As
questões de fato e de direito, a serem lembradas obrigatoriamente em ações
judiciais movidas contra multidões pobres, quando ignoradas por decisões
liminares e sentenças judiciais de mérito, podem criar antecedentes
jurisprudenciais não só infringentes da Constituição Federal, como servir de
poderosa reprodução da injustiça social,
Por
sua sumariedade e reducionismo, limitada toda a apreciação da prova e todo o
debate sobre o ordenamento jurídico cogitável para cada caso, submetidos apenas ao Código Civil e ao Código de
Processo Civil, por sua repetição indiscriminada, essa anomalia dispensa o
trabalho das/os juízas/es, dá licença ilegal para suas decisões e sentenças
ficarem livres de preocupação com tudo o que está envolvido nos direitos e na
justiça em causa.
Aproveitada
fora do contexto de cada caso, fortalece um “senso judicial comum”, alheio a um
conjunto fático-jurídico de necessária e legal cogitação em conflitos
fundiários levados a juízo, que opõem latifúndios urbanos e rurais usados de
modo anti social a multidões compostas por gente pobre sem-terra e sem-teto, faveladas/os, populações indígenas
tradicionais, como se ela não fosse titular de cidadania, de direitos sociais
previstos em outras leis sobre terra, nem devesse ser respeitada em sua dignidade.
Um
bem como esse, base física indispensável ao teto e ao pão de qualquer pessoa,
em vez de ter essa condição material, concreta, lembrada prioritariamente por tais decisões, fica
sumido em papelada, abstrações documentais, burocracia, preso a antecedentes
históricos, muitos deles reféns de preconceitos de classe, ideologia, doutrina
e saberes sujeitos a um poder de exclusão absolutamente privatista, como se
toda a realidade e toda a justiça existisse somente para servir essa função.
A
terra deixa então de ser terra e o direito de acesso a ela, expressamente
previsto, por exemplo, em mais de um capítulo da Constituição Federal,
especialmente nos de política urbana (artigos 182 a 183), política agrícola e
fundiária e de reforma agrária (artigos 184 a 191), no Estatuto da Terra
(especialmente em seu artigo 2º), em várias disposições do Estatuto da Cidade)
fica submetido a uma interpretação de peso secundário, hierarquicamente
inferior, precisando sempre, para fazer-se reconhecer como existente, válido e
eficaz, perante o Poder Judiciário, de
fazer passar o camelo pelo buraco da agulha, uma impossibilidade que,
por ironia, foi denunciada por Jesus Cristo como igual a de um rico entrar no
céu…
Sem
exame detalhado do uso dessa terra, como impõem esses e muitos outros artigos
de lei, não se têm como saber se ela está sendo respeitada em função da sua
própria natureza e das necessidades humanas dela dependentes. Não faltam
juristas para denunciar o quadro de injustiças e impropriedades, empoderado por
sentenças judiciais alheias a uma tal condição, prolatadas costumeiramente em
ações reivindicatórias e possessórias movidas contra famílias pobres em todo o
país, violando flagrantemente direitos sociais e dando apoio ao descumprimento
da função social da propriedade e da posse sobre terra.
Uma
síntese dessa inconveniência inconstitucional e injusta está muito bem
retratada por Rodolfo de Camargo Mancuso, em um dos seus estudos sobre “Acesso
à Justiça. Condicionantes legítimas e ilegítimas”, reeditado pela Revista dos
Tribunais o ano passado:
Conflitos
multitudinários ou metaindividuais que hoje abundam na sociedade massificada,
comprimida num mundo globalizado, não são de molde a serem resolvidos por uma
justiça de corte retributivo/comutativo, mas reclamam uma justiça de perfil
distributivo e coexistencial que trabalha com as diferenças e assim se dispõe a
lidar com a controvérsia em todas as suas facetas, buscando compô-la em sua
integralidade, em tempo hábil e de modo justo, antes que tentar debelá-la a
qualquer preço, sob a autoridade do poder estatal, via solução adjudicada. Uma
coisa é lidar de maneira responsável e finalista com o processo, outra coisa é
se livrar dele prematuramente ou administrá-lo burocraticamente.” (p.283). {…} “Isso se tem observado, particularmente,
quando da judicialização de temas de largo espectro, que depassam a crise propriamente jurídica, como se dá com
as multitudinárias ocupações de latifúndios, em que, para além da moléstia
possessória, representada pelo esbulho, coexistem muitos outros pontos
controvertidos e complexos, tais a questão da função social da terra, o direito
à existência digna, a presença de segmentos protegidos por leis específicas,
(crianças, adolescentes, idosos, gestantes). Todo esse largo espectro promove um
conflito multiplexo, por isso mesmo refratário à solução, mediante a sentença
de mérito, ante as reduções e restrições, objetivas e subjetivas, a que se
sujeitam os processos judiciais, o que labora em detrimento da eficácia das
decisões neles proferida. Nesse sentido, o novo CPC, focando o “litígio
coletivo pela posse do imóvel”, prevê que, nos casos de esbulho ou turbação
reportados “há mais de ano e dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de
concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação, a
realizar-se em 30 (trinta) dias (…)” (art. 565 caput).” (.p.285, grifos do
autor).
Quando
uma decisão judicial não leva esses cuidados em consideração, como acontece
frequentemente no Brasil, a força pública
obrigada a executá-la, de pública e humana não tem nada. Retorna à
violência própria da idade da pedra, quando os conflitos sobre terra eram
resolvidos como fazem ainda hoje os animais, definindo e garantindo os seus
limites pelo espaço demarcado pela sua urina.
https://rsurgente.wordpress.com/2016/12/01/quando-a-injustica-social-e-fortalecida-por-sentencas-judiciais/?platform=hootsuite
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