Todos
nós, das gerações que nasceram nas décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra
Mundial, crescemos com a memória pesada dos horrores do conflito.
Sempre
associamos guerra aos bombardeios convencionais, à conquista de território, aos
combates de infantaria — ainda que hoje ela tenha se ampliado para incluir as
batalhas no campo da informação, as operações psicológicas, o uso de drones e
de outros métodos de ataque à distância, como os golpes suaves.
Foi
a memória sobre os 50 milhões de mortos e o medo de uma hecatombe nuclear que
resultou numa arquitetura de acomodação entre Estados Unidos e União Soviética,
que organizaram a economia em suas respectivas esferas de influência sob os
gritos de “imperialismo” dos países não alinhados.
A
saída do Reino Unido da União Europeia e, especialmente a eleição de Donald
Trump nos Estados Unidos são marcadores do fim desta arquitetura, que se dá no
momento em que o centro do mundo capitalista se desloca lentamente para a Ásia.
Nos
anos 2000, um artigo publicado na revista dominical do New York Times apontou a
influência da diplomacia brasileira na formulação da política de contenção dos
Estados Unidos, através do multilateralismo.
Amarrar
Washington em consensos internacionais seria a melhor forma de promover um
pouso suave, diante da perspectiva de perda de poder relativo do grande império
no mundo globalizado, dizia a doutrina —
nunca publicamente enunciada.
Vem
desde esta época a denúncia, em círculos da direita dos Estados Unidos, de um
“governo mundial” talhado para conter o excepcionalismo dos que se consideram
um farol na colina para a humanidade.
Isso
ajuda a explicar a rejeição de Trump e de seus eleitores a acordos comerciais,
tratados do clima, organismos internacionais como a OTAN e qualquer outra
amarra que possa impedí-los de fazer o prometido: “Tornar a América grande, de
novo”.
O
programa de início de governo de Trump é razoavelmente simples: depois de
derrotar o Isis, cortar os gastos militares no Afeganistão, no Iraque e na
Síria e investir em infraestrutura para gerar empregos em casa.
Aqui,
é necessário fazer uma digressão. Raramente um presidente dos Estados Unidos,
ao assumir, dá uma pirueta de 180 graus em qualquer política. Washington não
rasga dinheiro.
Muitas
vezes o novo presidente apenas acelera ou desacelera formulações amadurecidas
antes nas sedes das grandes corporações, no Pentágono, em think thanks e em
outros centros de poder.
A
decisão de reduzir a dependência dos Estados Unidos do petróleo do Oriente
Médio, por exemplo, vem dos anos 70! É nessa perspectiva que se deve olhar para
as decisões de Washington de criar um comando militar dos Estados Unidos para a
África, apoiar o golpe contra Hugo Chávez na Venezuela e recriar a Quarta Frota
para patrulhar o Atlântico, todas elas tomadas muito antes de Trump.
As
fontes crescentes de petróleo para abastecer os Estados Unidos estão ou estarão
em Angola, Nigéria, Venezuela, Brasil e golfo do México — uma rápida olhada no
mapa do triângulo de ouro pode ser reveladora.
Porém,
com Trump — para pânico dos que formularam o consenso internacional em torno do
clima –, os Estados Unidos devem retomar a produção de energia a partir do
carvão, explorar petróleo em áreas de conservação e manter o fracking.
Do
ponto-de-vista estratégico, são instrumentos que Washington pode utilizar para
manter baixo o preço internacional do petróleo, driblando o poder da OPEP num
momento em que os Estados Unidos pretendem se distanciar do Oriente Médio.
É
por isso que assessores de Trump tanto falam em mudança de regime no Irã.
Tudo
indica que, concentrados em seus próprios problemas, os EUA vão terceirizar de
vez sua política externa na região para Israel — e o Irã disputa hegemonia
regional com Israel e Arábia Saudita.
A
mudança de regime em Teerã não seria feita pelos métodos tradicionais, como se
viu no Iraque, mas através da guerra de quarta geração, que já foi
experimentada lá com o assassinato de cientistas e ataques cibernéticos à
infraestrutura.
Neste
quadro cresce a possibilidade, a médio prazo, de um ataque de Israel a
instalações nucleares do Irã, com apoio tácito dos Estados Unidos, se o acordo
internacional fechado pelo governo Obama, inspirado por ação do Brasil e da
Turquia, for de fato engavetado.
O
problema é convencer a Rússia e Vladimir Putin a aceitar isso, mas são muitas
as “cenouras” que Trump teria a oferecer ao líder russo.
Uma,
em particular, chama atenção: o desmanche do cerco à periferia da Rússia
promovido no âmbito da OTAN para permitir a consolidação da União Europeia.
Assessores de Trump já falam em retirada de tropas e mísseis.
Ao mesmo tempo, Trump quer que os europeus
paguem mais pela proteção militar oferecida pelos Estados Unidos na arquitetura
multilateral hoje vigente.
No
contexto mais geral, uma aproximação com a Rússia faz todo o sentido para
Trump: esmaga o fundamentalismo islâmico também visto como ameaça pelos russos,
reduz a exigência da presença física de tropas dos Estados Unidos na Europa e
no Oriente Médio e joga areia em estruturas multilaterais que Trump e os seus
enxergam como constrangedoras ao poder unilateral dos Estados Unidos, da OTAN
aos BRICs, do bloco econômico da União Europeia à própria OPEP — a Rússia,
lembrem-se, é o posto de energia da Europa.
É
neste sentido que Trump representa o desfazimento do mundo como o conhecemos.
Embora isso nunca seja vocalizado, é razoavelmente óbvio que o poder relativo
dos Estados Unidos cresce num mundo politicamente fragmentado — a segurança
política e econômica de todos nós, diminui, especialmente sob um governo
suicida como o de Michel Temer.
Como
foi dito num recente debate do qual participei, a eleição do republicano
acontece num momento trágico para nós, justamente depois do golpe que prepara o
Brasil para ser plugado em 220 numa arquitetura internacional que, se não deixa
completamente de existir, sofrerá fortes abalos.
Sumiram,
de repente, com a tomada do Temer!
Com
o aumento dos juros nos Estados Unidos, provocado pelos planos de investimento
de Trump, o capital rumará crescentemente para a segurança das letras de
Tesouro garantidas pelo Fed, ainda mais num quadro de turbulência política e
econômica internacional.
Nosso
grande ativo, o pré-sal, dificilmente recuperará a lucratividade projetada se
os Estados Unidos ampliarem ao mesmo tempo sua própria produção de energia e as
fontes de origem dela. A “conquista” da Venezuela, por isso, continua sendo a
prioridade número um de Washington no continente.
Tudo
indica que o Brasil fará com o pré-sal o que fez com o minério de ferro de
Carajás: exploração relativamente rápida, para reforçar o caixa, sem
considerações de longo prazo que reforcem a soberania brasileira via
investimentos da Petrobras — pensando acima de tudo nos lucros dos acionistas,
50% dos quais são estrangeiros.
O
desmanche da Petrobras a que assistimos agora, feito por dentro, é uma beleza
para os grandes consumidores de petróleo e reforça a tese de que o impeachment
não resultou de uma ação puramente nacional. Estados Unidos e China agradecem
sempre que alguém deixa de se incomodar com a formação do preço internacional,
ainda mais quando isso implica na redução relativa da soberania de um
concorrente.
Enquanto
Trump fará o pivot que realmente interessa aos EUA, o da contenção da China na
Ásia, na trilha já aberta por Barack Obama, Temer e seu sucessor vão se tornar
eminentemente administradores do aluguel de terras e mão-de-obra, exportadores
de água e sol embutidos em produtos primários, papel que crescentemente caberá
ao Brasil neste quadro de capitalismo atomizado e suicídio econômico coletivo
dos brasileiros.
http://www.viomundo.com.br/opiniao-do-blog/o-triangulo-de-ouro-e-deles-trump-temer-e-o-brasil-desplugado.html
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