O
recente julgamento improcedente pelo Supremo Tribunal Federal da Ação de
Inconstitucionalidade 5.357, proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos
de Ensino (Confenen) contra dispositivos da Lei 13.146/15, suscita reflexões
acerca do equilíbrio contratual propugnado pelo Direito Civil, incluindo-se as
relações de consumo. Tendo restada assegurada a prestação de serviços
educacionais por parte das entidades privadas para o aluno com deficiência [1],
sem a cobrança de valores adicionais, de qualquer natureza, na matrícula,
mensalidade ou anuidade, despesas serão inquestionavelmente necessárias. A
proteção da pessoa deficiente encontra espeque no arcabouço legislativo pátrio [2],
bem como na Constituição Federal, mas também estão amparadas por normas
jurídicas brasileiras a livre iniciativa no campo educacional e a sua regular
manutenção.
O acesso dos alunos deficientes na seara
educacional privada, em condições de igualdade, conforme disposto pelo artigo
1o, da dita Lei, pressupõe a concretização de uma série de providências por
parte dos estabelecimentos de ensino. O artigo 28, incisos I e II, do Estatuto
da pessoa com deficiência, determina que os sistemas educacionais deverão ser
sempre inclusivos em todos os níveis e modalidades, disponibilizando serviços e
recursos que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena. O aprimoramento
constante para a facilitação do ingresso e da permanência destes discentes é
outra exigência legal em prol de se alcançar o máximo desenvolvimento possível
de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, em
conformidade com as suas características, interesses e necessidades de aprendizagem
[3].
Para
a inserção do aluno deficiente, a entidade particular terá que providenciar os
recursos intelectuais, humanos e materiais necessários para que a sua inclusão
social e o exercício da cidadania sejam concretizados de forma efetiva. No que
tange aos primeiros recursos, urge que seja elaborado projeto pedagógico que
institucionalize o atendimento educacional especializado, assim como os demais
serviços e adaptações razoáveis, para atender às características dos estudantes
com deficiência e garantir, em condições de igualdade, o seu pleno acesso ao
currículo, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia [4]. Quanto
aos recursos humanos, o quadro de pessoal da instituição de ensino terá que
contar com a presença de docentes, tradutores, intérpretes de Libras e de
pessoal de apoio que possam empreender planejamento educacional especializado,
adotando-se medidas individualizadas e coletivas para propiciar o
desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência. Os recursos
materiais envolvem a acessibilidade para todos, os instrumentos e equipamentos
didáticos, incluindo-se a tecnologia assistiva, o ensino da Libras e o Sistema
Braille[5].
Dúvidas
não pairam que as instituições de ensino necessitarão fazer investimentos
complementares, que não serão exíguos, para o pleno e eficiente cumprimento das
estipulações legais acima aludidas, sendo-lhes vedada a exigência de valores
adicionais para os responsáveis legais pela pessoa com deficiência. Crucial
asseverar que o parágrafo único do artigo 27 da Lei 13.146/2005 considera que a
criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência, são especialmente
vulneráveis. Ademais, consoante estatui o artigo 5º do Estatuto em epígrafe, a
pessoa com deficiência deverá ser protegida de toda forma de negligência,
discriminação, opressão e tratamento desumano ou degradante. Nessa senda, os
proprietários e gestores das entidades educacionais precisam estar bastante
atentos para que não criem obstáculos infundados para o recebimento de alunos
com deficiência e sejam responsabilizados judicialmente.
Propugna-se,
assim, por uma análise econômica da problemática em apreço [6], reconhecendo-se
que os estudantes com deficiência devem ser recepcionados pelas instituições de
ensino sem imbróglios e empecilhos, mas que os custos sejam socializados entre
os fornecedores dos serviços educacionais, demais usuários do sistema de ensino
e o poder público. Ressalta-se que o parágrafo único do artigo 27 da
multicitada Lei preconiza que constitui dever do Estado, da família, da
comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com
deficiência. Para a manutenção da estabilidade econômica das entidades
educacionais particulares diante da presença dos estudantes com deficiência,
que devem ser protegidos como consumidores, o fornecedor arcará com o ônus
previsto em sede legal. No entanto, dentro da perspectiva financeira, a
repartição de parte dos gastos denota-se necessária, tendo as instituições de
ensino que onerar um pouco mais as contraprestações pecuniárias, para se
manterem saudáveis e em atividade. O poder público poderá ainda instituir
incentivos para que as escolas, que recebam maior número de acadêmicos
deficientes, possam usufruir de benesses fiscais, estimulando-as a prosseguir nesta
caminhada.
Interessante
rememorar a mitologia grega sobre Hefestos, filho de Zeus e Hera, que tinha uma
deficiência física nunca aceita pelos próprios pais e pelo povo, razão pela
qual fora atirado de um penhasco, sendo, porém, recolhido por Tetis e Eurinome,
filhas do Oceano, que lhe deram guarida na ilha de Lemos. Nesse local,
trabalhou, tornou-se poderoso artesão e, após, retornou ao Olimpo, casando-se
com Afrodite e assumindo definitivamente o seu local entre os deuses [7]. Que
nos sirva de incentivo as lições mitológicas e que sigamos as instruções de
Diderot que, desde 1749, na “Carta sobre os Cegos para o uso dos que os vêem”,
defendia o respeito ao direito educacional dos deficientes, como dito acima,
através da assunção dos custos necessários pelas escolas, colaboração dos
demais usuários dos serviços e do governo, com esteio em uma perspectiva
econômica crítica!
*Esta
coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona,
UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
[1]
De acordo com o art. 2º da Lei 13.146/15, considera-se pessoa com deficiência
aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas.
[2]
A Lei 7853/89, alterada pela Lei
8.028/90 e regulamentada pelo Decreto
3.298/90, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência. O Decreto 3956/01 promulgou a Convenção
Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Pessoas Portadoras de Deficiência. (Convenção da Guatemala). A Lei 10216/2001 versa sobre a proteção e os
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo
assistencial em saúde mental.
[3]
Assim, dispõe o caput do art. 27 da Lei 13.146/15.
[4]
CONSULTAR: Savelsbergh, G. J.; Netelenbos, J. B.; Whiting, H. T. (1991).
Auditory perception and the control of spatially coordinated action of deaf and
hearing children. The Journal of Child Psychology and Psychiatry. 32,489-500.
Hindley, P. A.; Hill, D. P.; McGuigan, S.; Kitson, N. (1994). Psychiatric
disorder in deaf and hearing impaired children and young people: A prevalence
study. The Journal of Child Psychology and Psychiatry. 35 ,917 - 934. Farrugia,
D. L. (1986). An Adlerian perspective for understanding deafness. Individual
Psychology Journal of Adlerian Theory: Research and Practice. 42. 201-213.
[5] Cf: MANTOAN, Maria Teresa Eglér. A integração
de pessoas com deficiência. Contribuições para uma reflexão sobre o tema. São
Paulo: Memnon, 2008. ______. Caminhos pedagógicos da inclusão. São Paulo:
Memnon, 2009. ______.Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer? São Paulo:
Moderna, 2010. BRYAN, Jenny. Conversando sobre Deficiências. São Paulo:
Moderna, 2010. WERNECK, Cláudia. Sociedade Inclusiva: Quem Cabe no seu
Todos? São Paulo: WVA, 2009.
[6]
Consultar: COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. The Journal of Law and
Economics v. 3, n.1 (1960). CALABRESI, Guido. Some Thoughts on Risk
Distribution and the Law of Torts, Yale Law Journal. PARISI, Francesco e
ROWLEY, Charles K. The Origins of Law and Economics – Essays by the Founding
Fathers. Mass.: The Locke Institute, 2005, MERCURO, Nicholas e MEDEMA, Steven
G. Economics and the Law – From Posner to Post-Modernism and Beyond. Princeton University
Press, 2006.
[7]
MARCH, Jenny. Mitos Clássicos. São Paulo: Civilização, 2000.
http://www.conjur.com.br/2016-nov-21/direito-civil-atual-deficientes-acolhidos-instituicoes-ensino-particular
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