POR QUE A CULTURA
INCOMODA MICHEL TEMER. Por Jéferson Assumção
Universo
da cultura é diverso, potente, colaborativo, horizontal. Mas elite não
comprende — por ser arcaica, cafona, obtusa, bocó. Para ela e seus cordeiros, o
criativo incomoda.
Por Jéferson Assumção
“Há
um Brasil de verdade, que não cabe nem jamais coube na mentalidade bocó,
tacanha e predatória de sua elite e classe média escravocratas.
Neste
Brasil, há arte, pensamento, ciência, compromisso democrático, consciência,
luta social, cultivo da memória e da história.
Este
Brasil de verdade faz cinema, música, literatura, ciência, filosofia. (…)
E
é também um país que está golpeado, ferido, espancado, ameaçado e violado.
Mas
vivo, muito vivo.”
Katarina Peixoto, em sua
página no Facebook dia 18 de maio
Não
por acaso, uma das primeiras ações do governo provisório de Michel Temer foi
acabar com o Ministério da Cultura (MinC). Por trás desta simples “canetada”
está cada vez mais clara a “ideia de país” que não apenas Temer e seus
ministros têm, mas também a elite brasileira e seu poder
polítco-econômico-midiático-judicial. O sumiço da Ciência e Tecnologia, das
Comunicações, a diminuição do espaço das políticas para as mulheres, para a
igualdade racial e os direitos humanos também faz parte de uma ideia de cultura
que a arcaica elite brasileira quer voltar a implementar. A verdade, por trás
deste suposto ato de economia promovido pelo Estado, é que a cultura, com suas
redes, sua possibilidade de gerar empoderamento e autonomia, sua perspectiva
ampliadora de repertórios, incomoda Temer & aliados: a elite, as igrejas, os
meios de comunicação e seus rebanhos.
Durante
o período de ascensão das politicas culturais no País, nas gestões Gilberto Gil
e Juca Ferreira, parte do Brasil começou a perceber a importância da cultura
não apenas para o mundo dos artistas. Passou a ver que todo o restante da ideia
de desenvolvimento passa pela cultura, que educação sem cultura é ensino, que
saúde sem cultura é remediação, segurança sem cultura é repressão, economia sem
cultura é acumulação, comunicação sem cultura é manipulação etc etc. Daí que ao
fechar o MinC e as pastas que mais transversalizam com ele, Temer & cia
mostram o que entendem não só por cultura, mas também por educação, saúde,
segurança, direitos humanos, igualdade de gênero, racial, comunicação etc. E
deixam claro seu projeto: um país sem autoestima, manipulável, sem
criatividade, com o mínimo de espírito crítico possível.
No
entanto, um erro do interino foi subestimar o tamanho e a importância da
cultura para o país, gerando a, atualmente, principal frente de luta contra o
provisório governo. Nas ruas, nas redes e nas ocupações da Funarte e outros
órgãos do MinC, escolas e centros culturais, não se quer apenas a devolução do
status de ministério à cultura, mas a volta de uma ideia de país em que a
cultura seja estratégica, vista como vetor de desenvolvimento social e
econômico. É óbvio que o atual governo não tem nenhuma condição, nem
legitimidade popular, de realizar esta ideia, nem de compreendê-la em sua
totalidade – seja pelo perfil de seu ministério, seja pela mentalidade de seus
aliados na mídia e no mercado.
A
postura de, no primeiro dia, não apenas apagá-la do mapa dos ministérios mas
fazer desaparecer qualquer ideia progressista, crítica, ampliadora de
repertórios nas demais áreas com ela transversais – basta ver o perfil dos
indicados a ministros – mostra uma mistura de obtusidade, ignorância,
envelhecimento e distanciamento, dos atuais donos do poder, em relação à nova
realidade política do país. Uma realidade que conta agora também com novos
atores e sujeitos capazes de fazer muito mais que anteriores massas caladas,
seja pelos jornais, seja pelos coturnos.
O
projeto óbvio da elite não é apenas acabar com o Ministério da Cultura, mas
tirar a cultura de todo lugar e fazer retroceder ao que ela sempre foi nesses 500
anos de dominação branca do país. Trata-se de um período em que, como diz
Renato Ortiz em A Moderna Tradição Brasileira, nossa elite desenvolveu-se
dentro de uma ideia de cultura como ornamento e ostentação, como adereço e
verniz de distinção social. No fundo nossa elite conservadora – representada em
gênero, números e graus no ministério atual – sempre teve vergonha da cultura
brasileira, dos modos de ser e fazer de negros, indígenas, sertanejos,
caipiras, amazônicos, suburbanos.
Pois
foi exatamente a diversidade cultural que veio, aos trancos, à tona no Brasil
dos últimos dez anos, num movimento que se deve a três grandes elementos: 1) o
desenvolvimento social e econômico do Brasil no período; 2) a aplicação de
políticas culturais mais democráticas e abrangentes e 3) a liberação da
informalidade das periferias – e o poder da diversidade cultural brasileira –
pela expansão da internet e a consequente diminuição do poder zumbizista
televisivo, ainda predominante, mas decadente.
Isso
incomoda muita gente, claro. Gente que preferiria que o Brasil fosse uma Miami,
uma Dubai ou qualquer outro parque de diversões do consumo, cercado por muros a
garantir uma cada vez mais difícil paz burguesa. Gente que fica triste com a
imensa alegria que vem das periferias e de lugares antes calados e
invisibilizados pela indústria cultural tradicional-homogeneizante, mas que já
não é suficiente para segurar todo o poder da informalidade que o uso cultural
da internet vem trazendo à tona.
Quer
queiram ou não, do meio para baixo cresce o reconhecimento de que a cultura é
importante fator de qualificação do ambiente social, de desenvolvimento
coletivo e individual, gerador de oportunidades ao ampliar repertórios, de
emprego e de renda, principalmente quando focado nos mais jovens. Jovens que
estão dando todos os sinais de que entenderam a potência da cultura e da
expressão simbólica e que enchem o Brasil de otimismo, mesmo nesses tempos
obscuros. Eles incomodam principalmente quem está no camarote ou no andar de
cima e que pretende seguir a controlar direitos, incutir valores e empacotar o
gosto para o consumo da rapaziada lá embaixo.
Agora,
como esta mesma elite não percebe que o mundo moderno passa pelo fenômeno da
valorização de sua diversidade cultural, recombinando-a em produtos de uma
economia da cultura diversa, potente, colaborativa, horizontal e que vem
incluindo milhões de pessoas criativas? Porque ela é arcaica, cafona, obtusa,
bocó. Para ela e seus cordeiros o criativo incomoda.
Não,
Temer, não foi um bom negócio
Acabar
com o MinC é tentar atacar a dimensão criativa de uma sociedade, vetar o acesso
e a transformação individual e social possibilitada pelo consumo e produção de
bens e serviços culturais diversos. É atacar o direito à fruição e à expressão
simbólicas, fundamentais para ampliar repertórios e apontar vias de superação
das mazelas vividas pelas populações que mais precisam. É impedir de se
qualificar o ambiente social via ações que gerem cultura de paz e de
discernimento, ambientes de vivência lúdica, afetiva e criativa capazes de dar
sentido à vida social para além do prosaico conjunto de sobrevivência diária. É
tirar o foco dos territórios com menor acesso a bens e serviços desta natureza,
embaixo da eterna cantilena falaciosa e economicista, cuja conta é paga pelo
que não tem e não pelo que tem. Claro que se já era pouco, com este
rebaixamento do Minc vão faltar ainda mais recursos administrativos,
institucionais e financeiros para implantar e reestruturar centros culturais,
casas de cultura, pontos de cultura, bibliotecas, pontos de leitura, pontos de
difusão audiovisual, estúdios comunitários, brinquedotecas. Obviamente que tudo
isso de caso (mal)pensado, pois os usuários e fazedores nesses espaços
incomodam muita gente.
Sem
o MinC, é fácil prever alguns resultados. A transversalidade das ações da
cultura será duramente afetada e com ela a consciência de que nossa cultura é
híbrida, de fronteira, aberta, antropofágica, de forte presença das tradições
rurais e populares, periféricas, urbanas. O patrimônio cultural vai correr
ainda mais riscos. Ante uma enorme pressão do mercado, que só vai aumentar sem
o poder do MinC como ministério, o patrimônio arquitetônico vai sofrer
enormemente, mas também as festas populares, as culturas populares poderão se
transformar cada vez mais em para-folclore mercantilizado pela força da mídia e
sua indústria cultural, altamente concentrada no Brasil e sem interesse no seu
desenvolvimento.
Num
discurso de crise, claro que vai ser barrada qualquer discussão sobre
financiamento da cultura (fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura, reforma
da Lei Rouanet, orçamento de 1,5% do total), mas também devem minguar – não tem
por que não – os espaços de participação, como CNPC (Conselho Nacional de
Política Cultural), colegiados setoriais, conferências regionais de cultura, os
planos setoriais discutidos entre os diferentes setores e linguagens
artísticas, ou seja, o espaço da cidadania, da participação na gestão. Uma
volta, com enormes consequências, e que precisa ser barrada. Não se trata de
negociar com o governo interino, não, mas de exatamente mostrar as diferenças
de visão de país e de seu povo que dividem as velhas e encasteladas elites e o
Brasil real, profundo, vivo. É por isso que o povo está na rua, nos prédios
ocupados, nas redes. É um vespeiro que foi cutucado por alguém que não conhecia
bem seu tamanho nem o do vespeiro.
Por
baixo, anestesiados (sem sensação autônoma, sem sensibilidade própria, mas
apenas a introjetada de fora), dando suposta sustentação, veremos os últimos
homens-massas zumbizados pelos meios de comunicação e entretenimento;
agressivos uns, infantilizados pela lutinha, pelo jornalismo salafrário e por
filósofos de araque; outros, rebanhos conduzidos por ricos pastores suspeitos.
Alguns, simples ingênuos (fechados, obtusos, com a cabeça entre os joelhos),
adoradores do poder dos outros. Todos só mostrarão que não entenderam nada do
que aconteceu no Brasil nos últimos anos, se não porque incomodados com o que
está emergindo com a cultura, porque mantidos ignorantes por aqueles que a
temem.
http://outraspalavras.net/brasil/por-que-a-cultura-incomoda-michel-temer/
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