No
grotesco teatro de marionetes sem voto popular em que se transformou a política
brasileira, a disputa em torno da herança de Teori Zavaski tornou-se acima de tudo uma guerra aberta pelo poder.
Uma
semana depois que Elio Gáspari escreveu o artigo "Carmen Lucia,
Presidente", traduzindo com palavras sóbrias um conjunto de adjetivos
deslumbrados que já escapavam pela boca de apresentadores da TV Globo, a
presidente do STF encontra-se a caminho de assumir o controle real dos poderes da República e
tomar decisões cruciais para o presente e o futuro dos brasileiros.
Talvez
não seja possível nem conveniente quebrar todos os rituais e instalar a
presidente do STF na cadeira de Michel
Temer, como vinha sendo sugerido. Os riscos são muitos e todo cuidado seria
pouco numa conjuntura em que a prioridade é preservar a oportunidade única de
avanço de um pacote de reformas reacionárias em marcha acelerada pelo
Congresso, coisa que Temer tem sido capaz de encaminhar sem hesitações nem
escrúpulos de consciência. A aparição da candidatura de Yves Gandra para a vaga
de Teori no STF demonstra até onde pode ir o esforço de Temer para manter-se
agarrado ao poder.
Uma
operação de mudança, um golpe dentro de casa, doméstico, para falar sem
eufemismos, poderia abrir aquela brecha que gera tumultos inconvenientes numa situação de
estabilidade precária. A possibilidade é provocar forças incontroláveis, que os vitoriosos de maio-agosto querem
evitar de qualquer maneira: o retorno das mobilizações populares, amplas e legítimas, a exigir que o povo seja
ouvido sobre os destinos de seu país.
Numa fase histórica de esfacelamento das
instituições e autoridades suspeitas demais para exercer as funções que ocupam, o essencial é
o controle sobre a Lava jato. Quem tem isso, tem o poder de Estado na mão. E é
dessa perspectiva que pretende desenhar o futuro do país.
É
na carceragem de Curitiba que o grande jogo de interesses se resolve no país de
hoje, numa guerra permanente de facções
-- aqui engravatadas, sem o chinelo e o calção azul do Anísio Jobim e outros presídios -- para
definir o destino dos sobreviventes da
República, não só o presidente, os
ministros, dezenas de senadores e deputados, centenas de empresários e altos
executivos. Essa é a importância de garantir quem vai homologar, ou não, as
delações da Odebrecht.
Neste
local, todo mundo pode se transformar em prisioneiro e enfrentar meses de
tortura psicológica para confessar e delatar. Ou ficar em silêncio e apodrecer
sem perspectiva real de retorno à vida em liberdade, ainda que não tenha sido
condenado.
Do
lado de fora, temos um país onde uma depressão apocalíptica -- induzida pelo
atual projeto de Estado Mínimo e pela insegurança do empresariado para
investir -- já criou um desemprego
recorde. Devorou nossa maior empresa
pública, a Petrobras e os maiores grupos produtivos privados, quebrando a
espinha dorsal de várias famílias de executivos e empresários que fizeram parte
da 8a. economia do mundo.
No
plano da Justiça-Política, ainda se inutilizou aquela parcela de homens
públicos que, com seus imensos e inúmeros defeitos e fraquezas, constituiu a
fatia menos corrupta, menos hipócrita e
socialmente mais responsável da geração que derrotou a ditadura militar.
Por
isso a retomada dos trabalhos com a indicação do ministro que irá assumir a
relatoria que pertencia a Teori Zavaski ganha prioridade absoluta. Nem se
cogita, sequer por um minuto, cumprir o ritual previsto no artigo 38 do
regimento Supremo, que prevê que os casos deixados pela morte e ou
aposentadoria devem ser herdados por seu substituto. Queremos, logo, correr
para a exceção, para o caso particular, a solução interna e rápida. Virou
hábito.
Pode
ser até uma boa ideia. Não vamos discutir o caso específico. Mas vamos ver o
argumento, entender o que está no fundo, pavimentando um caminho, pela
insistência e pela repetição, até se transformar numa opção permanente, ao
alcance de quem tem a mão mais forte.
Estamos
aceitando demais, a toda hora, a visão de que situações excepcionais -- como a
morte inesperada de um ministro do STF -- exigem respostas excepcionais. Foi
assim com as conversas Lula-Dilma que impediram o ex-presidente de assumir a
Casa Civil. Foi assim com o impeachment, sem prova de crime de
responsabilidade, ausência tão descarada que hoje ninguém se atreve a mencionar
a expressão "pedaladas fiscais." A lista de exemplos é longa, vamos
combinar. Parece lógico, inofensivo, mas é reconhecidamente desastroso.
O grande formulador dessa teoria das situações
excepcionais foi Carl Schmidt, o professor de Direito que construiu a
jurisprudência do nazismo. Em nome de um ambiente dificílimo, do ponto de vista
social, econômico e político da Alemanha
na década de 30, ele dizia exatamente isso. O resultado nós
conhecemos. A manipulação da
investigação sobre o incêndio do Reichstag, ocorrido sob condições realmente
"excepcionais" que marcavam o difícil começo do governo de Adolf
Hitler -- vitorioso por margem apertada numa eleição disputada voto a voto
contra o Partido Comunista -- permitiu perseguir adversários de forma
implacável, suspender garantias individuais
e consolidar uma tirania criminosa
que só seria vencida doze anos depois por uma coalizão de inimigos externos.
Lição
elementar: quando a Justiça esvazia a legitimidade da política e da democracia,
o importante é chave da cadeia.
Isso
explica por que nos dias de hoje o destino da Lava Jato tornou-se nova versão
de periódicas discussões políticas que se anuncia em tom de grande gravidade,
mas cujo significado real ninguém esclarece.
"Reforma
política" e "reforma tributária" são as favoritas. Queremos uma
"reforma política" para controlar criar um regime
semi-parlamentarista? Para reverter a lei que proíbe contribuição de empresas?
No
capitulo da "reforma
tributária" o plano é cobrar impostos de quem não paga, corrigir
distorções e avançar na direção de uma sociedade mais igualitária, com recursos
para bancar um sistema de bem-estar social? Ou queremos uma reforma para
diminuir os impostos dos ricos, favorecer a especulação e esvaziar o Estado
através de medidas privatizantes?
A
mais nova expressão dessa família nasceu com a morte de Teori Zavaski. Consiste
em levantar o risco de uma "guinada" na Lava Jato. Ou "parar a
Lava Jato." É preciso "proteger" a Lava Jato. Queremos o Zavaski que denunciou a
"masmorra" de Curitiba? Ou aquele que cronometrou o impeachment e
deixou Eduardo Cunha solto até terminar o serviço? Aquele mandou soltar presos
sem culpa ou o Zavaski que mandou encarcerar um senador no exercício do
mandato?
Mais
uma vez, é preciso saber o que queremos dizer com isso.
Vamos esclarecer: a Lava Jato cumpre uma função necessária, de
combate a corrupção. O desvio de recursos
humilha os brasileiros, desmoraliza a democracia, favorece o privilégio
e a desigualdade. Não há dúvidas aqui.
Mas
a operação transformou-se numa ameaça à democracia. Questiona a divisão entre
poderes. Criminaliza a política e práticas eleitorais que eram perfeitamente
legítimas e legais até outro dia -- quando um princípio constitucional
elementar recorda que não há crime sem lei anterior que o defina.
Não
respeita o direito de defesa quando pessoas sem sentença condenatória são
aprisionadas por longos períodos, medida
que já chegou a justificada pelo argumento das excepcionalidades. Dizia-se que
deve ser assim mesmo, pois esta é a
regra da maioria dos presídios
brasileiros, que não há motivo para garantir um tratamento preferencial para
ricos e poderosos apanhados pela primeira vez
-- jurisprudência degolada sem piedade na atual temporada de
assassinatos que se vê no país inteiro, que levou, é claro, um governo
democraticamente fraco a pedir socorro às Forças Armadas.
O caráter seletivo das investigações é uma evidência
cristalina e desmoralizadora. Cadê o "Careca"? E o "Santo"?
Como
era previsível, o ovo da serpente da situação de exceção, o temível
"guarda da esquina" que levou o vice Pedro Aleixo a enfrentar o
Comando Militar e votar contra o AI-5 que instalou a ditadura, em dezembro de
1968, se materializou de modo espetacular no Brasil de 2017. Para confirmar que
medidas de exceção sempre estimulam
novas medidas de exceção, transformando-se numa prática cotidiana de agentes do
Estado, apareceu em São Paulo um
delegado que usou a mesma teoria do "domínio do fato" que fez sua
aparição no julgamento AP 470/Mensalão, para mandar prender Guilherme Boulos
durante uma mobilização por moradia em São Paulo. Detalhe: em 2012, na AP 470,
o próprio Claude Roxin, que formulou a noção de domínio do fato nos meios
jurídicos internacionais, fez questão de deixar claro que havia sido
interpretado de forma errada, superficial, pelas autoridades brasileiras. Como
se poderia imaginar, foi essa interpretação -- distorcida -- que funcionou para
justificar a prisão de Boulos.
Enfraquecida
pelas denúncias contra executivos e
fornecedores, a Petrobras, maior empresa da 8a economia do mundo, está sendo
leiloada como se fosse carcaça enferrujada num ferro-velho. Enquanto empresas
estrangeiras de porte comparável, condenadas por práticas idênticas em países considerados civilizados, são
preservadas por acordos de leniência, que dispensam a água suja do banho sem
jogar fora a criança, a Petrobras está sendo jogada no precipício da destruição
de um patrimônio econômico, tecnológico e formação de pessoal. Este espetáculo
deve prosseguir? Interessa a quem?
Juristas
importantes e respeitados, dentro e fora do país, tem críticas a fazer.
Ocupante da linha de frente em defesa da Lava Jato, o Estado de S. Paulo tem
multiplicado editoriais em tom crítico.
Minha
visão é que, há sim um debate a ser feito para restaurar a presunção da
inocência, recuperar o direito de defesa e outras medidas que poderiam
preservar o Estado Democrático de Direito e evitar a consolidação de um regime
de exceção. Seria bom para o país.
A pressa em indicar um novo relator cumpre a
função de abafar a discussão. E aqui é
preciso entender uma questão sobre a possibilidade de que Teori Zavaski tenha
sido vítima de um atentado.
Até
agora, não surgiu um único fato capaz
de sustentar esta hipótese. Isso não quer dizer que seja falsa, obviamente.
Apenas que deve ser vista com prudência e dúvida, de forma responsável. Sem
fatos nem evidencias conclusivas, a hipótese de
um atentado criminoso cumpre uma serventia política indesejável: ajuda a
criar um ambiente emocional, desfavorável a todo debate, a qualquer discussão racional. Coloca toda
crítica sob suspeita, o que é uma forma primária de autoritarismo.
A censura aos trabalhos de investigação fazem
parte dessa discussão. Nós sabemos o único efeito real dessa medida: são os vazamentos seletivos,
que permitem à mídia amiga manipular aquilo que se conhece -- e o que se
imagina -- ao sabor de suas conveniências.
No Brasil de 2017, a questão central é impedir
que um país inteiro seja transformado
numa nação de 206 milhões de marionetes.
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/276830/Querem-nos-transformar-num-povo-de-marionetes.htm
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