A
decisão do ministro Marco Aurélio, afastando da Presidência do Senado o senador
Renan Calheiros, mostrou-se um perigoso equívoco. Não há previsão
constitucional para esse afastamento. Estamos indo longe demais. O Supremo
Tribunal Federal não é o superego da nação, para usar uma frase da jurista
Ingeborg Maus, ao criticar o ativismo praticado pelo Tribunal Constitucional da
Alemanha. Vou invocar uma frase famosa que eu mesmo fico repetindo e que é da
autoria do ministro Marco Aurélio: os poderes da República são Legislativo,
Executivo e Judiciário e não o contrário. Quando ouvi isso da boca do ministro,
vibrei! Eu disse: Bingo! Só que agora o ministro fez o contrário do que havia
dito.
De
fato, hoje mais uma vez ficou demonstrado o extremo ativismo do STF, contra o
qual eu achava que o ministro Marco Aurélio estava imunizado. Mas, não. Na
decisão, o ministro fala das manifestações de rua: “O Senador continua na
cadeira de presidente do Senado, ensejando manifestações de toda ordem, a
comprometerem a segurança jurídica”.
Ora,
a Suprema Corte não é porta voz do povo. Ao contrário: nela temos que ver a
garantia contra maiorias exaltadas. A Constituição é o remédio contra maiorias.
E o STF deve ser o guardião da Constituição. Quem disse que a voz das ruas tem
legitimidade? Somos duzentos milhões de habitantes e menos de 400 mil foram às
ruas. Isso é fundamentação? Cadê a Constituição? Aliás, no HC 126.292 o próprio
ministro Marco Aurélio disse — sabiamente — que a decisão sobre a presunção da
inocência não poderia ser dada ao sabor da voz das ruas. E agora, ministro?
Sou
insuspeito em falar sobre isso. E não tenho simpatia pelo Renan. Sou um
conservador em relação ao constitucionalismo. Já muita gente me chamou de “originalista”.
Não. Não sou originalista. Sou um jurista que defende a Constituição naquilo
que o constitucionalismo foi cunhado pela tradição democrática. Proteção contra
injunções morais e politicas. O Supremo Tribunal federal, desse modo,
comporta-se moralmente. E Direito não é moral. A moral não corrige o Direito.
Quem deve tirar o presidente do Senado é o Senado. Seria inconcebível que o
Senado ou Legislativo lato sensu quisesse tirar o presidente da Suprema Corte.
Onde estão as relações institucionais? No mínimo, a decisão teria que ser
proferida pelo Plenário da Corte. Qual é a urgência?
De
todo modo, enfrento outro argumento utilizado, o de que já havia uma maioria
quando da votação de ADPF na qual um ministro pediu vista. Essa maioria
justificaria o afastamento do presidente do Senado. Dois problemas: primeiro —
o uso de uma decisão ainda dependente de um pedido de vista (Em novembro, seis
dos oito ministros do STF votaram a favor da ação apresentada pelo partido Rede
Sustentabilidade de que réus não poderão ocupar cargos na linha de sucessão
presidencial, que inclui os presidentes da Câmara e do Senado. A sessão, no
entanto, foi suspensa após pedido de vistas do ministro Dias Toffoli. Na
ocasião, os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso
não estavam presentes na sessão). Segundo: o uso da analogia do artigo 86,
parágrafo 1º, I, da CF. Esse dispositivo só impede que o presidente do Senado
venha a assumir a Presidência da República eventualmente, quando isso venha a
acontecer. O dispositivo não impede que o Senador Renan fique na presidência do
Senado. Essa interpretação é demasiado elástica.
Explico
melhor: A Constituição estabelece no artigo 86 que somente o presidente da
República é que deve ser afastado do cargo caso vire réu em ação penal comum
perante o STF durante o exercício do cargo. No caso, o STF fez uma
superinterpretação (sobreinterpretação) do texto. Por ela, todos que estiverem
na linha de sucessão e que se transformem em réus também devem ser afastados.
Ora, caso o presidente da República fosse réu antes de tomar posse como
presidente, nem a ele se aplicaria o artigo 86, por ter o crime sido cometido
antes do mandato. Já estaríamos fora da hipótese do artigo 86, portanto. No
caso de Renan, o caso é anterior ao seu mandato atual e anterior ao mandato do
atual Presidente da República. O que quero dizer é que a Constituição fala em
perda de cargo no caso do presidente da República que vire réu. A analogia,
neste caso, é construção de um novo texto. Uma emenda constitucional. O
presidente do Senado somente poderia vir a ser impedido de assumir o cargo se o
processo fosse decorrente deste mandato (crime cometido no exercício do seu
mandato quando processado. Impedido de assumir. E não ter seu cargo de
presidente cassado.
Isso
pode não acabar bem. Somos duzentos milhões querendo trabalhar e progredir. Se
há corrupção, devemos combate-la a partir da lei. Fazer atalhos é sempre
perigoso. Uma democracia somente pode se consolidar se não for atrapalhada por
uma juristocracia.
http://www.conjur.com.br/2016-dez-06/streck-nao-previsao-constitucional-afastamento-renan?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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