Jornal
ouve a opinião de juristas de peso para analisar o pacote anticorrupção.
Segundo especialista: "no afã de punir os culpados, o pacote anticorrupção
levaria junto inocentes".
Na BBC
De
'zumbi fascista' a 'Frankenstein esquizofrênico'? A crítica de juristas de peso
a pacote anticorrupção
Por Ingrid Fagundez
Ao
longo de uma madrugada da última semana, a Câmara alterou o pacote
anticorrupção proposto pelo Ministério Público Federal e desencadeou (mais) uma
crise institucional.
Desde
então, os procuradores da Lava Jato ameaçaram abandonar a operação caso o novo
texto, aprovado na Casa, obtenha aval no Senado e seja sancionado pelo
presidente Michel Temer.
Para
a Procuradoria, os deputados aprovaram uma "pálida sombra" da
proposta inicial, defendida neste domingo em protestos pelo Brasil.
Mas,
na opinião de juristas ouvidos pela BBC Brasil, as medidas estavam longe de ser
unanimidade antes mesmo de chegarem ao Congresso como projeto popular apoiado
por mais de dois milhões de assinaturas.
Para
eles, a maioria das propostas dos procuradores é "autoritária" e
aposta na filosofia do "prender primeiro, perguntar depois".
Alguns
dos juristas vão além: dizem que as modificações feitas pela Câmara,
principalmente a supressão de vários trechos, são "menos piores" que
a proposta original, embora todos reprovem um dos pontos inseridos pelos
deputados - a emenda que estabelece crime de responsabilidade para juízes e
integrantes do Ministério Público.
A
versão original das "Dez Medidas Contra a Corrupção" inclui questões
polêmicas, como a criação de um "teste de integridade" para provar a
retidão de funcionários públicos e a hipótese de uma "prisão
extraordinária" para permitir a localização de bens desviados. Nesse caso,
não seria necessário provar que o acusado está escondendo os bens, como
acontece hoje com a prisão preventiva.
Os
deputados rejeitaram essas partes, mantendo apenas itens como a criminalização
do caixa 2 em campanha eleitoral, o aumento de punição para crime de corrupção
e a limitação de recursos em processos.
"O
projeto original era horroroso e o que passou também é bem ruim. Mas, se você
analisar em termos do respeito aos direitos e às garantias fundamentais, o
atual é menos pior", afirma o juiz Rubens Casara, professor de Processo
Penal da Escola de Magistratura do Estado do Rio.
"Tinha
um projeto que era um zumbi fascista e foi transformado num Frankenstein
esquizofrênico", compara.
Presunção
de inocência
Para
Casara, instrumentos como a prisão extraordinária representam um "tremendo
retrocesso", pois passariam por cima de direitos fundamentais como a
presunção de inocência.
Outros
juristas reforçam o argumento de que, no afã de punir os culpados, o pacote
anticorrupção levaria junto inocentes.
O
juiz federal Flávio Antônio da Cruz, do Paraná, ressalta que o direito penal
também serve para proteger quem não tem culpa, o que seria prejudicado no plano
no Ministério Público Federal.
Para
ilustrar sua opinião, ele cita a medida que fala sobre a criminalização do
enriquecimento ilícito.
No
pacote original, o enriquecimento seria punido, mesmo que não fosse possível
"descobrir ou comprovar quais foram os atos específicos de corrupção
praticados". Para evitar a pena, os investigadores ou o suspeito
precisariam mostrar que o dinheiro é lícito.
"Ninguém
é obrigado a provar sua inocência. Imagina que alguém não consiga mostrar a
origem do dinheiro, mas também não existam indícios de que o valor é ilícito. O
juiz pode condenar sem provas da corrupção", diz Cruz.
Procurado
pela BBC Brasil, o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, procurador Deltan
Dallagnol, afirma a possibilidade de prisão extraordinária já existe, mas se
tornaria mais específica.
"A
lei já permite que alguém seja preso quando a liberdade do réu representa um
risco para a aplicação da lei, inclusive no tocante ao produto e proveito do
crime, e quando ele está ocultando e dissimulando patrimônio."
Ele
nega que a proposta de criminalização do enriquecimento ilícito prejudique a
presunção de inocência. Isso porque, diz ele, cabe ao Ministério Público provar
que há uma diferença entre o patrimônio total de uma pessoa e os recursos e
bens que têm origem lícita.
"Além
disso, a dúvida sempre favorece o réu", acrescenta Dallagnol.
Punição
Segundo
os magistrados, a proposta dos procuradores vai contra estudos internacionais
que mostram que o aumento de punição não é o melhor caminho para combater um
delito.
Eles
citam o caso da Lei de Crimes Hediondos, de 1990, que elevou as penas, mas não diminuiu
a violência.
"Foi
o maior fracasso. Aumentaram-se as penas, a população carcerária dobrou e a
criminalidade não baixou. Ao contrário, cresceu com a criação das
facções", diz Marcelo Semer, ex-presidente da Associação de Juízes para a
Democracia.
O
ideal, afirmam, seria trabalhar na prevenção desses atos, mudando processos
administrativos como as licitações públicas. Eles argumentam que a corrupção é
sistêmica, influenciada por fatores sociais e econômicos, e precisa de mais do
que leis.
Em
resposta, Dallagnol defende a punição como instrumento importante para
enfrentar a corrupção. Ele cita estudiosos do tema como Suzan Rose-Ackerman, da
Universidade de Yale, que adotam a mesma linha de raciocínio.
"Quem
decide se corromper pesa em sua decisão, num prato da balança, os benefícios do
crime, como o dinheiro desviado e que hoje é difícil de ser recuperado, e, no
outro prato, os custos, que são a probabilidade da punição e o montante da
punição, que são mínimos no Brasil. A equação favorece a corrupção."
O
procurador afirma também que o pacote anticorrupção original prevê campanhas de
marketing e projetos de pesquisa, que ajudariam na prevenção.
O
advogado e professor de Direito da USP Modesto Carvalhosa concorda com
Dallagnol. Para ele, as ações punitivas previstas no pacote são necessárias e
não impedem a aplicação de ações preventivas.
"Você
pune e previne, pune e educa. Se não houvesse punição, os crimes seriam
maiores. À medida que você aumenta as penas, inibe os delitos."
Contaminação
de outros processos
Outra
crítica dos entrevistados é que a proposta da Procuradoria seria muito
abrangente.
Ao
não focar em delitos ligados à corrupção, o Ministério Público Federal abriria
espaço para que esse caráter de punição contaminasse outros processos.
Semer
diz que as "Dez Medidas" misturavam mudanças no Código de Processo
Penal para todos os crimes com alterações no Código Eleitoral e no Código de
Processo Civil.
"Como
o projeto era amplo, tudo cabia dentro dele."
Professor
de Direito da FGV e um dos editores do site Supremo em Pauta, Rubens Glezer
afirma que, com uma abordagem tão ampla, o tom das medidas poderia afetar quem
mais sofre dentro do sistema legal: pobres e negros.
"O
projeto não restringe essas ações ao grupo de privilegiados, que se mantém
acima da lei. E vai acabar prejudicando quem está abaixo dela."
Esse
"efeito cascata" aconteceria, diz o professor, porque as medidas
oferecem soluções simples demais, que valem para tudo. Ele exemplifica: em vez
de valer para todos os crimes, a prisão extraordinária poderia ser aplicada
apenas nos casos de desvio de verba pública.
"Você
pode matar uma mosca com uma bala de bazuca, mas destrói o que está ao
redor", diz Glezer.
Em
defesa dessa chamada amplitude das medidas, o coordenador da força-tarefa da
Lava Jato lista regras gerais do sistema de Justiça Criminal que afetam os
casos de corrupção, como a possibilidade de entrar com vários recursos.
"Por
isso, não há como resolver o problema da impunidade da corrupção sem alterar
aspectos específicos do sistema penal e processual que se aplicam a variados
crimes. Isso não traz nenhum prejuízo aos réus."
Força da
instituição
As
críticas são feitas também dentro do Ministério Público Federal.
A
subprocuradora Ela Wiecko Volkmer de Castilho, que pediu exoneração do cargo de
vice-procuradora-geral da República em agosto, concorda que o pacote é
"punitivista" e não seria eficaz para superar a corrupção.
Segundo
Wiecko, as propostas não foram discutidas abertamente dentro da instituição.
Mas, uma vez lançadas, "foram aplaudidas pela maioria dos
integrantes" e tornaram-se indiscutíveis - "tudo ou nada".
Ela
vê uma eventual aprovação do projeto resultando numa "instituição que
impõe temor".
Para
os entrevistados, o pacote tem uma relação íntima com os interesses do órgão.
"Preocupa-me
a satanização da política e a substituição dela por uma ideia de corporações
fortes. O problema não é a força em si, mas o seu uso, que pode ser na defesa
dos interesses próprios", diz o juiz Flavio Antônio da Cruz.
Para
Marcelo Semer, as propostas são um projeto de poder, para aumentar as
competências do Ministério Público (a acusação), diminuir as atribuições dos
juízes e "esmagar" a defesa.
Dallagnol,
porém, rebate: as mudanças não feririam a defesa, mas protegeriam as vítimas da
corrupção.
"Precisamos
de um direito penal e de um processo penal equilibrados, que protejam não só os
direitos dos réus, mas também os das vítimas."
Popularidade
Os
juristas veem com apreensão a popularidade do órgão e de seus procuradores nos
últimos meses. O aval popular é perigoso, dizem - poderia fazer a Procuradoria
ganhar a queda de braço com o Congresso, mas também pode torná-la refém das
preferências do público.
"O
MPF sempre precisou ficar nessa área meio cinzenta, entre mobilizar a população
e fazer o que ela quer", diz Rubens Glezer, da FGV.
Tentando
se equilibrar nesse limiar, os procuradores vão assumindo um protagonismo
político que seria estranho a suas funções, afirma o professor Salah H. Khaled,
da Universidade Federal do Rio Grande (RS).
"Não
é papel do Ministério Público propor projeto de lei e coletar assinaturas de
pessoas com essa finalidade. Igualmente censurável é a manifestação do Juiz Sérgio
Moro: juízes não são agentes políticos e não devem interferir no processo
legislativo."
Dallagnol
argumenta que as punições propostas existiriam para proteger a sociedade, e não
para fortalecer a instituição.
"A
sociedade espera que promotores, procuradores e juízes construam um
arranha-céu, chegando ao último andar da cadeia criminosa. Ao mesmo tempo, o
legislador nos dá tábuas, martelos e pregos. (...) As 10 medidas dão
instrumentos adequados ao Ministério Público e, especialmente, à Justiça para que
o interesse da própria sociedade seja satisfeito."
Os
juristas entrevistados criticam a fala do chefe da força-tarefa da Lava Jato à
imprensa logo após a aprovação do pacote anticorrupção na Câmara.
Em
uma entrevista coletiva na quarta-feira, Dallagnol ameaçou, junto a outros
procuradores, abandonar a operação caso a versão modificada fosse sancionada.
À
BBC Brasil, ele voltou a dizer que os deputados praticaram uma "completa
desfiguração" das medidas. E argumentou que, ao falar com a população,
permitiu que ela fiscalizasse os governantes, contribuindo para uma democracia
mais forte.
"Informar
a sociedade de que os trabalhos serão inviabilizados não é ameaça, mas sim
permitir que a sociedade conheça o risco real que corre a operação."
Para
o juiz Rubens Casara, esse tipo de declaração não ajuda na construção de uma
sociedade democrática e tem, sim, fins políticos.
"Me
parece que foi mais uma vez manifestação querendo alcançar o imaginário da
população. (O que aconteceu) faz parte da divisão de poderes. Cabe ao Congresso
a elaboração das leis e ao procurador e ao juiz, a aplicação dela."
http://www.ocafezinho.com/2016/12/07/por-apoio-democracia-juristas-fazem-critica-pacote-anticorrupcao/
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