direito à moradia, que não se confunde com o mero direito de propriedade, a
revelar que a proteção do adquirente da casa própria ganha status
constitucional, levando-se em conta direito social reconhecido em tratados
internacionais pela República Federativa do Brasil.
A
análise desses instrumentos legislativos, a partir de um olhar apurado da
doutrina pelo método do diálogo de fontes, revela que é preciso atentar ao
sujeito vulnerável no mercado de consumo e reconhecer que a aplicação conjunta
dessas normas, gerais e especiais, deve estar orientada pelos valores
constitucionais[7]. Especialmente no setor imobiliário, aquele que adquire o
produto final — imóvel — está adquirindo o sonho da casa própria.
Portanto,
se passamos um período de recessão para esse setor, em razão da resolução de
contratos de compra e venda de imóveis na planta, é preciso pontuar que
recessão muito mais profunda já está implantada nas famílias desses
consumidores que, como última saída, desistem da aquisição de seu mais precioso
bem em razão de não terem mais condições financeiras de se manterem adimplentes
nos contratos. O risco sistêmico é que se estes já superendividados
consumidores tiverem que assumir agora — pois a medida provisória entraria
imediatamente em vigor, revogando as normas que o consumidor confiou quando
adquiria seu imóvel — o mercado brasileiro consumidor todo vá a bancarrota, criando
crise sem precedentes nas famílias e no mercado brasileiro, apenas para
beneficiar um setor econômico[8]!
Note-se
que, se o consumidor vai ao distrato, essas resoluções normalmente ocorrem em
razão de fatores externos, decorrentes do momento econômico atual, como a perda
do emprego e diminuição de renda que fazem com que o consumidor não consiga
mais efetuar o pagamento das prestações. Vivenciam situações de
superendividamento, colocando em risco a própria dignidade e sobrevivência em
razão das dívidas contraídas[9].
A
ausência de legislação específica sobre o percentual relativo à retenção na
hipótese de resolução por inadimplemento levou os tribunais a considerarem que
devem ser devolvidas as parcelas pagas com uma compensação de 10% a 25% dos
valores pagos pelos consumidores[10]. Veda-se o enriquecimento sem causa do
fornecedor e o desequilíbrio do contrato, aplicando-se os princípios do CDC que
protegem contra as abusividades no mercado de consumo. Também coube à
jurisprudência fixar a forma de devolução em súmula do STJ que estabelece a
devolução imediata dos valores pagos pelos consumidores[11].
A
forma unânime como os tribunais têm se posicionado, em especial o Superior
Tribunal de Justiça, demonstram que o tema é da maior importância e não apresenta
atualmente qualquer "insegurança" aos contratos em geral ou
antijuridicidade, nem emergência ou necessidade de ser regulado por medida
provisória. Ao contrário, o que se deve fazer é atualizar o CDC para regular a
questão dos consumidores superendividados. O volume de processos jurídicos
sobre o tema retrata não apenas uma faceta da denominada crise do setor, mas a
dificuldade dos consumidores de se manterem no sonho da aquisição da casa
própria e, mais ainda, a necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário para o
reconhecimento de direitos já consolidados no âmbito jurisprudencial.
Assim,
causa espécie o conteúdo extremamente prejudicial aos consumidores que
apresenta esse projeto por meio de medida provisória. Deve-se pontuar que já
havia ocorrido, no início de 2016, uma tentativa do setor imobiliário em
regular os distratos por meio de um “pacto”, intermediado pelo Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro e com participação da Secretaria Nacional de Defesa
do Consumidor. Esse “pacto” foi duramente criticado pelas entidades envolvidas
na defesa do consumidor por afronta aos dispositivos do CDC, com previsão, por
exemplo, que a publicidade não contivesse dados obrigatórios de cumprimento
para os fornecedores, devendo valer apenas as disposições contidas no contrato.
No que concerne à resolução por inadimplemento do consumidor, esse perderia um
total de 10% do valor do imóvel, mais perda de arras, o que poderia totalizar
quase a totalidade dos valores, por ele, pagos. O movimento consumerista
conseguiu que a Senacon se retirasse desse chamado “pacto”, que deveria ter
validade nacional.
Eis
que tentam ser reascendidos os dispositivos do “pacto” sob a forma de uma
medida provisória. A forma, nesse ponto, é tão relevante quanto o conteúdo,
considerando que as medidas provisórias se destinam a regular questões de
relevância e urgência na forma do artigo 62 da Constituição Federal. Na
contramão da exigência formal do ato normativo mencionado, a necessidade de um
debate é essencial para que a sociedade possa ser esclarecida das consequências
que esses dispositivos terão na vida de milhares de cidadãos pretendentes a
adquirir imóvel por meio de compra na planta.
A
proposta de medida provisória prevê que, no caso de resolução por
inadimplemento: “Em qualquer das hipóteses, o adquirente fará jus à restituição
de quantia nunca inferior a 20% (vinte por cento) dos valores por ele pagos ao
incorporador, excetuando-se os valores correspondentes a eventual multa por
atraso no pagamento das parcelas e juros incidentes ao referido atraso”.
Percebe-se
que a mudança proposta é radical: de uma jurisprudência que garante de 90% a
75% de restituição dos valores pagos, propõe-se uma restituição de apenas 20%
desses valores! É claro que argumentarão que esses valores serão maiores caso o
consumidor tiver pago mais pelo seu imóvel, por exemplo, se tiver pago R$ 200
mil de um imóvel que vale R$ 500 mil, perderá “apenas” R$ 50 mil já pagos,
acrescido de outras multas e encargos. No entanto, sabe-se que as vendas de
imóveis na planta normalmente financiam em média de 20% a 30% do valor do
imóvel. Assim, se o imóvel vale R$ 500 mil, o valor despendido nesse contrato
gira em torno de R$ 150 mil, divididos em uma média de 60 prestações, incluída
a entrada, pagamento de parcelas intermediárias e comissão de corretagem.
Muitas vezes, o que já foi adimplido antes do distrato não corresponde a 15% do
imóvel, assim, a multa, na maioria dos casos, acabará gerando quase ou a perda
total dos valores pagos com a “garantia” de restituição de 20% do que se pagou.
O
fornecedor receberá de volta o bem, muitas vezes valorizado, livre e
desembaraçado para negociar novamente no mercado pelo preço total. A
regulamentação proposta tem em conta, ainda, revogar a súmula do Superior
Tribunal de Justiça que determina a imediata devolução dos valores pagos pelo
consumidor, para que os fornecedores efetuem essa devolução apenas no
encerramento das obras. Mais uma vez, trata-se de transferência abusiva dos
riscos para o consumidor.
Portanto,
a regulação que pretende ser feita por meio de medida provisória, alterando de
forma drástica as normas atuais e a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, representará significativa afronta à legislação consumerista em vigor,
ao Código Civil e à Constituição Federal, deixando de proteger o consumidor e
restringindo direito fundamental relativo à moradia. Sob um alarde de crise, os
direitos dos consumidores, de ordem pública e função social, não podem ser
simplesmente aniquilados, diminuídos sem qualquer discussão na seara política.
[1]
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 8. ed., Ed.
RT: São Paulo, 2016, p. 423 e seg.
[2]
Veja LIMA, Clarissa Costa de. Medidas preventivas frente ao superendividamento
dos consumidores na União Europeia. Revista de Direito do Consumidor, vol. 76,
p. 239-259.
[3]
Veja SÁ, Jacira Xavier de. A cláusula de decaimento e o Código de Defesa do
Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 31, p. 50 e seg.
[4]
Como refere a obra clássica de Caio Mário, é um contrato de grande risco para o
consumidor. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Código de Defesa do Consumidor e as
incorporações imobiliárias. RT 712, fev. 1995, p. 102 e seg.
[5]
Veja LIMA, Clarissa Costa de. A resolução do contrato na nova teoria
contratual. Revista de Direito do Consumidor, vol. 55, jul.-set. 2005, p. 85 e
seg.
[6]
Veja detalhes na bela obra de TOSCANO DE BRITO, Rodrigo Azevedo. Incorporação
imobiliária à luz do CDC. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 10 e seg.
[7]
Veja MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental:
consequências jurídicas de um conceito. Revista de Direito do Consumidor, vol.
43, jul.-set. 2002, p. 111 e seg.
[8]
MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de. Nota sobre as conclusões do
Banco Mundial em matéria de superendividamento dos consumidores pessoas
físicas. Revista de Direito do Consumidor, vol.89, p. 453-457.
[9]
Cláudia Lima Marques conceitua superendividamento como a impossibilidade de o
devedor de boa-fé de saldar as suas dívidas, colocando em risco a sua
sobrevivência. Veja sua introdução na obra MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZI,
Rosângela (org.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e
crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006. E MARQUES, Claudia Lima. Algumas perguntas e
respostas sobre prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores
pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor, vol. 75, p. 9 e seg.
[10]
Vide no STJ, AgInt no REsp 1361921/MG, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª
Turma, julgado em 23/6/2016, DJe 1º/7/2016.
[11]
Verbete 543 STJ: “Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e
venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a
imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador -
integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou
parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento”.
http://www.conjur.com.br/2017-mar-01/garantias-consumo-novas-regras-distrato-contratos-imoveis-planta
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