Mano
Brown é um intelectual.
Repetindo:
o líder dos Racionais MC’s é um intelectual! Quem afirma isso é o sociólogo
Rogério de Souza Silva, que defendeu na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) a tese de doutorado “A Periferia Pede Passagem: Trajetória social e
Intelectual de Mano Brown”.
O
trabalho acadêmico partiu de uma hipótese que, à primeira vista, soa bastante
aceitável: o hip-hop, e particularmente o rap, têm o poder de salvar vidas de
jovens nas comunidades pobres brasileiras. Mas o que realmente impacta na tese
é o reconhecimento do autor de que os artistas populares representam os novos
organizadores da cultura, fazendo emergir a figura do “intelectual periférico”.
Por
que e como Mano Brown se transforma em um intelectual é a questão que se propôs
a investigar o pesquisador da Unicamp. Ele explica que foi a partir da figura
do líder dos Racionais MC’s, como expoente do rap brasileiro, que muitos jovens
passaram a reconhecer suas origens, histórias e identidades. Outras lideranças
históricas, como Malcom X, Martin Luther King, Zumbi dos Palmares e Nelson
Mandela, também inspiraram muitos seguidores do hip-hop. “Esses jovens, na sua
maioria negros e pobres, alcançam uma consciência para reivindicar o reconhecimento
dos seus direitos”, escreveu.
Na
sua investigação, Souza Silva procurou traçar a trajetória do rap brasileiro,
cujo ponto de partida se relaciona com um contexto social muito específico. Nos
anos 1980, as grandes cidades passam a sentir os reflexos de anos de migrações
em massa que transformaram camponeses em operários. Cidades despreparadas para
receber esse aumento populacional tratam de empurrar o trabalhador braçal para
as periferias sem a menor infraestrutura. Tem-se ao mesmo tempo o fim da ditadura
e o sonho de que a redemocratização traga soluções para esses problemas. Mas
não traz. No fim dessa década e início da seguinte, a violência explode e o
pobre vira o vilão dessa história. O rap vira a tradução dessa luta pelo
reconhecimento e um apelo à não discriminação.
“Mano
Brown se torna uma referência, não só pela parte artística, mas pela liderança,
que passa por sua fala, pela postura, pelo olhar e até pela vestimenta”,
explica Souza Silva. Referenciando Pierre Bordieu, que teoriza sobre os campos
sociais, o pesquisador afirma que o vocalista dos Racionais domina muito bem os
códigos do hip-hop, enquanto outros rappers não conseguem o mesmo feito.
“GOG
(Genival Oliveira Gonçalves) tem uma fala muito boa, também politizada,
enquanto o Mano Brown prefere o linguajar mais simples e direto. Já o Gabriel o
Pensador, que tem um talento fantástico, é um grande produtor cultural, mas não
circula com naturalidade no campo social do hip hop”, diz.
No
ápice da violência nos anos 1990, as periferias passaram a interessar à mídia
(pelo viés negativo) e a sociólogos e antropólogos (pelo lado acadêmico), ao
mesmo tempo em que organizações não-governamentais passavam a ocupar o papel do
Estado (na falta dele).
Do
lado musical, Mano Brown foi a figura que mais se destacou, assim como na
literatura marginal sobressaíram nomes como Paulo Lins (Rio) e Ferréz (São
Paulo). Não por acaso Souza Silva fez sua dissertação de mestrado sobre esse
tema, publicando, em 2011, o livro Cultura e Violência, Autores, Contribuições
e Polêmicas da Literatura Marginal (Editora Annablume).
Filho
de pai porteiro e mãe diarista, o sociólogo cresceu numa Cohab (conjunto
habitacional popular) de Itapevi, na Grande São Paulo, ouvindo sons de sua casa
e de vizinhos tocando rap, sertanejo, forró e brega, num “emaranhado musical
brasileiro bastante eclético”.
Foi,
então, cursar ciências sociais na Unesp de Araraquara, imaginando que poderia
virar professor de história, geografia, filosofia, sociologia e antropologia.
Lá teve contato com a chamada “Escola Paulista de Sociologia”, cujos nomes mais
representativos são Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio
Ianni. Foi o suficiente para motivá-lo a seguir a vida acadêmica.
Na
pesquisa de doutorado, Souza Silva recorreu aos estudos culturais de autores
como Stuart Hall, Raymond Willians e E.P. Thompson, procurando fazer uma
análise da cultura das relações de poder interrelacionada às estratégias de
mudança social. Em sentido largo, esses estudos enfatizavam a necessidade de
ouvir a “voz do outro”, venha de onde vier, inclusive das periferias.
Outra
referência utilizada pelo pesquisador foi a do filósofo e cientista político
Antonio Gramsci, que falava que o poder das classes dominantes sobre o
proletariado poderia ser mantido sobretudo pelo conceito de hegemonia cultural.
Para fazer frente a esse tipo de controle, o marxista Gramsci defendia a
importância que tinham os “intelectuais orgânicos” que surgem espontaneamente
de cada grupo social.
Por
que as periferias não haveriam de forjar seus próprios intelectuais?, questiona
Souza Silva. Mano Brown seria o maior expoente, mas outros nomes como Rapin’
Hood, Thaíde, Marcelinho, Max BO e até mesmo Emicida também podem ser incluídos
nessa lista.
A
ascensão de intelectuais periféricos se dá paralelamente à chamada crise dos
intelectuais tradicionais, exatamente nos anos 1990 e 2000. Sobretudo os de
vertente progressista, sucumbidos pela lógica neoliberal que reinou no período.
E é nesse sentido que os estudos culturais acabam por afirmar que os valores
estéticos baseados apenas na produção de livros e outras obras artísticas não
podem servir de único referencial do nosso tempo.
“A
influência do intelectual sobre a opinião pública está minimizada e não podemos
deixar de reconhecer o enfraquecimento progressivo do seu papel de oráculo que,
cada vez mais, encontra dificuldade em fazer-se ouvir”, escreveu na tese. No
fundo, afirma Souza Silva, não se pode imaginar que alguns poucos eleitos sejam
capazes de definir para o resto da sociedade os signos “corretos”. Se essa
visão prevalecesse, apenas as pessoas que dominam os códigos há mais tempo
teriam controle do que vem a ser “boa” ou “má” cultura. E possivelmente Mano
Brown seria só mais um mano.
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/01/doutorado-mano-brown-periferia.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário