Qual
o conteúdo jurídico do Princípio da Moralidade, inscrito no artigo 37 da
Constituição? Se nela não estivesse escrito, estariam autorizadas condutas
imorais? Se não constasse do ordenamento jurídico escrito, seria uma norma
implícita, que alcançaria a todos, pessoas físicas e jurídicas, de direito
público e privado, respeitada a legalidade?
A
questão volta ao debate com a eleição do senador Edson Lobão, com amplo apoio
do Planalto, como presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado
Federal, a qual, dentre outras diversas atribuições, tem por função conceder
parecer prévio sobre os projetos de lei que devem ser votados naquela casa
legislativa, além de sabatinar as pessoas indicadas para compor o STF.
Em
entrevista para o jornal O Estado de São Paulo
(http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lobao-afirma-que-anistia-a-caixa-2-e-constitucional,70001661823?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=manchetes),
o senador Lobão afirmou que a anistia aos crimes de caixa dois é plenamente
constitucional[1].
Daí
a pergunta: o Princípio da Moralidade alcança a todos, ou apenas a
administração pública? Observe-se que o caput do artigo 37, CF, é expresso
apenas para esta.
Esse
assunto tem relação com dois aspectos estudados pelo Direito Financeiro. A
corrupção, que vem sendo muito discutida no Brasil atual, em especial no âmbito
da operação "lava jato", e também faz parte daquilo que denominei de
Direito Financeiro Eleitoral em outra coluna
(http://www.conjur.com.br/2016-set-06/contas-vista-financiamento-campanhas-eleitorais-risco-cafe-society).
Sem
o intuito de esgotar o assunto, quero trazer ao debate uma decisão do STF em
que foi afirmado que o Princípio da Moralidade só vale para a administração
pública, afastando expressamente sua aplicação para o Poder Legislativo.
Remanescem daquela composição os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, que
votaram de forma divergente, como se verá.
Relembrando:
a Lei 8.744/1993 concedeu anistia financeira aos eleitores que haviam deixado
de votar no plebiscito feito naquele ano. Posteriormente, a Lei 9.274/1996
concedeu: 1) anistia financeira aos débitos dos eleitores que deixaram de votar
nas eleições de 1992 e 1994, bem como aos membros das mesas receptoras que
deixaram de atender à convocação da Justiça Eleitoral; e 2) anistia criminal
aos “fatos definidos como crime no art. 344 da Lei 4.737, de 15 de julho de
1965 – Código Eleitoral”. Essa norma eleitoral tipifica como crime “recusar ou
abandonar o serviço eleitoral sem justa causa”, punindo-o com “detenção até
dois meses ou pagamento de 90 a 120 dias-multa”.
Seguindo
essa linha, o senador Gerson Camata (PMDB-ES) apresentou em 1999 o projeto de
lei (PLS 81/99), onde, ao lado da usual anistia aos eleitores inadimplentes
(artigo 1º), previa[2]:
Art.
2º São igualmente anistiados os débitos resultantes das multas aplicadas pela
Justiça Eleitoral, a qualquer título, em decorrência de infrações praticadas no
período de 7 de abril a 25 de outubro de 1998.
Parágrafo
único. A anistia referida neste artigo não se aplica a candidatos eleitos.
Pela
redação, vê-se que se tratava de uma proposta de anistia financeira para os
candidatos não eleitos, o que, por si só, já seria bastante discutível, pois
não haveria justificativa plausível para tal conduta. Porém, assim foi aprovada
no Senado Federal.
Ao
chegar à Câmara dos Deputados, o referido projeto de lei recebeu o número
934/1999 e foi objeto de diversas emendas parlamentares, sempre com a
utilização retórica da justificativa de ampliar a anistia aos eleitores (objeto
do artigo 1º), mas alterando o teor do artigo 2º, que ampliava a anistia aos
políticos — inclusive dos eleitos, o que se caracterizava como uma vantagem
individual a eles, o que foi uma decisão de duvidosa moralidade, pois se
tratava de uma vantagem autoconcedida, isto é, um privilégio, e não uma
prerrogativa.
O
texto final ampliou o período para abranger e anistiar também o ano de 1996. O
texto foi aprovado por votação nominal na Câmara dos Deputados por 261 votos
favoráveis, 110 contrários e 13 abstenções[3].
Em
face das modificações, retornou ao Senado, que confirmou as alterações
propostas e encaminhou o seguinte texto ao presidente da República,
contemplando em seu artigo 2º ampla anistia financeira aos políticos que
cometeram infrações eleitorais, tenham ou não sido eleitos:
Art.
2º São igualmente anistiados os débitos resultantes das multas aplicadas pela
Justiça Eleitoral, a qualquer título, em decorrência de infrações praticadas
nos anos eleitorais de 1996 e 1998.
O
então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, vetou na íntegra o
projeto de lei em 21 de dezembro de 1999[4]. O Congresso Nacional rejeitou o
veto, tendo seu presidente, Antonio Carlos Magalhães, promulgado a Lei 9.996,
em 14 de agosto de 2000[5].
O
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou no STF com a ADI
2.306, com pedido de medida cautelar, que foi relatada pelo ministro Octavio
Gallotti. Os principais argumentos utilizados foram os da violação ao Princípio
da Moralidade Pública, a afronta ao Estado Democrático de Direito e à segurança
jurídica, e atentar contra a coisa julgada eleitoral, pois as multas aplicadas
já haviam transitado em julgado.
No
julgamento da cautelar, em setembro de 2000, foi trazido ao debate pelo relator
a questão da titularidade do dinheiro das multas, o que turvou os pontos
centrais em discussão. O ponto de relevo ocorreu quando o ministro Moreira
Alves afirmou que o Princípio da Moralidade era um princípio constitucional
para a administração pública, e não para o Estado-Legislador, pois, “a não ser
assim, poder-se-ia até considerar que a anistia de crime seria imoral”. O
ministro Carlos Velloso, chegou a contestar a posição de Moreira Alves,
argumentando que “anistiar filhos de parlamentares que tenham cometido crimes,
ou os próprios parlamentares, ter-se-á praticado ato não condizente com a
Moralidade administrativa”. Recebeu como resposta que tal hipótese não se
referiria a moralidade, mas a “devido processo legal em sentido material”. A
liminar foi concedida em 27 de setembro de 2000, por maioria de votos, no
sentido de suspender os efeitos da norma.
Ocorre
que, de vencido na cautelar, o argumento do ministro Moreira Alves passou a
vencedor no julgamento de mérito da ADI 2.306, em 21 de março de 2002, relatado
pela ministra Ellen Gracie, sucessora do ministro Gallotti, então aposentado.
O
voto da ministra relatora foi pela improcedência da ADI, revertendo a medida
cautelar antes concedida. Seu voto foi seguido pelos ministros Nelson Jobim,
Moreira Alves, Celso de Mello, Carlos Velloso, Ilmar Galvão e Maurício Correa.
Foram vencidos os votos dos ministros Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Nery
da Silveira e Marco Aurélio.
Os
acirrados debates demonstram a maioria considerando a impossibilidade de
aplicação do Princípio da Moralidade aos atos do Poder Legislativo, e a minoria
defendendo sua aplicação a todos, de forma ampliativa. A transcrição de alguns
trechos dos debates é reveladora das posições adotadas naquele julgamento
paradigmático, e que foi o primeiro — e até onde sei, o único — a se debruçar
sobre anistias financeiras eleitorais:
Ministro
Nery da Silveira — Ninguém pode descumprir a legislação eleitoral,
especialmente os candidatos que estão buscando o poder. Essas infrações, todos
sabemos, causam a desigualdade dentro do processo eleitoral.
[...]
Ministro
Moreira Alves — Não levo a esse radicalismo, porque o problema, aqui, é o de
saber se o princípio da moralidade se aplica, ou não, ao Poder Legislativo.
Pela nossa Constituição, não...
Ministro
Sepúlveda Pertence — Pode até mudar de nome, mas há abuso do Poder Legislativo.
Ministro
Moreira Alves — Não há abuso do Poder Legislativo.
Ministro
Nery da Silveira — Ministro, tudo, aquilo que estiver em descompasso com os
princípios da Constituição não há de merecer acolhida.
Ministro
Moreira Alves — Quais são esses princípios?
Ministro
Nery da Silveira — V. Exa. entende que o sistema democrático não é princípio
básico da Constituição?
Ministro
Moreira Alves — Por acaso o sistema democrático necessita de voto obrigatório?
Por que os países democráticos não têm voto obrigatório? Se o voto não fosse
obrigatório, não poderia haver multa.
Ministro
Nery da Silveira — Anistia aos eleitores, até admitiria, mas não a admito
quanto aos candidatos que cometem infrações, tornando desigual o processo
eleitoral.
[...]
Ministro
Moreira Alves — O ministro Celso de Mello está lembrando que até a corrupção
eleitoral tem sido anistiada.
(...)
Ministro
Marco Aurélio — Na espécie, essa lei não é revestida de razoabilidade, de
proporcionalidade; é contrária ao regime democrático, à República, e instaura
um verdadeiro incentivo a que não sejam cumpridas, nas eleições — estamos
próximos a uma eleição que se anuncia trepidante —, as decisões da Justiça
Eleitoral, partindo-se para o campo do faz-de-conta. Tenho como envolvido –
perdoem-me aqueles que pensam de forma diversa – o princípio da moralidade,
conjugado, no art. 37 da Carta da República, com o princípio da eficiência do
Estado em atuação da maior importância, porque, repito, está ligada àqueles que
dirigirão os destinos do Estado.
Em
suma, foi vencedora a posição adotada pela relatora, e a lei foi considerada
constitucional, acarretando anistia financeira inclusive para os políticos
eleitos que cometeram infrações eleitorais nos anos de 1996 e 1998. A maioria
vencedora no STF não levou em consideração — a despeito de expressa e
formalmente alertada — de que se tratava de uma anistia que os políticos
estavam se autoconcedendo (artigo 2º), e não apenas de uma anistia a terceiros,
eleitores e mesários (artigo 1º).
Nitidamente,
o STF utilizou uma visão absolutamente restritiva e formal quanto ao Princípio
da Moralidade, afirmando que sua validade se restringia à administração
pública, e não a todas as pessoas, físicas e jurídicas, públicas e privadas.
Aqui residiu o grave erro de percepção da maioria vencedora, segundo meu ponto
de vista.
O
fato é que esse julgamento praticamente validou uma espécie de vale-tudo
financeiro eleitoral ocorrido anteriormente, pois não foi coibido no devido
modo e tempo, e apontou certa linha de conduta para as eleições posteriores,
nas quais essa espécie de vale-tudo financeiro eleitoral se manteve — e se
mantém. Basta ler as páginas políticas dos jornais e sites, que pululam
notícias sobre a criminalização do caixa dois eleitoral, que o senador Lobão
quer ver aplicada aos atuais parlamentares acusados na operação "lava
jato".
Como
visto, daquele julgamento ainda remanescem no STF o ministro Celso de Mello
(que votou confirmando a tese de que o Princípio da Moralidade se aplicaria
apenas à administração pública) e o ministro Marco Aurélio (que votou pela
aplicação desse Princípio a todos).
Se
aprovada a anistia ao caixa dois eleitoral, haverá quem a submeta ao STF? E
como votarão os ministros remanescentes e os atuais?
Como
você votaria, caro leitor, se estivesse no lugar deles e fosse ministro do STF?
[1]
Foi perguntado pelos repórteres Julia Lindner e Caio Junqueira ao senador
Lobão: “Discutiu-se muito na Câmara dos Deputados no ano passado a chamada
anistia ao caixa 2. A Câmara está voltando a articular isso. O sr. apoia?”, e a
resposta foi: “A figura da anistia existe. Todo ano, o presidente anistia
alguns presos por conta disso ou daquilo. Houve a lei da anistia durante o
regime militar. Resta saber se anistia tal ou qual é conveniente. Vou aguardar
que a Câmara decida lá, quando vier para cá nós avaliaremos. O que eu quero
dizer é que é constitucional a figura da anistia, qualquer que ela seja.
Anistia não se faz somente para isso, outros crimes podem ser anistiados”.
[2]
A íntegra do processo legislativo está disponível em:
.
P. 1.
[3]
A íntegra do processo legislativo está disponível em:
.
P. 52.
[4]
Disponível em:
.
[5]
Disponível em: .
http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/contas-vista-poder-legislativo-respeitar-principio-moralidade
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