Ações
das camadas populares têm de se combinar com a ação dos Estados se queremos de
fato transformar o mundo.
Na
Bolívia e no Equador, os movimentos sociais se cansaram de derrubar governos
neoliberais e decidiram, finalmente, fundar seus próprios partidos e lançar
candidatos à Presidência da nação. Mais recentemente, no marco do Fórum Social
Mundial – ou ao lado dele –, ONGs e alguns movimentos sociais se opuseram a
esse caminho e pregaram a "autonomia dos movimentos sociais", ou
seja, não se deveria meter em políticas, nem com o Estado, menos ainda com
partidos.
Na
Argentina do fim dos anos 1980, diante da maior crise econômica, política e
social da sua história, movimentos renunciaram a lançar candidaturas à
Presidência, com o lema: "Que se vayan todos". Resultado: Menem
ganhou no primeiro turno, prometendo que daquela vez iria dolarizar
definitivamente a economia argentina, o que acabou levaria à ruína sem retorno
não só a Argentina, como os processos da integração latino-americana.
A
ilusão despolitizada e corporativa do "Que se vayan todos" deixaria o
campo livre para essa monstruosa operação menemista, com efeitos negativos para
toda a região. A ilusão é a que eles se irão, sem que se os faça ir embora, sem
que os derrote com um projeto superador do neoliberalismo.
Voltando
à Argentina, anos mais tarde apareceu a candidatura vitoriosa de Néstor
Kirchner, para iniciar o resgate mais espetacular que o país vizinho havia
conhecido da sua economia, dos direitos sociais, de valorização das pessoas, do
prestígio do Estado, do marco da recuperação da soberania externa.
Enquanto
isso, movimentos que se ativeram à esdrúxula tese da autonomia dos movimentos
sociais, como os piqueteros argentinos, simplesmente desapareceram.
No
México, depois do enorme prestígio que haviam tido ao assumirem posição
semelhante – "Mudar o mundo sem tomar o poder", de John Holloway e
Toni Negri, com este último condenando os Estados como superados instrumentos
conservadores -, os zapatistas desapareceram da cena política nacional,
recluídos em Chiapas, o mais pobre estado mexicano.
Mais
de 20 anos depois, nem Chiapas nem o México foram transformados sem tomar o
poder, até que os zapatistas resolveram lançar uma dirigente indígena à
Presidência da República nas eleições do próximo ano, voltando a disputar os
espaços políticos nacionais e deixando aquelas teses para trás. Mesmo sem dizer
que vão transformar o país mediante vitória eleitoral, valorizando a disputa
eleitoral, deixando de lado as políticas de denúncia das eleições e de
abstenção.
Enquanto
isso, a Bolívia e o Equador, rompendo com essa visão estreita de restringir os
movimentos sociais apenas à resistência ao neoliberalismo, fundaram partidos,
apresentaram candidatos à presidência da República – Evo Morales e Rafael
Correa –, triunfaram e puseram em prática os processos de maior sucesso na
transformação econômica, social, políticas e cultural na América Latina do
século 20.
Refundaram
seus Estados nacionais, retomaram o desenvolvimento econômico com distribuição
de renda, se aliaram aos processos de integração regional, ao mesmo tempo que
integraram as amplas camadas populares aos processos políticos nacionais.
Ao
contrário do fracasso das teses da autonomia dos movimentos sociais, que
renunciaram à luta pela hegemonia alternativa de alcance nacional e de luta
pela construção concreta de alternativas ao neoliberalismo, sob a direção de
Evo Morales e de Rafael Correa, a Bolívia e o Equador demonstraram como somente
a articulação entre a luta social e a luta política, entre os movimentos
sociais e os partidos políticos, é possível construir blocos de força capazes
de avançar decisivamente na superação do neoliberalismo.
As
teses de Toni Negri sobre o fim do imperialismo e dos Estados nacionais foi
desmentida pela própria ação imperialista logo depois dos atentados de 2001,
enquanto os governos sul-americanos demonstraram que somente com o resgate da
ação do Estado é possível retomar o desenvolvimento com distribuição de renda.
A
pobreza persistente em Chiapas pode ser comparada com os avanços espetaculares
realizados em todas as províncias da Bolívia, como exemplo, para demonstrar,
também pela via dos fatos, como a ação de baixo tem de se combinar com a ação
dos Estados, se queremos de fato transformar o mundo.
Outras
teses, como as de Boaventura de Sousa Santos e de várias ONGs, de optar por uma
"sociedade civil" na luta contra o Estado, não têm nenhum exemplo
concreto a apresentar resultados positivos, mesmo com as ambíguas alianças com
forças neoliberais e de direita, que também se opõem ao Estado e fazem alianças
com ONGs e com intelectuais para se oporem a governos como os de Evo Morales e
de Rafael Correa, mas também contra os outros governo progressistas na América
Latina.
Além
do fracasso teórico das teses da autonomia dos movimentos sociais, se pode
apresentar os extraordinários avanços econômicos, sociais e políticos, em
países como a Argentina, o Brasil, o México, o Uruguai, além dos já
mencionados, como provas da verdade das teses da pauta antineoliberal como a
luta central do nosso tempo.
*Emir Sader é
sociólogo e cientista político.
Texto
publicado originalmente na Rede Brasil Atual.
https://www.brasildefato.com.br/2017/02/20/movimentos-sociais-vivem-dilemas-na-luta-contra-o-neoliberalismo-na-america-latina/
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