Estamos
passando por um período de ofensiva conservadora na América Latina. Os fatos de
cada país não são isolados e estão intimamente ligados no plano regional.
Assim, pode-se desenhar uma rede que conecta os golpes em Honduras, no Paraguai
e no Brasil, bem como a eleição de Macri, na Argentina e a turbulência política
na Venezuela. Tal ofensiva conservadora está estreitamente relacionada à
conjuntura venezuelana e à reação de setores alinhados ao imperialismo, pois “a
Venezuela sempre foi a linha de frente da disputa política no continente, tanto
pela sua importância estratégia geopolítica quanto por ser o governo que mais
abertamente fazia o embate com os EUA no plano internacional, inclusive nas
alianças políticas internacionais”, como coloca Pedro Bocca.
Nota-se
que o processo venezuelano está no epicentro da política na região, mas os
grandes meios de comunicação nos passam informações intencionalmente
distorcidas acerca do que acontece nesse país. Para sanar as principais dúvidas
e evidenciar as principais polêmicas, AMERI entrevistou Pedro Bocca, professor
de Relações Internacionais da Fundação Santo André e membro do GRRI.
Diversas análises políticas costumam classificar como ditatoriais os
regimes políticos que diferem da democracia representativa liberal, tal como
temos no Brasil. Entretanto, essa dicotomia entre ditadura e democracia
representativa liberal nem sempre serve para analisar o cenário político dos
países. Como você classificaria o regime venezuelano e em que ele difere do que
temos no Brasil?
Estas
análises não tem sentido algum, na verdade. O processo democrático na Venezuela
é resguardado pela Constituição e vem sido aplicado no país a todo momento. A
grande diferença em relação ao que temos no Brasil é que a Venezuela (assim
como Bolívia e Equador) realizaram Assembleias Constituintes que produziram
novas Constituições que avançaram nos mecanismos de democracia participativa,
criando espaços e instituições de participação direta do povo e ampliando a
participação nas decisões políticas, através de plebiscitos e referendos, que
retiram do Congresso e das estruturas tradicionais parte do poder. Não há como
negar a democracia como modo de governo na Venezuela. Que tipo de ditadura é
essa que perde eleições? O próprio líder da oposição, Henrique Capriles, foi
eleito governador de Miranda pelos mesmos meios, o que jamais aconteceria em
uma ditadura.
Notícias sobre a
escassez de produtos básicos na Venezuela são frequentes nos noticiários, ao
passo que o Presidente Maduro alega estar havendo uma guerra econômica contra o
país. Quais os aspectos dessa guerra econômica e quais grupos estão por trás
dessa empreitada? Por que tais grupos não se sentem contemplados pelo governo
bolivariano?
A
escassez de produtos básicos existe, e é resultante de uma dupla condição.
Primeiramente, a Venezuela tem uma deficiência histórica de fornecimento, que
não foi resolvida nos governos bolivarianos. O país importa a maioria dos
produtos que consome, inclusive alimentos. Ocorre que, com a queda brusca dos
preços do petróleo que vem ocorrendo desde 2014 (e é um desses elementos de
“guerra econômica” externa, sem dúvida) o país, cuja economia depende
fundamentalmente do petróleo, não tem capital para manter essas relações de
importação de bens de consumo. Aí entra a segunda parte deste problema, que é o
boicote das empresas venezuelanas ao seu próprio povo, que não é de hoje, mas
que se sobressai nessa conjuntura. A partir da estratégia de asfixiar o governo
e criar condições de instabilidade política, muitas empresas estão realizando
lock-outs, impedindo a circulação de produtos ou abastecendo apenas regiões
selecionadas do país, como tem sido amplamente divulgado. Claro que o fundo de
tudo isso é a disputa política de classes no interior da Venezuela. Estamos
falando de um país que historicamente tem uma das burguesias mais atrasadas do
continente, mais dependentes do comércio internacional e sem projeto nacional
de desenvolvimento. Essas ideias, compatíveis com os governos neoliberais
anteriores, são frontalmente opostas ao que o chavismo propõe enquanto modelo
de desenvolvimento, democratização política e econômica, e as próprias relações
internacionais que visam cooperação e não enriquecimento individual. Esta mesma
burguesia já tentou derrubar o governo Chávez com um golpe de Estado em 2002,
já tentou derrotar o governo em eleições, e agora aposta na instabilidade
política para lucrar politicamente com esta crise.
Como você avalia o nível
de credibilidade do governo Maduro perante a maioria da população? Manifestações
como as que ocorreram no dia 1 de setembro, com o embate ideológico colocado
através das consignas “Revolución es paz” e “Tomar Caracas”, são reflexos
confiáveis da polarização política na Venezuela?
Acho
que não é uma questão apenas de credibilidade. É uma situação muito parecida
com a qual o Brasil tem passado nos últimos anos. Há um governo de esquerda,
que teve políticas que privilegiaram os setores mais pobres e vulneráveis e que
combinou isso com crescimento econômico e fortalecimento político, mas cujas
ações encontraram um limite claro na crise econômica. A economia afeta
diretamente a população, especialmente os mais pobres, e ainda mais na
Venezuela onde a crise econômica é bem superior à do Brasil. Em ambos os casos,
o líder de massas (fenômeno tão comum na América Latina) não é mais o chefe de
governo e portanto a população não tem uma referência em quem confiar da mesma
maneira como depositavam a confiança em Chávez e Lula. A direita se aproveita
dessas duas questões para contra-atacar na mídia, no financiamento de
movimentos de oposição, e no caso da Venezuela até em grupos paramilitares. É
importante lembrar que o próprio Maduro venceu as eleições por uma margem muito
pequena, então esta polarização que marca o crescimento da direita não é de
hoje. O esforço que a oposição tem feito para a convocação do Referendo
Revogatório, que pode retirar constitucionalmente o mandato de Maduro e
convocar novas eleições não é por acaso, há hoje um clima político desfavorável
ao governo da Venezuela.
Além da vontade
política, o alto preço das commodities no mercado mundial fez com que a renda
advinda da exploração do petróleo financiasse diversos programas sociais na
Venezuela. No cenário atual, de queda dos preços de produtos primários, existe
alguma perspectiva econômica para a continuidade dos programas?
O
grande erro dos governos bolivarianos na Venezuela (e o governo Rafael Correa
no Equador segue o mesmo caminho) foi justamente não atuar diretamente na
mudança do modelo de desenvolvimento (apesar do discurso do Buen Vivir) e
seguir mantendo uma economia dependente do extrativismo petroleiro. Enquanto os
preços internacionais do petróleo estavam altos, esta alternativa parecia boa,
pois os ganhos econômicos permitiam ao país realizar diversas obras e ações
voltadas à distribuição de renda e programas sociais. Quando o preço do
petróleo caiu pela metade, os efeitos em uma economia que depende 70% deste
produto e que tem mais de 90% de suas exportações relacionadas e ele foram
devastadores. A única saída econômica para a continuidade da Revolução
Bolivariana é a mudança da estrutura econômica, ou seja, um aprofundamento da
Revolução, que altere a estrutura produtiva do país, estimule a
industrialização e a soberania alimentar. O que também vai completamente contra
os interesses da burguesia compradora e financeira do país.
Na sua opinião, a
ofensiva conservadora que a Venezuela enfrenta está relacionada aos fenômenos
políticos do restante da América Latina? Podemos afirmar que existe uma
ofensiva imperialista na região, através da qual os Estados Unidos tentam
recuperar sua influência política e econômica?
Sem
a menor dúvida. Na verdade, eu acho até que é um pouco o contrário: a ofensiva
conservadora que a América Latina enfrenta é que está relacionada ao fenômeno
político venezuelano. A Venezuela sempre foi a linha de frente da disputa
política no continente, tanto pela sua importância estratégia geopolítica
quanto por ser o governo que mais abertamente fazia o embate com os EUA no
plano internacional, inclusive nas alianças políticas internacionais. Ainda que
no início dos anos 2000 os EUA estivessem com suas preocupações externas mais
voltadas ao Oriente Médio – o que foi fundamental para que os governos de
esquerda na América Latina se fortalecessem – a Venezuela nunca foi relegada a
segundo plano, como o golpe de 2002 ou os acordos militares dos EUA com a
Colômbia deixavam claros. Os EUA, passadas as intervenções no Oriente Médio e o
momento mais grave da Crise de 2008, agora retomam a América Latina como agenda
preferencial de sua política externa e o objetivo mais claro é a retirada dos
governos de esquerda e a retomada de um programa neoliberal, o que vem sido
postulado em todos os países da região, criando enorme instabilidade.
Alguns mecanismos de
integração regional, tais como a Celac e a Alba tem na Venezuela uma importante
estrutura de sustentação. Com a crise venezuelana, esses mecanismos se
enfraquecem ou podem ser tomados como uma ferramenta de superação da crise?
A
intenção dos Estados Unidos e seus aliados é que estes instrumentos inexistam.
E os três países que estruturavam politica e economicamente estes espaços –
Brasil, Argentina e Venezuela – são o centro dessa disputa. Com Brasil e
Argentina alinhados após a eleição de Maurício Macri e o golpe contra Dilma
Rousseff, e a Venezuela vivendo uma enorme instabilidade interna, estes
mecanismos não tem base política para servir de resistência. Uma prova disso é
a importância que a OEA, escanteada nos últimos anos, tem adquirido na
orquestração dessa reordenação neoliberal na América Latina.
Em setembro, houve o
anúncio de que a Venezuela não exerceria mais a presidência temporária do
Mercosul, por decisão dos governos do Brasil, Argentina e Paraguai. Inclusive,
a decisão foi anunciada após a realização da cerimônia de posse. Que argumentos
fundamentam essa decisão? Estaria havendo uma instrumentalização das normas do
Mercosul? Junto com a suspensão do direito ao exercício da presidência,
anunciou-se que a Venezuela será suspensa do Mercosul caso não incorpore ao seu
ordenamento jurídico interno algumas normativas e protocolos do bloco. Em
termos políticos e econômicos, quais as consequências, para o bloco, da
suspensão da Venezuela?
Os
argumentos invocados por Brasil, Argentina e Paraguai para a suspensão da
Venezuela e sua impossibilidade de assumir a presidência fazem relação à
não-incorporação interna da Venezuela de alguns tratados e compromissos do
Mercosul. Na prática, a Venezuela ainda não é um membro pleno do bloco, mesmo
com os avanços e a sua incorporação formal em 2012. É claro que, legalmente, a
ação contra a Venezuela faz sentido, mas o interesse por trás disso é muito
maior do que uma mera adequação de termos de cooperação. O Mercosul foi criado
no âmbito do Consenso de Washington, como uma antessala da ALCA para o ConeSul
e mudou completamente de perfil após a eleição dos governo
neodesenvolvimentistas no Brasil, Argentina, Paraguai com Lugo e Uruguai com a
Frente Ampla. É nesse contexto que Venezuela, Bolívia e Equador – países que
haviam fundado a ALBA – se aproximam, com a Venezuela oficialmente se
vinculando ao bloco. Hoje o cenário é completamente distinto, e a Argentina, o
Brasil e o Paraguai (os dois últimos através de golpes de Estado pautados na
legalidade, ou no uso político dessa legalidade) têm governos que não apostam
nesta construção do Mercosul em detrimento de acordos de livre-comércio
individuais. O Uruguai, por mais que tenha legitimidade no bloco, é
praticamente irrelevante no ponto de vista econômico e político internacionalmente,
então isolar a Venezuela é o primeiro passo para implodir o Mercosul, ou pelo
menos, flexibilizá-lo e readequá-lo às medidas neoliberais sugeridas pelo Banco
Mundial e o FMI.
Por iniciativa de
Chávez, foi apresentada a ideia de que o Banco do Sul poderia ser uma
alternativa monetária para os momentos de crise na América do Sul. Frente ao
cenário político atual, quais as chances de consolidação do banco e quais
países teriam condições de participar?
O
Banco do Sul, apesar de ótima ideia, acabou nunca decolando, ainda que
estivesse sendo gestado no interior da Unasul. A iniciativa do Banco dos BRICS,
em parceria com a Celac, era outra possibilidade que vinha caminhando neste
sentido, de oferecer o financiamento ao desenvolvimento de forma mais autônoma.
Com essa nova conjuntura política no continente, estas iniciativas perdem força
e a volta à lógica neoliberal pode significar também a volta da dependência dos
países latino-americanos com o Banco Mundial e o FMI. A proposta do Banco do
Sul, nos modelos entendidos na última década, é incompatível com os interesses
conservadores no continente, que hoje já estão no governo das maiores economias
latino-americanas (Brasil, México, Argentina e Colômbia) e tem na Venezuela o
último suspiro de resistência, daí também a intensificação na pressão pela sua
derrubada.
Natalia
Lima de Araújo é mestranda do Instituto de Relações Internacionais da USP, onde
estuda movimentos sociais transnacionais, e integrante da coordenação nacional
da AMERI.
http://brasilnomundo.org.br/entrevistas/que-tipo-de-ditadura-e-essa-que-perde-eleicoes/#.WAEeSEauYv5

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