Uma
coisa é o pensamento conservador, que merece ser respeitado e, na minha
opinião, questionado – quando for o caso – nas arenas públicas e privadas de
discussões.
A
outra é gente que acha que a Constituição é papel higiênico e as instituições
democráticas – que levamos décadas para reconstruir – são um grande vaso
sanitário.
Nesta
semana, a ocupação da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados pelo pessoal que
acha que a democracia é a titica do cavalo do bandido e vê comunismo na tigela
dos Sucrilhos do café da manhã libertou uma quantidade surpreendente de seres
mágicos pela internet.
Por
exemplo, trolls que pensei estarem adormecidos desde que o tilintar de panelas
cessou, orgulhoso de si mesmo, apesar da corrupção seguir galopante.
Seres
que defendem uma ''intervenção militar constitucional'' (haha), o bloqueio da
conversão do país em uma ''ditadura gayzista'' (hahahaha) e uma ação para
evitar a iminente ''implantação do comunismo'' (#morri).
Pessoas
que dizem que o mal precisa ser extirpado. E quem é o mal? Daí reside o
problema.
Ouvimos
cada vez mais que há pessoas ou grupos que representam o mal, cuja natureza é
contra os costumes e as tradições dos ''homens e mulheres de bem'', e precisam
ser extirpados. Eu mesmo já ouvi isso mais de uma vez: ''você é um câncer que
precisa ser extirpado''.
Na
superfície dessa afirmação, há ódio. Mas se escavarmos um pouco, chegaremos ao
medo e, em seguida, à ignorância sobre o outro. Pincelado por horas de aulas de
História cabuladas para ir empinar pipa ou fazer footing no shopping.
Tito
de Alencar Lima, o Frei Tito, foi encontrado enforcado no dia 10 de agosto de
1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu
pelas mãos dos agentes da última ditadura brasileira. Aquela incensada pelo
pessoal acima citado. Trouxe a história dele aqui por ocasião do aniversário de
sua morte e gostaria de retomar parte de seu testemunho.
Em
1969, ele foi um dos dominicanos presos pelo torturador Sérgio Paranhos Fleury,
delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), acusados de apoiar
as ações da resistência contra o regime. O calvário de Tito, da prisão ao
suicídio, tornou-se um dos símbolos da luta pela liberdade.
Trago
trechos do testemunho de Tito à Justiça Militar, em 1969, em que conta como
foram as sessões de tortura. O depoimento faz parte de ação movida pelo
Ministério Público Federal contra os torturadores. Isso é a consequência da
''intervenção militar'' que esse povo tanto pede:
''Na
quarta feira, fui acordado às 8 horas, subi para a sala de interrogatórios,
onde a equipe do capitão Homero me esperava.
Repetiram
as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, ou recebia
cuteladas na cabeça, nos braços e no peito.
Neste
ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira
refeição naquelas 48 horas. (…)
Na
quinta- feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De
estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por uma
equipe, voltou às mesmas perguntas.
Vai
ter que falar, senão, só sai morto daqui”, gritou. Logo depois vi que isto não
era apenas uma ameaça: era quase uma certeza.
Sentaram-me
na “cadeira de dragão” (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas
mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o
organismo fosse decompor.
Da
sessão de choques, passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito
e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor.
Uma
hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei. Fui
desamarrado e reanimado. Conduziram-me à outra sala, dizendo que passariam a
carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não
chegaram a fazê-lo.
Voltaram
às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e
inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível
saber qual parte do corpo doía mais: tudo parecia massacrado.
Mesmo
que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava
mais. Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos.''
Por
aqui, lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes
com o presente. Não, não fez. E o impacto de não resolvermos o nosso passado se
faz sentir no dia a dia das periferias das grandes cidades, em manifestações,
nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando
parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte
(quase sempre mais rica).
Tito
é torturado e morto novamente e novamente, todos os dias, no Brasil, sob outros
nomes, crenças, gênero ou cor de pele. Normalmente, jovens, negros e pobres.
Diante
da atual tentativa de excluir o espírito crítico dos bancos escolares, através
de ações reacionárias como o ''Escola Sem Partido'', desejo que a história
daquele período continue a ser contada nas escolas até entrarem nos ossos e
vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a
liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a
carne e a saudade de muita gente.
Se
ficarmos apenas assistindo boquiabertos aos retrocessos sociais, ambientais,
econômicos, políticos e civis, o que é um pesadelo do passado voltará a ser
nosso cotidiano. Liderado por falsos ''salvadores da pátria'', eleitos no
braços de quem está cansado de tudo o que está aí Inclusive da liberdade para
procurar soluções de forma coletiva aos problemas da sociedade.
Só
dessa forma, os poucos milhares que hoje clamam por um golpe militar ou pela
volta da ditadura continuarão a ser vistos pelo restante da sociedade como mal
informados, ignorantes ou insanos.
Acho
importante esse pessoal mostrar sua cara e dizem quem é. Eu já estava cansado
de ser xingado por anônimos na internet ou perfis do Twitter com foto de ovo.
Vocês não tinham curiosidade de saber quem eles são? O que comem? Onde vivem?
Como se acasalam?
Temos
a responsabilidade de, uma vez identificados, despejarmos todo o carinho e
paciência possíveis. Pois, talvez um dia, compreendam o que significa a
liberdade que está diante de seus olhos, mas que não conseguem enxergar.
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/11/19/o-que-comem-onde-vivem-como-se-acasalam-os-que-querem-um-golpe-militar/
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