Há
mais de um século o mundo vem tentando erradicar os entorpecentes — com
resultados pífios. A chamada guerra às drogas aumentou os lucros de
traficantes, a violência e o número de presos, sem, contudo, reduzir o consumo
dessas substâncias.
O
conceito de “droga” é amplo: engloba qualquer produto ou substância que
provoque alterações no normal funcionamento da mente e corpo humanos. Dessa
forma, também são drogas tabaco, álcool, açúcar, café, chás e remédios. Na
história da humanidade, os entorpecentes representaram diversos papéis, de
acordo com Henrique Soares Carneiro, professor de História Moderna da
Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares
sobre Psicoativos desta instituição. Entre eles, os de aliviar dores físicas e
espirituais, de ajudar no sono, de promover experiências religiosas, e de
fornecer energia para caçadas e combates.
“A
questão do uso de drogas não se constitui, assim, apenas como um ‘problema’,
mas faz parte da cultura humana há milhares de anos como um instrumento de
estímulo, consolo, diversão, devoção e intensificação do convívio social”,
afirma o historiador em artigo publicado na revista Diálogos, da Universidade
Estadual de Maringá (PR).
Salvo
uma ou outra experiência isolada, o uso de drogas era legalizado em todo o
mundo até o início do século XX. As Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860),
por exemplo, foram iniciadas pela Inglaterra após a China proibir a importação
de ópio — produto monopolizado pela Companhia Britânica das Índias Orientais.
Na
virada dos anos 1800 para os 1900, o panorama começou a mudar, impulsionado
pelos EUA, e teve início a onda de proibição das drogas. Diferentemente do que
se poderia imaginar, as bases da vedação não foram científicas ou médicas, mas
sim sociais, econômicas, morais e religiosas, como aponta a professora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Boiteux em sua tese de doutorado
na USP.
Todas
as civilizações fizeram uso de algum tipo de droga, diz historiador da USP.
Os
dois primeiros motivos estão no preconceito contra imigrantes e seus
descendentes, que começavam a competir pelos empregos norte-americanos. Assim,
entorpecentes como ópio (associado aos chineses), maconha (mexicanos), cocaína
(negros) e mesmo álcool (irlandeses) foram considerados produtos consumidos por
“vagabundos” e “criminosos”. Além disso, havia a pressão da crescente indústria
farmacêutica, que defendia a proibição das drogas que não produzia.
Havia
ainda a força da ética protestante, que pregava uma vida livre de vícios e
práticas hedonistas, focada no trabalho duro, que levaria à salvação por Deus.
O criminalista Rogério Taffarello, em sua dissertação de mestrado na USP,
destaca a importância da Anti-Saloon League nesse contexto. Criada em 1895, a
associação lutava contra os saloons, bares típicos da região centro-oeste dos
EUA. Segundo a entidade, o uso de álcool (e outras drogas) atentava contra o
moralismo puritano da classe média norte-americana. O grupo atingiu milhares de
associados. Por isso, políticos passarem a ter medo de desafiar a exigência
deles por uma “América limpa”.
E
um religioso foi o grande incentivador do início da proibição às drogas: o
bispo missionário anglicano Charles Brent, como conta o juiz da Vara de
Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, em seu livro O direito penal da
guerra às drogas (D’Plácido). O norte-americano Brent viajou por diversos
países asiáticos pregando contra o uso de ópio — algo que ele considerava
“imoral”.
Após
conseguir a vedação a essa droga nas Filipinas, ele representou os EUA na
Conferência de Xangai, em 1909, onde advogou pelo combate à substância extraída
de sementes de papoula. Devido à ascensão dos EUA, outros países concordaram
com a tese do missionário. A reunião definiu as bases para a Convenção
Internacional do Ópio, tratado celebrado por 12 nações três anos depois, e que
foi a primeira norma internacional sobre controle de entorpecentes.
Em
1914, foi promulgada nos EUA o Harrison Act, primeira lei federal a controlar o
uso de drogas — no caso, ópio e cocaína. Conforme essa norma, tais substâncias
só poderiam ser compradas mediante receita médica. Contudo, logo os médicos
passaram a ser perseguidos pelos fiscais, que os acusavam de estarem
autorizando indevidamente a aquisição de entorpecentes. Até que a Suprema
Corte, em 1919, decidiu que prescrever essas drogas não era atividade própria
de médicos.
Foi
o passo inicial para se instituir um paradigma punitivista. No ano seguinte, o
álcool seria proibido nos EUA, e assim ficou por 13 anos. Com o passar do
tempo, novas convenções e tratados internacionais foram aumentando o rol de
drogas proibidas e intensificando o combate a elas. E a guinada repressiva
ganhou ainda mais impulso quando Richard Nixon assumiu a presidência dos EUA em
1969. O republicano logo declarou “guerra às drogas”, que seria travada pela
erradicação do uso e do tráfico por meio de prisões em massa. Para isso, ele
criou a Drug Enforcement Administration (DEA), órgão do governo federal que
passou combater os entorpecentes dentro e fora do país.
Nessa
luta, valia até ligar o consumo de drogas aos comunistas — os EUA então
travavam a Guerra Fria contra a União Soviética. Nesse cenário moralizador,
exportado pelos norte-americanos a outras nações, aqueles que questionavam o
combate aos narcóticos eram logo tachados de drogados, destaca Valois em sua
obra. Dessa maneira, o debate público sobre essa questão ficou interditado.
Brasil surfa a
onda
O
Brasil, é claro, não escapou da política proibicionista. Seguindo a tendência
mundial, Getúlio Vargas editou no começo de seu primeiro governo o Decreto
20.930/1932, que criminalizou a venda e a posse de maconha, cocaína e ópio. Já
no Estado Novo, Vargas endureceu a repressão com o Decreto-lei 891/1938, que
estabeleceu pena de 5 anos para o uso de entorpecentes e proibiu a sursis e o
livramento condicional para delitos relacionados a drogas.
A
matéria foi incluída no Código Penal de 1940. Sem estabelecer quais eram as
substâncias proibidas e usando “fórmulas genéricas e termos imprecisos”, a
norma ampliou seu significado, sustenta Luciana Boiteux em sua tese.
Para
Luciana Boiteux, aumento da repressão às drogas foi motivado pelo endurecimento
da ditadura militar.
Em
1964, o Brasil ratificou a Convenção Única de Entorpecentes de 1961. O fato de
esta norma, que intensifica a repressão a traficantes, ter sido validada no ano
do golpe militar não é coincidência, diz a professora da UFRJ. “Não por acaso o
momento coincide com o golpe de Estado que criou condições propícias ao aumento
da repressão, ao reduzir as liberdades democráticas.”
Treze
dias após a edição do Ato Institucional 5, que fechou o Congresso, instituiu a
censura e restringiu o uso de Habeas Corpus, entrou em vigor a nova legislação
de drogas. O Decreto-lei 385/1968 equiparou o usuário ao traficante e passou a
punir o incentivo à difusão de entorpecentes.
A
relativa abertura política promovida pelo presidente Ernesto Geisel fez com que
a Lei de Tóxicos (Lei 6.368/1976), em tese, priorizasse a prevenção sobre a
repressão. “Contudo, a maioria dos seus artigos possui caráter normativo/repressivo
e não preventivo. As propostas preventivas e o modelo seguido pela referida lei
mostravam-se inadequados desde o início”, avalia Luciana.
Só
30 anos depois é que foi promulgada a nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), com
o objetivo de atenuar a punição a usuários. Dessa forma, a pena de detenção de
seis meses a dois anos para usuários, prevista na Lei 6.368/1976, foi
substituída por advertência sobre os efeitos dos entorpecentes, prestação de
serviços à comunidade e obrigação de comparecer a programa ou curso educativo
(artigo 28). Além disso, a norma, de 2006, ampliou o uso de medidas
cautelares.
Por
outro lado, a Lei de Drogas endureceu a punição para o crime de tráfico (artigo
33). A pena mínima passou de três para cinco anos de prisão, e as reparações
subiram de 50 a 360 dias-multa para 500 a 1.500 dias-multa. E desde 1990, com a
Lei 8.072/1990, tráfico de drogas é considerado crime hediondo (embora o
Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido em 2016 que o tráfico privilegiado, estabelecido
no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas, não tem essa natureza).
Efeitos da
proibição
Só
que a proibição e a guerra às drogas não reduziram o uso e o tráfico de
entorpecentes. A Organização das Nações Unidas estima que 247 milhões de pessoas,
ou uma a cada 20 pessoas do mundo, tenham usado pelo menos uma droga ilegal em
2014.
Como
há demanda, estimulada pela aceleração do ritmo de vida das pessoas, a
proibição apenas assegura que o dinheiro das drogas vá para organizações
criminosas, afirma o jornalista italiano Roberto Saviano no livro ZeroZeroZero
(Companhia das Letras). Nesta obra, ele diz que “não existe investimento
financeiro no mundo mais rentável que o da cocaína”.
Para
provar seu argumento, ele compara os rendimentos do pó com os das ações da
Apple. Quem tivesse investido mil euros em papéis da companhia em 2012 teria
1,670 mil euros um ano depois. Agora, quem tivesse aplicado a mesma quantia em
cocaína 182 mil euros ao fim desse mesmo período. Ou seja: 100 vezes mais do
que o rendimento das ações da Apple, o título que mais gerou dinheiro naquele
ano.
O
pior é que a repressão às drogas, na realidade, ajuda a aumentar a
lucratividade do tráfico, sem diminuir a oferta. Rogério Taffarello relata em
sua dissertação que isso é explicado por dois fenômenos: o paradoxo dos lucros
e o efeito hidra.
Segundo
o primeiro, cada vez que as políticas de combate à produção e circulação de
entorpecentes tornam-nos mais escassos, seus preços aumentam. Com essa alta,
mais pessoas são atraídas para atuar nesse mercado, o que acaba por fazer o
mercado retornar aos níveis de antes. Já o segundo postulado fixa que cada
grande operação de desmantelamento de uma boca de fumo ou apreensão de drogas
apenas tem o condão de abrir um novo nicho para atores que estavam fora dele,
pois a procura por maconha, cocaína ou heroína nunca vai embora.
Mesmo
sem atingir seus objetivos, a guerra às drogas é responsável por parte
considerável do número de presos. De acordo com a edição de 2016 do World Drug
Report, relatório sobre entorpecentes produzido anualmente pelo Escritório da
ONU sobre Drogas e Crime (Unodc), cerca de 18% da população prisional do mundo
foi condenada por algum delito relacionado a drogas.
Nos
EUA, 49,5% dos presos federais, em setembro de 2015, e 15,7% dos estaduais, em
dezembro de 2014, estavam cumprindo pena por crimes desse tipo, informa o
relatório de 2016 do Bureau of Justice Statistics, órgão do Departamento de
Justiça. No total, havia quase 300 mil detidos por esse crime no país.
Tráfico
responde por 28% dos presos do Brasil, diz Ministério da Justiça.
Já
no Brasil, o tráfico de drogas é o crime que mais leva gente para as
penitenciárias: 174.216 dos 622.202 detentos que o país tinha no fim de 2014, o
equivalente a 28% dos encarcerados, segundo dados do Departamento Penitenciário
Nacional, órgão do Ministério da Justiça. Desde a edição da nova Lei de Drogas,
esse número explodiu: em 2005, eram 31.520 detidos por esse crime, 9% da
população carcerária do país, que então contava com 361.402 pessoas. Isso
ocorreu tanto pelo aumento das penas para tráfico quanto pelo exagerado número
de usuários enquadrados como produtores ou vendedores.
“O
excessivo encarceramento por crimes de menor potencial ofensivo relacionados a
drogas é ineficaz em diminuir a reincidência e sobrecarrega os sistemas de
justiça criminal, impedindo-nos de lidar melhor com crimes mais graves”,
ressalta o Unodc no World Drug Report de 2016.
Além
disso, o órgão da ONU avalia que estratégias de rapidamente desmantelar
organizações de tráfico de entorpecentes pode gerar mais violência. Nesse
cenário, toda a sociedade acaba pagando pelo que, no fundo, é uma disputa de
mercado entre as facções criminosas. Vide o México, com seus 47.515 mortos por
violência ligada aos cartéis de drogas entre 2007 e 2011, tal qual cita aviano
em ZeroZeroZero.
Ou
o Brasil. Conforme destacou o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da
Violência da USP Bruno Paes Manso na revista piauí de fevereiro deste ano, o
Primeiro Comando da Capital (PCC) foi o principal responsável pela queda de 80%
na taxa de homicídios de São Paulo desde 1999, ao contrário do que alega o
governo Geraldo Alckmin (PSDB). Isso porque a facção eliminou toda a
concorrência e passou a ocupar o lugar do Estado na periferia.
Mas
o PCC expandiu suas atividades para outros estados. E a disputa pelos fabulosos
lucros das drogas elevou o número de assassinatos no país para quase 60 mil por
ano. Não há outro lugar onde tantas pessoas tenham suas vidas ceifadas. Para
efeito de comparação, o Brasil registrou 22.715 mais mortes violentas entre
2011 e 2015 do que a Síria, que está em guerra civil desde aquele ano, conforme
o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016.
A
publicação contabiliza 278.839 ocorrências de homicídio doloso, latrocínio,
lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial no
Brasil, de janeiro de 2011 a dezembro de 2015, frente a 256.124 assassinatos no
país do Oriente Médio, entre março de 2011 a dezembro de 2015, de acordo com o
Observatório de Direitos Humanos da Síria.
E
foi a briga entre o PCC e a Família do Norte, duas facções empoderadas pelo
tráfico de drogas, que gerou os massacres ocorridos em prisões de Manaus, Boa
Vista e Natal. Com cabeças de vítimas decepadas, membros despedaçados em poças
de sangue e até churrasco de carne humana, as cenas dessas barbáries não podem
ser esquecidas por qualquer um que tenha assistido aos vídeos, feitos pelos
próprios presidiários, que tentavam mostrar a vitória de suas facções
criminosas sobre os concorrentes nos negócios.
*Esta é
primeira reportagem da série sobre a relação entre a guerra às drogas e a
superlotação dos presídios.
Por Sérgio
Rodas. Repórter da Revista Consultor Jurídico
*Texto
atualizado às 17h26 do dia 16/2/2017 para correção de informações.
http://www.conjur.com.br/2017-fev-16/repressao-estado-nao-diminuiu-uso-nem-comercio-drogas
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