Lançamento
do livro 'Mães em Luta: Dez Anos dos Crimes de Maio de 2006' expõe a injustiça
racial no Brasil e a necessidade de resistência
Quinze
mulheres que não se calaram diante da violência policial tiveram suas histórias
contadas em livro. Lançado na quinta-feira 17, Mães em Luta: Dez Anos dos
Crimes de Maio de 2006 reúne os perfis de 13 mães, uma irmã e uma tia de jovens
assassinados pela Polícia Militar de São Paulo. São capítulos ainda não
encerrados nas vidas dessas pessoas, que ganham ainda mais relevância quando o
País reflete sobre o Dia da Consciência Negra, celebrado anualmente em 20 de
novembro.
Uma
dessas mulheres é Debora Maria da Silva, que transformou em ativismo a dor pela
morte do filho Edson Rogério Silva dos Santos, uma das vítimas dos Crimes de
Maio de 2006.
“A
ditadura está bem explícita nas periferias e nas favelas. Mas nós não podemos
aceitar um País e um Estado racista, que tem como alvo certo os nossos filhos”,
disse Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, a um auditório lotado na
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco),
durante o lançamento do livro e da campanha #BlackBraziliansMatter (brasileiros
negros importam), uma parceria com o movimento negro dos Estados Unidos.
No
período de 12 a 21 de maio de 2006, o conflito entre as forças de segurança de
São Paulo e a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) deixou quase 500
mortos pelo Estado, sendo 42 agentes públicos e 452 civis. Passados dez anos,
apenas dois PMs foram condenados, e ambos recorrem em liberdade.
Para
Silva, a impunidade transforma o Brasil em “produtor de Mães de Maio”. “Se os
Crimes de Maio tivessem tido punição, a gente não teria mãe de 2007, de 2008,
de 2009, de 2010, de 2011, de 2012, de 2013, de 2014, de 2015 e de 2016. Nós
temos que gritar, porque nós não podemos aceitar.”
O
livro Mães em Luta foi organizado pelo jornalista André Caramante, da Ponte
Jornalismo. De acordo com dados levantados pela Ponte e apresentados na obra, a
PM paulista matou 12.022 pessoas nos últimos 21 anos (entre julho de 1995,
quando a Secretaria da Segurança Pública começou a divulgar dados estatísticos
sobre a violência, e julho de 2016), número equivalente à população atual do
município de Cananéia, no litoral sul do Estado.
Em
média, 47,5 pessoas foram mortas por PMs a cada mês no Estado. Nesse cenário,
os policiais também são vítimas: cinco foram assassinados por mês no período.
A
existência dessa “guerra não declarada” entre PM e cidadãos é retratada nas
páginas de Mães em Luta, em perfis escritos por repórteres da Ponte. Um desses
textos resgata a memória de Luana Barbosa dos Reis.
Em
um depoimento forte, que emocionou a plateia, a professora Roseli Barbosa dos
Reis, irmã da vítima, contou que aguarda a condenação de três PMs envolvidos no
caso. Em abril deste ano, Luana foi abordada e espancada por policiais na rua
de sua casa, na periferia de Ribeirão Preto. Ela morreu cinco dias depois, em
decorrência de uma isquemia cerebral causada por traumatismo craniano
encefálico.
“No
dia 12 de novembro a Luana estaria completando 35 anos. Ela foi assassinada aos
34 anos de idade. Ela nasceu dois dias depois de o meu pai ter sido assassinado
aos 34 anos de idade. Não sai da minha cabeça que a minha irmã morreu da mesma
forma como tantos negros morreram no tronco. Ela foi espancada, não se deram
nem ao trabalho de atirar. Os gritos nunca vão sair da minha cabeça”, disse
Reis. “A Luana era negra, lésbica, pobre, moradora da periferia, mãe.
Silenciada em muitos lugares.”
'Guerra
às drogas é mecanismo de manutenção da hierarquia racial', diz ativista
norte-americana Deborah Small
Os
PMs envolvidos foram afastados e hoje realizam serviços administrativos. “Essa
é a punição deles. Não há foto deles na internet, eles estão protegidos em
todas as instâncias. Mas as nossas vidas se transformaram para sempre, porque o
medo acompanha a gente o tempo todo. Eles sabem disso e contam com a lentidão
do Judiciário, contam com o fato de que não vão ficar um dia sequer na prisão”,
continuou a irmã de Luana.
O
grito contra a violência continuada do Estado, do passado e do presente, tomou
conta do auditório. Ângela Mendes de Almeida, companheira de Luiz Eduardo
Merlino, morto pela ditadura, foi convidada para compor a mesa e dar seu
depoimento. Ela e a família de Merlino moveram diversas ações contra o coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido torturador, mas os processos
esbarraram na Lei na Anistia. “A impunidade em relação à vida que é tirada
pelos militares hoje em dia vem do nosso tempo”, disse.
Almeida
também expressou “enorme preocupação” com a invasão da Câmara dos Deputados por
um grupo que defende a volta dos militares ao poder. “Eu senti uma enorme
apunhalada. Temos grupos organizados defendendo a volta da ditadura. Eu sei que
a ditadura militar não acabou nunca na periferia, mas, ao defenderem
publicamente, estamos dando um passo a mais na militarização do Brasil.”
A
preocupação com o avanço do conservadorismo é geral. De acordo com a advogada
Eliane Dias, coordenadora do SOS Racismo, grupo criado na Assembleia
Legislativa de São Paulo para dar visibilidade ao tema, os negros não têm a
quem recorrer, o que torna urgente uma maior mobilização da militância.
“Se
eu tiver que pedir ajuda para um jovem negro, hoje eu não sei a quem pedir. Se
eu for no Executivo federal eu não tenho, no estadual eu não tenho, no
municipal eu não vou ter”, disse ela, que também comanda a produtora Boogie
Naipe, que gerencia os Racionais MC’s.
Após
a confirmação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a Secretaria das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que tinha status de
ministério, foi incorporada ao Ministério da Justiça e Cidadania do governo
Michel Temer.
Na
cidade de São Paulo, o prefeito eleito João Doria (PSDB) anunciou coisa parecida:
vai fundir as secretarias de Promoção da Igualdade Racial, Política para as
Mulheres e Direitos Humanos, hoje independentes, à nova pasta da Assistência
Social e Cidadania.
“A
militância tem que voltar. Para continuar persistindo na luta contra o genocídio
da juventude negra, cada um tem que sair daqui com a responsabilidade de
conscientizar pelo menos 50 pessoas”, disse Dias.
Segundo
ela, o Dia da Consciência Negra existe para que possamos “pensar e repensar” a
forma como o negro tem sido inserido na sociedade. “E até o presente momento
ele tem sido inserido da pior maneira possível, porque a cada 23 minutos e 30
segundos uma mãe entra em luto. A cada 23 minutos e 30 segundos um jovem negro
é assassinado neste País”, afirmou Dias. Os dados são do relatório final da CPI
do Senado sobre Assassinato de Jovens, divulgado em junho deste ano com base em
números do Mapa da Violência.
O
evento de lançamento do livro Mães em Luta foi encerrado com uma vigília em
homenagem aos mortos. A marcha saiu do Largo São Francisco e caminhou em
direção ao prédio da Secretaria da Segurança Pública, onde havia uma barreira
de policiais militares. O ato, pacífico do começo ao fim, terminou com o grito
por justiça de Débora da Silva e outros parentes de vítimas do Estado.
“Nós
estamos aqui na frente dos nossos servidores, que têm o dever de tomar conta
dos nossos filhos, mas que retiram a vida na ponta do fuzil, na ponta da
metralhadora, com o dedo indicador do Estado”, disse Débora. “O Mês da
Consciência Negra não pode ser só novembro, mas sim os 365 dias do ano.
Precisamos vigiar, porque senão o Estado avança.”
Publicado
originalmente em Carta Capital.
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/45729/consciencia+negra+nao+podemos+aceitar+um+estado+racista.shtml
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