A
disciplina opera como uma porta para a cultura do passado e, ao mesmo tempo,
para a reflexão sobre questões decisivas de nossa própria época
Desde
que foi anunciada a reforma do Ensino Médio pelo governo de Michel Temer, por
meio da Medida Provisória 746, tenho lembrado com muita frequência da
observação da pensadora Hannah Arendt (1906-1975), contida em seu único texto
dedicado especificamente ao tema da educação.
Intitulado
A crise na educação e reunido na obra Entre o passado e o futuro (Perspectiva),
Arendt tece uma consideração basilar sobre o sentido da formação que transcrevo
na íntegra:
“A
educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que
seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.
A
educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para
não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e
tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e
imprevista par nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa
de renovar um mundo comum”.
Haveria
um vínculo estreito, portanto, entre educação e responsabilidade, tanto para
com a renovação do mundo quanto com o acolhimento dos mais jovens nele.
Na
insistente propaganda em favor da reforma, o Ministério da Educação busca
convencer os jovens de que a razão de ser da MP é a liberdade de escolha.
Isto
é, a flexibilização do currículo, de modo que o estudante possa decidir estudar
apenas o que gosta – e, principalmente, não estudar o que aos 13 anos acha que
não gosta.
O
argumento consiste, portanto, em afirmar que o Ensino Médio precisa ser modificado
com urgência (uma vez que tal modificação foi proposta por medida provisória) e
sem necessidade de discussão com a comunidade envolvida (estudantes, pais e
professores), já que seria consenso que ele precisa ser tornado atraente para
que os jovens não evadam da escola.
Seria
o caso de o Ministério da Educação indicar com base em que informações chegou à
conclusão de que a evasão escolar no nível médio se deve ao desinteresse dos
estudantes pelos conteúdos que têm de estudar.
As
medidas do atual governo para a área da educação até agora consistiram em corte
de gastos, teto orçamentário e desvinculação de receitas, mitigação da
assistência estudantil universitária, projeto de reforma do Enem (com
dissociação do exame do acesso à universidade) e a medida provisória que visa
reformar o Ensino Médio.
A
última, com flexibilização do currículo, eliminação de disciplinas, ampliação
da carga horária visando o ensino integral (milagrosamente com restrição
orçamentária), ênfase em formação técnica e a admissão por “notório saber” de
profissionais não formados para a docência.
Este
conjunto de medidas, a ausência de qualquer projeto de valorização profissional
do professor e a fragilidade da argumentação em favor da medida provisória
provoca para a seguinte questão: o que está realmente em jogo?
As
motivações mais profundas dessas medidas estão explicitadas? Ou, para dizer com
Kant: será que as reais motivações para a reforma poderiam ser ditas em público
(podendo ser, assim, política, jurídica e moralmente justificáveis)?
O
Ensino Médio é parte da educação básica, e esta formação inclui, dentre outros
aspectos o acesso a conhecimentos que permitam uma maior compreensão de sua
existência e de seu lugar na vida social e política e a iniciação da preparação
para uma futura atividade profissional, sem restrição à possibilidade de
aprofundamento da formação em nível universitário.
Além
do fornecimento de condições para que o estudante não seja privado do que foi
engendrado ao longo do tempo nas ciências, nas técnicas, nas artes, no
pensamento, na história.
Subjaz
à exigência de uma formação básica o princípio republicano de que a comunidade
política deve fornecer aos estudantes as condições elementares para construírem
sua vida em pluralidade, de modo esclarecido e refletido, em harmonia com sua
dignidade pessoal e com sua condição de cidadão.
É
o caso, portanto, de não dissimular como liberdade o que é restrição e de não
expulsar os mais jovens da comunidade política e de cultura de que fazem parte
deliberada ou involuntariamente, independentemente das prioridades definidas
por seus afetos adolescentes – os quais, como bem sabem os professores e pais,
deveriam ser tomados como parte da sua formação no período da educação básica.
Seria
apenas irresponsável ou dissimulador considerar bem compreendidos, para dizer
com Tocqueville, os interesses próprios dos adolescentes que ingressam no
Ensino Médio. A chance de uma opção equivocada por um itinerário formativo
aumentar a evasão tem de ser levada muito a sério.
É
muito difícil imaginar como estes objetivos poderiam ser alcançados plenamente
sem que os estudantes sejam formados em Língua Portuguesa, Matemática e Língua
Estrangeira, mas também História, Artes, Geografia, Educação física, Sociologia
e Filosofia.
Filosofia x
obscurantismo
Tratando
especificamente da Filosofia, ela opera como uma porta para a cultura do
passado e para a reflexão sobre questões decisivas de nossa própria época.
Envolve
a dignidade da concepção de uma existência refletida. Sócrates já dizia que
“uma vida sem reflexão, sem exame, não vale a pena ser vivida”.
Cabe
ressaltar ainda que, até poucos séculos, estava reunido no que se chamava então
de Filosofia um conjunto extraordinário de problemas que abarcavam, por
exemplo, conhecimentos da Ciência, das Artes e da Teologia.
Assim,
em grande medida, a história da filosofia é também a história desses saberes e
dos problemas que lhe são constitutivos.
Além
disso, conhecimentos de ética, lógica, argumentação, política, estética,
filosofia da religião, filosofia da ciência etc., são certamente indispensáveis
para a compreensão refletida da própria posição no mundo, que abre
possibilidade para projetos pessoais e profissionais criativos e emancipados,
decisivos para a inserção esclarecida na vida social e na comunidade política.
Ademais
disso, a disciplina Filosofia tem sido bem sucedida em seus incontáveis
benefícios no que diz respeito ao aprimoramento da capacidade de argumentação,
de raciocínio, de escrita, de reflexão e de crítica.
A
oposição ao ensino das disciplinas de Filosofia e de Sociologia parece possuir
uma motivação claramente obscurantista, para me expressar em um oximoro.
Trata-se
de atender os movimentos políticos que identificam, por ignorância ou
maledicência, o ensino dessas disciplinas com doutrinação político-partidária,
desconsiderando a pluralidade das respectivas áreas, como se pode constatar na
diversidade de temas, problemas e autores abordados nos encontros nacionais de
pesquisa nessas áreas.
Esses
movimentos advogam uma seletividade no ensino, com exclusão de determinados
conteúdos, de modo que acabam por advogar pela conversão da educação em
doutrinação.
Doutrinar
é restringir a perspectiva, é adestrar, em vez de enriquecer a imaginação e
ampliar a compreensão, o que pressupõe considerar o número mais amplo possível
de pontos de vista.
Dada
a fragilidade dos argumentos em favor da MP 746, agora convertida em lei, e
dadas as medidas tomadas pelo atual governo na área de educação, cabe perguntar
se o que está em jogo não é antes o acesso à universidade pública pelos
estudantes oriundos da escola pública.
Toda
a fala em torno da reforma deixa entrever o antigo projeto de conservar o
Ensino Médio como teto da formação dos jovens pobres, de quem se espera no
máximo a formação técnica especializada e no mínimo o domínio de Português e de
Matemática necessário ao exercício de sua atividade profissional subalterna.
Está
em jogo o extermínio do princípio liberal da igualdade de oportunidades e da
recompensa pelo esforço e pelo mérito, ou ainda daquilo a que se refere Michel
Foucault quando trata do poder sobre a vida centrado no corpo: “no seu
adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no
crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em
sistemas de controle eficazes e econômicos”.
O
projeto consiste em formar pessoas úteis e dóceis, ou em formar até certo ponto
e apenas em certas áreas. Assim, dentre as habilidades e competências esperadas
dos jovens, não são admitidos saberes que coloquem em primeiro plano análise,
reflexão, crítica e imaginação.
É
o caso de continuar suspeitando de que somos e sempre fomos muito mais
coloniais que liberais. Temos de, como disse, começar a suspeitar de que na
reforma do ensino médio o que está em jogo, com a precarização do ensino
público, é o acesso à universidade pelos egressos da escola pública – e a
recondução da universidade a sua tarefa histórica de legitimar as posições
sociais previamente determinadas pelas respectivas condições econômicas.
É
o caso de suspeitar que os defensores desse projeto obscurantista e colonial
têm realmente boas razões para se opor ao estudo da Filosofia e da Sociologia.
* Adriano
Correia é professor da Faculdade de Filosofia da UFG e presidente da Associação
Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof)
ww.cartacapital.com.br/sociedade/por-que-os-obscurantistas-nao-querem-a-filosofia-no-ensino-medio
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