segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

CONTAS À VISTA. O PODER LEGISLATIVO DEVE RESPEITAR O PRINCÍPIO DA MORALIDADE? Por Fernando Facury Scaff

Qual o conteúdo jurídico do Princípio da Moralidade, inscrito no artigo 37 da Constituição? Se nela não estivesse escrito, estariam autorizadas condutas imorais? Se não constasse do ordenamento jurídico escrito, seria uma norma implícita, que alcançaria a todos, pessoas físicas e jurídicas, de direito público e privado, respeitada a legalidade?

A questão volta ao debate com a eleição do senador Edson Lobão, com amplo apoio do Planalto, como presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, a qual, dentre outras diversas atribuições, tem por função conceder parecer prévio sobre os projetos de lei que devem ser votados naquela casa legislativa, além de sabatinar as pessoas indicadas para compor o STF.

Em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo (http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lobao-afirma-que-anistia-a-caixa-2-e-constitucional,70001661823?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=manchetes), o senador Lobão afirmou que a anistia aos crimes de caixa dois é plenamente constitucional[1].

Daí a pergunta: o Princípio da Moralidade alcança a todos, ou apenas a administração pública? Observe-se que o caput do artigo 37, CF, é expresso apenas para esta.

Esse assunto tem relação com dois aspectos estudados pelo Direito Financeiro. A corrupção, que vem sendo muito discutida no Brasil atual, em especial no âmbito da operação "lava jato", e também faz parte daquilo que denominei de Direito Financeiro Eleitoral em outra coluna (http://www.conjur.com.br/2016-set-06/contas-vista-financiamento-campanhas-eleitorais-risco-cafe-society).

Sem o intuito de esgotar o assunto, quero trazer ao debate uma decisão do STF em que foi afirmado que o Princípio da Moralidade só vale para a administração pública, afastando expressamente sua aplicação para o Poder Legislativo. Remanescem daquela composição os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, que votaram de forma divergente, como se verá.

Relembrando: a Lei 8.744/1993 concedeu anistia financeira aos eleitores que haviam deixado de votar no plebiscito feito naquele ano. Posteriormente, a Lei 9.274/1996 concedeu: 1) anistia financeira aos débitos dos eleitores que deixaram de votar nas eleições de 1992 e 1994, bem como aos membros das mesas receptoras que deixaram de atender à convocação da Justiça Eleitoral; e 2) anistia criminal aos “fatos definidos como crime no art. 344 da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral”. Essa norma eleitoral tipifica como crime “recusar ou abandonar o serviço eleitoral sem justa causa”, punindo-o com “detenção até dois meses ou pagamento de 90 a 120 dias-multa”.

Seguindo essa linha, o senador Gerson Camata (PMDB-ES) apresentou em 1999 o projeto de lei (PLS 81/99), onde, ao lado da usual anistia aos eleitores inadimplentes (artigo 1º), previa[2]:

Art. 2º São igualmente anistiados os débitos resultantes das multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, a qualquer título, em decorrência de infrações praticadas no período de 7 de abril a 25 de outubro de 1998.

Parágrafo único. A anistia referida neste artigo não se aplica a candidatos eleitos.

Pela redação, vê-se que se tratava de uma proposta de anistia financeira para os candidatos não eleitos, o que, por si só, já seria bastante discutível, pois não haveria justificativa plausível para tal conduta. Porém, assim foi aprovada no Senado Federal.

Ao chegar à Câmara dos Deputados, o referido projeto de lei recebeu o número 934/1999 e foi objeto de diversas emendas parlamentares, sempre com a utilização retórica da justificativa de ampliar a anistia aos eleitores (objeto do artigo 1º), mas alterando o teor do artigo 2º, que ampliava a anistia aos políticos — inclusive dos eleitos, o que se caracterizava como uma vantagem individual a eles, o que foi uma decisão de duvidosa moralidade, pois se tratava de uma vantagem autoconcedida, isto é, um privilégio, e não uma prerrogativa.

O texto final ampliou o período para abranger e anistiar também o ano de 1996. O texto foi aprovado por votação nominal na Câmara dos Deputados por 261 votos favoráveis, 110 contrários e 13 abstenções[3].

Em face das modificações, retornou ao Senado, que confirmou as alterações propostas e encaminhou o seguinte texto ao presidente da República, contemplando em seu artigo 2º ampla anistia financeira aos políticos que cometeram infrações eleitorais, tenham ou não sido eleitos:

Art. 2º São igualmente anistiados os débitos resultantes das multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, a qualquer título, em decorrência de infrações praticadas nos anos eleitorais de 1996 e 1998.

O então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, vetou na íntegra o projeto de lei em 21 de dezembro de 1999[4]. O Congresso Nacional rejeitou o veto, tendo seu presidente, Antonio Carlos Magalhães, promulgado a Lei 9.996, em 14 de agosto de 2000[5].

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou no STF com a ADI 2.306, com pedido de medida cautelar, que foi relatada pelo ministro Octavio Gallotti. Os principais argumentos utilizados foram os da violação ao Princípio da Moralidade Pública, a afronta ao Estado Democrático de Direito e à segurança jurídica, e atentar contra a coisa julgada eleitoral, pois as multas aplicadas já haviam transitado em julgado.

No julgamento da cautelar, em setembro de 2000, foi trazido ao debate pelo relator a questão da titularidade do dinheiro das multas, o que turvou os pontos centrais em discussão. O ponto de relevo ocorreu quando o ministro Moreira Alves afirmou que o Princípio da Moralidade era um princípio constitucional para a administração pública, e não para o Estado-Legislador, pois, “a não ser assim, poder-se-ia até considerar que a anistia de crime seria imoral”. O ministro Carlos Velloso, chegou a contestar a posição de Moreira Alves, argumentando que “anistiar filhos de parlamentares que tenham cometido crimes, ou os próprios parlamentares, ter-se-á praticado ato não condizente com a Moralidade administrativa”. Recebeu como resposta que tal hipótese não se referiria a moralidade, mas a “devido processo legal em sentido material”. A liminar foi concedida em 27 de setembro de 2000, por maioria de votos, no sentido de suspender os efeitos da norma.

Ocorre que, de vencido na cautelar, o argumento do ministro Moreira Alves passou a vencedor no julgamento de mérito da ADI 2.306, em 21 de março de 2002, relatado pela ministra Ellen Gracie, sucessora do ministro Gallotti, então aposentado.

O voto da ministra relatora foi pela improcedência da ADI, revertendo a medida cautelar antes concedida. Seu voto foi seguido pelos ministros Nelson Jobim, Moreira Alves, Celso de Mello, Carlos Velloso, Ilmar Galvão e Maurício Correa. Foram vencidos os votos dos ministros Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Nery da Silveira e Marco Aurélio.

Os acirrados debates demonstram a maioria considerando a impossibilidade de aplicação do Princípio da Moralidade aos atos do Poder Legislativo, e a minoria defendendo sua aplicação a todos, de forma ampliativa. A transcrição de alguns trechos dos debates é reveladora das posições adotadas naquele julgamento paradigmático, e que foi o primeiro — e até onde sei, o único — a se debruçar sobre anistias financeiras eleitorais:

Ministro Nery da Silveira — Ninguém pode descumprir a legislação eleitoral, especialmente os candidatos que estão buscando o poder. Essas infrações, todos sabemos, causam a desigualdade dentro do processo eleitoral.

[...]

Ministro Moreira Alves — Não levo a esse radicalismo, porque o problema, aqui, é o de saber se o princípio da moralidade se aplica, ou não, ao Poder Legislativo. Pela nossa Constituição, não...

Ministro Sepúlveda Pertence — Pode até mudar de nome, mas há abuso do Poder Legislativo.

Ministro Moreira Alves — Não há abuso do Poder Legislativo.

Ministro Nery da Silveira — Ministro, tudo, aquilo que estiver em descompasso com os princípios da Constituição não há de merecer acolhida.

Ministro Moreira Alves — Quais são esses princípios?

Ministro Nery da Silveira — V. Exa. entende que o sistema democrático não é princípio básico da Constituição?

Ministro Moreira Alves — Por acaso o sistema democrático necessita de voto obrigatório? Por que os países democráticos não têm voto obrigatório? Se o voto não fosse obrigatório, não poderia haver multa.

Ministro Nery da Silveira — Anistia aos eleitores, até admitiria, mas não a admito quanto aos candidatos que cometem infrações, tornando desigual o processo eleitoral.

[...]

Ministro Moreira Alves — O ministro Celso de Mello está lembrando que até a corrupção eleitoral tem sido anistiada.

(...)

Ministro Marco Aurélio — Na espécie, essa lei não é revestida de razoabilidade, de proporcionalidade; é contrária ao regime democrático, à República, e instaura um verdadeiro incentivo a que não sejam cumpridas, nas eleições — estamos próximos a uma eleição que se anuncia trepidante —, as decisões da Justiça Eleitoral, partindo-se para o campo do faz-de-conta. Tenho como envolvido – perdoem-me aqueles que pensam de forma diversa – o princípio da moralidade, conjugado, no art. 37 da Carta da República, com o princípio da eficiência do Estado em atuação da maior importância, porque, repito, está ligada àqueles que dirigirão os destinos do Estado.

Em suma, foi vencedora a posição adotada pela relatora, e a lei foi considerada constitucional, acarretando anistia financeira inclusive para os políticos eleitos que cometeram infrações eleitorais nos anos de 1996 e 1998. A maioria vencedora no STF não levou em consideração — a despeito de expressa e formalmente alertada — de que se tratava de uma anistia que os políticos estavam se autoconcedendo (artigo 2º), e não apenas de uma anistia a terceiros, eleitores e mesários (artigo 1º).

Nitidamente, o STF utilizou uma visão absolutamente restritiva e formal quanto ao Princípio da Moralidade, afirmando que sua validade se restringia à administração pública, e não a todas as pessoas, físicas e jurídicas, públicas e privadas. Aqui residiu o grave erro de percepção da maioria vencedora, segundo meu ponto de vista.

O fato é que esse julgamento praticamente validou uma espécie de vale-tudo financeiro eleitoral ocorrido anteriormente, pois não foi coibido no devido modo e tempo, e apontou certa linha de conduta para as eleições posteriores, nas quais essa espécie de vale-tudo financeiro eleitoral se manteve — e se mantém. Basta ler as páginas políticas dos jornais e sites, que pululam notícias sobre a criminalização do caixa dois eleitoral, que o senador Lobão quer ver aplicada aos atuais parlamentares acusados na operação "lava jato".

Como visto, daquele julgamento ainda remanescem no STF o ministro Celso de Mello (que votou confirmando a tese de que o Princípio da Moralidade se aplicaria apenas à administração pública) e o ministro Marco Aurélio (que votou pela aplicação desse Princípio a todos).

Se aprovada a anistia ao caixa dois eleitoral, haverá quem a submeta ao STF? E como votarão os ministros remanescentes e os atuais?

Como você votaria, caro leitor, se estivesse no lugar deles e fosse ministro do STF?

[1] Foi perguntado pelos repórteres Julia Lindner e Caio Junqueira ao senador Lobão: “Discutiu-se muito na Câmara dos Deputados no ano passado a chamada anistia ao caixa 2. A Câmara está voltando a articular isso. O sr. apoia?”, e a resposta foi: “A figura da anistia existe. Todo ano, o presidente anistia alguns presos por conta disso ou daquilo. Houve a lei da anistia durante o regime militar. Resta saber se anistia tal ou qual é conveniente. Vou aguardar que a Câmara decida lá, quando vier para cá nós avaliaremos. O que eu quero dizer é que é constitucional a figura da anistia, qualquer que ela seja. Anistia não se faz somente para isso, outros crimes podem ser anistiados”.
[2] A íntegra do processo legislativo está disponível em: . P. 1.
[3] A íntegra do processo legislativo está disponível em: . P. 52.
[4] Disponível em: .
[5] Disponível em: .

http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/contas-vista-poder-legislativo-respeitar-principio-moralidade




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