Em
vez de servir para punir exemplarmente culpados, o “mensalão”, com seu domínio
do fato, transformou a Justiça em parte do terceiro turno eleitoral.
Na
briga política com “P” maiúsculo, quando se traça estratégias de disputa com
grupos oponentes, define-se um limite além do qual não se deve ultrapassar, por
razões éticas ou para não abrir precedentes que, no futuro, possam se voltar
contra o próprio grupo que não observou esse limite. Em ambos casos, a
preservação dos instrumentos de luta democrática é a preocupação central.
O
Supremo Tribunal Federal (STF), a partir do caso chamado “mensalão”, arvorou-se
em fazer política com “p” minúsculo, sem pensar nos precedentes que abria nos
momentos em que jogava para a plateia, escolhia inimigos e relativizava a
Constituição. Ao fazer jogo político sem que fosse qualificado para isso, pois
não é um poder que decorre da livre escolha popular, não mediu as consequências
e deixou uma lista de precedentes com potencial de corroer a democracia
brasileira.
O
primeiro mal exemplo que deu foi o de que um poder não deve obedecer aos
limites. Ao longo do período pós-ditadura, a Corte maior do país se dedicou a
uma crescente militância. A nova composição do Supremo, “pós-mensalão”, é muito
mais jurista do que política, mas é ela que vai ter que pagar pelo erro dos
seus antecessores.
No
julgamento do “mensalão”, em vez de manter-se acima de um clima de comoção
artificialmente criado por partidos de oposição e uma mídia avassaladoramente
monopolista, o STF fez parte da banda de música. O que se tocava era um mantra
segundo a qual qualquer que fossem as provas, quem deveria pagar com a cadeia
era a banda governista envolvida no escândalo. Se as provas não corroborassem,
que se danassem as provas. Era uma onda de pânico tão típica de momentos
aterrorizantes da história mundial – como a ascensão do nazismo e do fascismo,
com a repetição de “verdades” construídas sobre afirmações mentirosas, mas
fáceis de atrair ódio sobre grupos políticos adversários – que a inclusão da
Corte Suprema do país nesse tipo de armação foi de tirar noites de sono de quem
já viveu o pesadelo de ditaduras.
O
STF abraçou entusiasticamente a tese do domínio do fato para justificar a
condenação, por exemplo, de Henrique Pizzolatto (acusado de desviar um dinheiro
da Visanet, empresa privada de cartões de débito, que comprovadamente foi
destinado para veiculação de anúncios nos próprios veículos de comunicação que
o acusavam de corrupção), ou de José Genoíno (que foi condenado porque assinou
um empréstimo bancário que comprovadamente entrou na conta bancária do PT e foi
quitado pelo partido), ou de José Dirceu (que se supôs ser o mentor do esquema
sem que nenhuma prova disso fosse apresentada à Justiça). Com isso, a Corte deu
satisfações a uma parcela da população que advogava a prisão a qualquer custo,
mas por este prazer de momento legou ao país a dura herança da condenação sem
provas e do espetáculo midiático em vez do julgamento justo. O STF alimentou o
senso comum de que lugar de adversário político é na cadeia. A democracia
brasileira vai levar anos, décadas, uma era, para se livrar desse legado.
O
juiz Sérgio Moro forçou a mão nas suas decisões de indiciamento das pessoas
mais ligadas ao PT e ao governo, no curso da Operação Lava-Jato, e
provavelmente condenará a todos eles, com provas ou, se não consegui-las, por
suposição. Mas não se pode acusá-lo de ter inventado a roda. A insegurança
jurídica provocada pela teoria do domínio do fato – que aproxima a Justiça da
democracia brasileira dos famigerados Inquéritos Policiais Militares (IPMs) da
ditadura, responsáveis pela “investigação” e “julgamento” de adversários
políticos por suposições de corrupção – é obra do ex-ministro Joaquim Barbosa,
corroborada pela maioria do plenário do STF, no bojo de uma histeria coletiva
artificial provocada por uma pressão direta da oposição e dos meios de
comunicação, on-line, na medida em que o julgamento se desenrolava nas telas
das tevês. Barbosa continuará produzindo condenações altamente questionáveis
mesmo depois de ter ido embora para casa tuitar palpites sobre uma democracia
que ele não cuidou quando era ministro do Supremo.
Daí
que o precedente Joaquim Barbosa gerou Sérgio Moro, que forçou a mão nas peças
jurídicas que levaram ao indiciamento de uns, e deixaram passar culpas de seus
oponentes.
O
precedente Joaquim Barbosa condenou Pizzolatto por contratos do Banco do Brasil
com a Visanet que são anteriores à sua posse na diretoria da Marketing da
estatal. O tesoureiro do PT, João Vaccari, foi indiciado por financiamentos
legais de campanha feitos ao seu partido pelas empresas implicadas no escândalo
Petrobras desde 2008 – sem que Moro tenha se importado com o detalhe de que
Vaccari assumiu a tesouraria da legenda a partir de fevereiro de 2010. Se a
intenção fosse a de fazer justiça, o juiz teria no mínimo feito referência ao
tesoureiro anterior. Usou, todavia, o domínio do fato, para argumentar uma
responsabilidade telepática de Vaccari sobre fatos que aconteceram mesmo antes
de ele assumir o cargo.
O
juiz argumenta, ao aceitar a denúncia, que João Vaccari “tinha conhecimento do
esquema criminoso [de pagamento de propinas por empresa fornecedoras da
Petrobras] e dele participava”, fiando-se em delações premiadas de
participantes do esquema que tinham interesse pessoal em responder aos anseios
das autoridades policiais e judiciárias que jogavam para uma plateia – e que
fizeram isso de forma mais intensa no período eleitoral, com fartos vazamentos
seletivos sobre um inquérito que envolveu Deus e o diabo na terra do sol.
Moro
tomou como fato inquestionável – e confundiu isso com prova – que o esquema
envolveu exclusivamente os últimos governos, e que o financiamento dado
oficialmente ao PT era, na verdade, produto de propina. E traçou uma lógica
segundo a qual a cada fechamento de contrato pelas empresas envolvidas
resultava numa doação legal para o PT, ou para uma campanha do PT.
Quando
se toma a doação dessas mesmas empresas para o PSDB e para o PMDB, todavia,
fica um grande vazio. Existem duas ordens de doações privadas para partidos e
candidatos, segundo Moro: uma, recebida por determinados partidos, que são
propina; outra, captada por outros partidos, que não são crimes.
Se
tomados os dados de doação registrados junto ao Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), as 16 empresas envolvidas no Caso Lava-Jato (Galvão Engenharia,
Oderbrecht, UTC, Camargo Correa, OAS, Andrade e Gutierrez, Mendes Júnior, Iesa,
Queiroz Galvão, Engevix, Setal, GDK, Techint, Promon, MPE e Sranska)
contribuíram com R$135,5 milhões para as eleições de 2010 e R$222,5 para as
eleições de 2014.
Nas
eleições de 2010, o PMDB, que não tinha candidato presidencial, recebeu a maior
parcela, de R$32,85 milhões; o PT, R$31,4 milhões e o PSDB, R$27 milhões. Foram
os três maiores agraciados, com 24%, 23% e 20% das doações totais dessas
empresas, respectivamente. Todavia, o PSB, o PP, o PRB e o PSC conseguiram
também quantias consideráveis: R$19,5 milhões, R$6,5milhões, R$4,95 milhões e
R$2 milhões, respectivamente. PDT, PCdoB, DEM, PTB, PTN, PTC, PTdoB e PMN
receberam entre R$150 mil e R$1,8 milhão.
No
ano passado, PT e PSDB mantiveram, de novo, arrecadação muito próxima dessas
mesmas empresas. O partido de Dilma conseguiu R$56,38 milhões junto a essas
fontes, mas o PSDB de Aécio não ficou muito atrás: obteve R$53,73 milhões. O
PMDB ficou em terceiro em arrecadação, mas rivalizando com os dois partidos que
disputaram a Presidência no segundo turno: conseguiu levantar R$46,62 milhões
dessas empresas. O PSB de Marina Silva ganhou R$15,8 milhões; o DEM, R$12
milhões; o PP, R$10,25 milhões; o PSD, R$7,13 milhões; e o PR, R$6,85 milhões.
Os demais partidos arrecadaram entre R$3,3 milhões e R$100 mil.
Esses
números certamente não querem dizer que todos os partidos que receberam
dinheiro dessas empresas tenham, na verdade, recebido propina por serviços
prestados a elas. Mas indicam que a simples existência de doações legais ao PT
não comprova propina. É preciso que existam provas do ilícito, e que elas sejam
mais consistentes do que a delação de implicados que são réus confessos e que
foram premiados pela Justiça.
É
esse legado que o país carrega do caso “mensalão”. Em vez de servir para punir
exemplarmente culpados, o “mensalão” abriu o precedente de incluir a Justiça
com parte de um terceiro turno eleitoral. A Justiça brincou de fazer política e
não olhou para os precedentes que abria. A insegurança jurídica que isso causa
pode levar no mesmo rodo, no futuro, a água dos que encenaram o espetáculo da
condenação sem provas.
https://limpinhoecheiroso.com/2016/11/29/a-democracia-brasileira-levara-decadas-para-se-livrar-do-pesado-legado-de-joaquim-barbosa/
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