domingo, 20 de novembro de 2016

CONSCIÊNCIA NEGRA: 'NÃO PODEMOS ACEITAR UM ESTADO RACISTA'

Lançamento do livro 'Mães em Luta: Dez Anos dos Crimes de Maio de 2006' expõe a injustiça racial no Brasil e a necessidade de resistência

Quinze mulheres que não se calaram diante da violência policial tiveram suas histórias contadas em livro. Lançado na quinta-feira 17, Mães em Luta: Dez Anos dos Crimes de Maio de 2006 reúne os perfis de 13 mães, uma irmã e uma tia de jovens assassinados pela Polícia Militar de São Paulo. São capítulos ainda não encerrados nas vidas dessas pessoas, que ganham ainda mais relevância quando o País reflete sobre o Dia da Consciência Negra, celebrado anualmente em 20 de novembro.

Uma dessas mulheres é Debora Maria da Silva, que transformou em ativismo a dor pela morte do filho Edson Rogério Silva dos Santos, uma das vítimas dos Crimes de Maio de 2006.

“A ditadura está bem explícita nas periferias e nas favelas. Mas nós não podemos aceitar um País e um Estado racista, que tem como alvo certo os nossos filhos”, disse Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, a um auditório lotado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), durante o lançamento do livro e da campanha #BlackBraziliansMatter (brasileiros negros importam), uma parceria com o movimento negro dos Estados Unidos.

No período de 12 a 21 de maio de 2006, o conflito entre as forças de segurança de São Paulo e a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) deixou quase 500 mortos pelo Estado, sendo 42 agentes públicos e 452 civis. Passados dez anos, apenas dois PMs foram condenados, e ambos recorrem em liberdade.

Para Silva, a impunidade transforma o Brasil em “produtor de Mães de Maio”. “Se os Crimes de Maio tivessem tido punição, a gente não teria mãe de 2007, de 2008, de 2009, de 2010, de 2011, de 2012, de 2013, de 2014, de 2015 e de 2016. Nós temos que gritar, porque nós não podemos aceitar.”

O livro Mães em Luta foi organizado pelo jornalista André Caramante, da Ponte Jornalismo. De acordo com dados levantados pela Ponte e apresentados na obra, a PM paulista matou 12.022 pessoas nos últimos 21 anos (entre julho de 1995, quando a Secretaria da Segurança Pública começou a divulgar dados estatísticos sobre a violência, e julho de 2016), número equivalente à população atual do município de Cananéia, no litoral sul do Estado.

Em média, 47,5 pessoas foram mortas por PMs a cada mês no Estado. Nesse cenário, os policiais também são vítimas: cinco foram assassinados por mês no período.

A existência dessa “guerra não declarada” entre PM e cidadãos é retratada nas páginas de Mães em Luta, em perfis escritos por repórteres da Ponte. Um desses textos resgata a memória de Luana Barbosa dos Reis.

Em um depoimento forte, que emocionou a plateia, a professora Roseli Barbosa dos Reis, irmã da vítima, contou que aguarda a condenação de três PMs envolvidos no caso. Em abril deste ano, Luana foi abordada e espancada por policiais na rua de sua casa, na periferia de Ribeirão Preto. Ela morreu cinco dias depois, em decorrência de uma isquemia cerebral causada por traumatismo craniano encefálico.

“No dia 12 de novembro a Luana estaria completando 35 anos. Ela foi assassinada aos 34 anos de idade. Ela nasceu dois dias depois de o meu pai ter sido assassinado aos 34 anos de idade. Não sai da minha cabeça que a minha irmã morreu da mesma forma como tantos negros morreram no tronco. Ela foi espancada, não se deram nem ao trabalho de atirar. Os gritos nunca vão sair da minha cabeça”, disse Reis. “A Luana era negra, lésbica, pobre, moradora da periferia, mãe. Silenciada em muitos lugares.”

'Guerra às drogas é mecanismo de manutenção da hierarquia racial', diz ativista norte-americana Deborah Small

Os PMs envolvidos foram afastados e hoje realizam serviços administrativos. “Essa é a punição deles. Não há foto deles na internet, eles estão protegidos em todas as instâncias. Mas as nossas vidas se transformaram para sempre, porque o medo acompanha a gente o tempo todo. Eles sabem disso e contam com a lentidão do Judiciário, contam com o fato de que não vão ficar um dia sequer na prisão”, continuou a irmã de Luana.

O grito contra a violência continuada do Estado, do passado e do presente, tomou conta do auditório. Ângela Mendes de Almeida, companheira de Luiz Eduardo Merlino, morto pela ditadura, foi convidada para compor a mesa e dar seu depoimento. Ela e a família de Merlino moveram diversas ações contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido torturador, mas os processos esbarraram na Lei na Anistia. “A impunidade em relação à vida que é tirada pelos militares hoje em dia vem do nosso tempo”, disse.

Almeida também expressou “enorme preocupação” com a invasão da Câmara dos Deputados por um grupo que defende a volta dos militares ao poder. “Eu senti uma enorme apunhalada. Temos grupos organizados defendendo a volta da ditadura. Eu sei que a ditadura militar não acabou nunca na periferia, mas, ao defenderem publicamente, estamos dando um passo a mais na militarização do Brasil.”

A preocupação com o avanço do conservadorismo é geral. De acordo com a advogada Eliane Dias, coordenadora do SOS Racismo, grupo criado na Assembleia Legislativa de São Paulo para dar visibilidade ao tema, os negros não têm a quem recorrer, o que torna urgente uma maior mobilização da militância.

“Se eu tiver que pedir ajuda para um jovem negro, hoje eu não sei a quem pedir. Se eu for no Executivo federal eu não tenho, no estadual eu não tenho, no municipal eu não vou ter”, disse ela, que também comanda a produtora Boogie Naipe, que gerencia os Racionais MC’s.

Após a confirmação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a Secretaria das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que tinha status de ministério, foi incorporada ao Ministério da Justiça e Cidadania do governo Michel Temer.

Na cidade de São Paulo, o prefeito eleito João Doria (PSDB) anunciou coisa parecida: vai fundir as secretarias de Promoção da Igualdade Racial, Política para as Mulheres e Direitos Humanos, hoje independentes, à nova pasta da Assistência Social e Cidadania.

“A militância tem que voltar. Para continuar persistindo na luta contra o genocídio da juventude negra, cada um tem que sair daqui com a responsabilidade de conscientizar pelo menos 50 pessoas”, disse Dias.

Segundo ela, o Dia da Consciência Negra existe para que possamos “pensar e repensar” a forma como o negro tem sido inserido na sociedade. “E até o presente momento ele tem sido inserido da pior maneira possível, porque a cada 23 minutos e 30 segundos uma mãe entra em luto. A cada 23 minutos e 30 segundos um jovem negro é assassinado neste País”, afirmou Dias. Os dados são do relatório final da CPI do Senado sobre Assassinato de Jovens, divulgado em junho deste ano com base em números do Mapa da Violência.

O evento de lançamento do livro Mães em Luta foi encerrado com uma vigília em homenagem aos mortos. A marcha saiu do Largo São Francisco e caminhou em direção ao prédio da Secretaria da Segurança Pública, onde havia uma barreira de policiais militares. O ato, pacífico do começo ao fim, terminou com o grito por justiça de Débora da Silva e outros parentes de vítimas do Estado.

“Nós estamos aqui na frente dos nossos servidores, que têm o dever de tomar conta dos nossos filhos, mas que retiram a vida na ponta do fuzil, na ponta da metralhadora, com o dedo indicador do Estado”, disse Débora. “O Mês da Consciência Negra não pode ser só novembro, mas sim os 365 dias do ano. Precisamos vigiar, porque senão o Estado avança.”

Publicado originalmente em Carta Capital.

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/45729/consciencia+negra+nao+podemos+aceitar+um+estado+racista.shtml


Nenhum comentário: