“quem
procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não
encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.– Tobias Barreto
Após
17 horas de rebelião no Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em
Manaus, a Secretaria de Segurança Pública informou que entrou no presídio às 7h
(9h no horário de Brasília) desta segunda-feira (2). Segundo o secretário de segurança
pública do Estado, Sérgio Fontes, ao menos 60 detentos foram mortos. Além da
rebelião, 87 presos fugiram de outra unidade prisional horas antes. O número de
mortos ainda não é definitivo já que a revista e contagem dos presos no Compaj
ainda não foi concluída.
Segundo
o secretário de Segurança Pública, a rebelião, uma das maiores da história do
país, ocorreu em razão da guerra entre facções rivais pelo controle de tráfico
de entorpecentes em Manaus. A facção conhecida como FDN (Família do Norte) teria
atacado membros do PCC (Primeiro Comando da Capital). Segundo informações da
Seap (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária), o regime fechado do
Compaj tem capacidade para 454 presos e abrigava 1.224. Um excedente de 770
presos. O regime semiaberto do mesmo presídio onde ocorreu a rebelião, com
capacidade para 138 presos, contava com 602 antes dos assassinatos. Neste
setor, o excedente era de 464 presos.[1]
Em
1985 – há mais de três décadas – Arminda Bergamini Miotto já alertava sobre o
problema da superpopulação carcerária nas grandes penitenciarias, como um dos
fatores de incremento da reincidência. Segundo a autora:
“nas
penitenciárias de grande porte, geralmente situadas na região da capital para
onde convergem todos os condenados da respectiva Unidade da Federação,
lotando-as e superlotando-as, as circunstâncias fazem com que a situação seja
essa, ainda que a administração entenda que deva ser diferente e deseje que
possa sê-lo. Sem falar no que, ademais, costuma acontecer numa penitenciaria de
grande porte, provavelmente superlotada, aí está uma relevante explicação para
o tão grande número de reincidentes entre os egressos”. [2]
Maria
Lúcia Karam, igualmente, observa que grande parte dos “homicídios brutais,
entre os próprios presos, nasce da convivência forçada, que faz com que
qualquer incidente, qualquer divergência, qualquer desentendimento, qualquer
antipatia, qualquer dificuldade de relacionamento, assumam proporções
insuportáveis. O desgaste da convivência entre pessoas, que, eventualmente, não
se entendam, aqui é inevitável. As pessoas que não se ajustam, os inimigos são
obrigados a se ver todos os dias, a ocupar o mesmo espaço, o que,
evidentemente, acirra os ânimos, eleva a tensão, exacerba os sentimentos de
ódio, levando, muitas vezes, a que um preso mate outro, por motivos
aparentemente sem importância”.[3]
As
autoridades, salvo as honrosas exceções, por sua vez, sempre procuram atribuir
a responsabilidade pelas rebeliões e pelas mortes ocorridas nas penitenciárias
brasileiras aos próprios presos. A sociedade, cada vez mais intolerante e
influenciada por políticos fascistas, exalta o número de mortos e brada que
“bandido bom é bandido morto”.
O
Brasil, com quase 700 mil presos, está entre os quatro países do Planeta com a maior
população carcerária em números absolutos. Deste total, cerca de 250 mil presos
são provisórios, ou seja, presos que ainda não foram condenados
definitivamente, mas que a “justiça” insiste em manter preso sem qualquer
fundamentação jurídica e legal, transformando a prisão preventiva de caráter
excepcional em regra.
Os
tribunais de todo o país, inclusive os superiores, embalados nos braços do
populismo penal e da mídia criminológica, vêm demudando a prisão preventiva,
inadequadamente, em antecipação da tutela penal.
Sim,
os juízes, desembargadores e ministros fecham os olhos para a violência que é o
sistema penal. Sistema penal repressor, estigmatizante e seletivo. Sistema
penal que destrói os mais vulneráveis da sociedade. Sistema penal desumano e degradante.
O
sangue derramado nas rebeliões escorre pelas mãos de inúmeros promotores e
juízes de todo o país. Promotores e juízes que dão as costas para o sistema
penal, que lavam as mãos nas águas do punitivismo penal.
Não
é menos grave o fato de que nas penitenciárias brasileiras encontram-se várias
pessoas condenadas por crimes de bagatela ou por tráfico de drogas, em razão da
equivocada aplicação da lei de drogas que, também, não distingue como deveria o
referido crime. Segundo os dados do INFOPEN – junho de 2014 – o tráfico de
drogas, 27% dos crimes informados, é o de maior incidência, seguido pelo roubo,
com 21%. No que diz respeito ao “tráfico”, a maioria destas pessoas condenadas
ou presas provisoriamente, na verdade, não passam de meros usuários ou pequenos
“traficantes” que muitas vezes sem intenção de lucro ou de meio para sua
subsistência cedem pequena quantidade de droga a terceiros. Só aí, são cerca de
40 mil pessoas que poderiam estar cumprindo suas penas fora da prisão.
Como
dissemos em nosso “Da Reincidência Criminal”[4],
“a
privação de liberdade é a consequência mais visível da pena de prisão. Contudo,
outros sofrimentos, algumas vezes obscuros, infligem ao preso um sofrimento até
maior: a falta de privacidade; a privação de ar, de sol, de luz, de espaço em
celas superlotadas; os castigos físicos (torturas); a falta de higiene; a
violência e os atentados sexuais cometidos pelos próprios companheiros de
infortúnio; a humilhação imposta inclusive aos familiares dos presos; o uso de
drogas como meio de fuga, etc.”.
Não
é necessário percorrer as penitenciárias brasileiras para tomar conhecimento da
tragédia há muito anunciada. O sistema penal é perverso e vil. A superlotação
já é considerada “normal”, enquanto isso, o STF mitiga a presunção de inocência
e juízes continuam a decretar prisões preventivas a rodo, a negar sua
substituição por outras medidas cautelares e, alguns, querem até mesmo o fim da
salutar audiência de custódia.
A
prisão é o meio criminógeno por excelência, é “um universo alienante”, “um
sofrimento estéril”, diria Louk Hulsman. Os males da prisão e suas contradições
já foram proclamados em todo o mundo, como já foi por diversas vezes
salientado, a prisão muda o delinquente para pior. Na prisão os homens e
mulheres passam por um processo de prisionização, são despersonalizados e
dessocializados.[5]
O
sistema punitivo tornou-se uma máquina de produzir a criminalidade e está longe
de trazer alguma espécie de paz social, verdadeiro paradoxo, um sistema
seletivo, estigmatizante, que avilta e degrada, potencialmente capaz de
transformar seus destinatários em seres mais violentos, mais perversos, como o
próprio sistema. Uma realidade muito distante da sociedade que o recebe sem a
mínima chance de reintegração social. As condutas que definimos como criminosas
são um fenômeno social inevitável, fruto de uma sociedade injusta e desigual. O
sistema de justiça punitiva, comprovadamente, não educa nem reintegra, pelo
contrário, avilta e degrada.
Basta!
Chega de mentiras e hipocrisias. Desde sempre se ouve falar dos problemas
penitenciários e de supostas soluções. Basta! Não é mais possível que seres
humanos sejam tratados como são os presos no Brasil. Basta! De censos,
estatísticas, números, cálculos etc., eles não são mais necessários para
demonstrar o que é do conhecimento de todos, o que é evidente, o que é
doloroso, mas que alguns insistem em negar ou em manter.
Basta
de fingir que vivemos em um Estado democrático de direito.
Feliz
Ano Novo! Para quem?
Leonardo Isaac
Yarochewsky é Advogado Criminalista e Membro do CNPCP
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/03/o-sangue-derramado-nas-rebelioes-escorre-pelas-maos-de-inumeros-promotores-e-juizes-de-todo-o-pais/?utm_content=buffer96839&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer
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