Se
o juiz, chame-se Moro ou Mendes, pode tudo, contra a lei e o Direito,
instaurou-se a lei da selva
Em
2014 foi possível, na última instância, a eleição de Dilma Rousseff – uma vitória
precária, saber-se-ia depois –, mas, com ela, elegeu-se um Congresso
exemplarmente reacionário, em condições de reescrever o discurso da soberania
popular ditado no pleito presidencial.
Fica
para outra oportunidade a discussão sobre a distância ideológica do voto
majoritário em face do voto para as casas legislativas.
Desta
feita, essas considerações se cingem a uma de suas consequências: a brutal
perda de legitimidade e representação do Poder Legislativo, posta de manifesto
em face do quadro real da sociedade brasileira, contrastando com sua
composição.
Segundo
o estudo Radiografia do Novo Congresso-Legislatura 2015-2019 (pp. 18 e segs.),
do Diap, o perfil da atual Câmara dos Deputados compreende, entre outros, 200
empresários, 169 profissionais liberais, 30 servidores públicos, 23
professores, 15 policiais, sete bancários e cinco metalúrgicos.
Num
universo de 513 parlamentares, 136 assalariados, mas 74 pastores evangélicos e
191 integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária-FPA.
Esses
números, por si sós, são a mais eloquente denúncia da absoluta ausência de
representatividade do Congresso Nacional, explicam sua decadência ética,
legislatura após legislatura, e explicam, finalmente, o papel desempenhado
desde a eleição do correntista suíço para a presidência da Câmara e o último
ato da comédia de erros e equívocos em que se constituiu o ‘julgamento’, pelo
Senado, do impeachment afinal aprovado contra o mandato legítimo da presidente
Dilma Rousseff, no episódio, ré sem crime.
Aliás,
essa é a característica da nova ordem instaurada com o golpe continuado que
teve suas primícias no espetáculo do dia 17 de abril deste ano, primeiro fruto
da associação concertada entre a mídia monopolizada, o Congresso, o Pode
Judiciário e o grande capital contra a ordem política até então vigente.
O
Congresso eleito em 2014 (na mesma eleição que deu maioria à candidata Dilma
Rousseff) assegurou o golpe de Estado, mas a instalação, como seu
desdobramento, do Estado autoritário, via ditadura judicial, ou o golpe de
Estado permanente contra a ordem democrática e constitucional, é obra militante
do Poder Judiciário que se constitui, presentemente, em ‘ponto fora da curva’
do Estado de Direito democrático, tantas e seguidas são suas agressões à
Constituição da República, cuja defesa é seu dever de ofício.
Não
é irrelevante, para quem cultiva os princípios gerais do direito, que o
Tribunal Regional Federal da 4ª região (Porto Alegre), para onde seguirão em
grau de recurso as sentenças prolatadas pelo factótum da República de Curitiba,
declare, em decisão acordada numa votação de 13 votos a 1, que em tempos
excepcionais (e o que são ‘tempos excepcionais’?) as decisões judiciais não
precisam observar as leis.
Se
o juiz pode, a cada julgamento, criar o seu direito, a seu talante, o Direito
simplesmente saiu de cena, e tudo o mais é possível e o que estamos a assistir
é a um festival de absurdos que faz de Ionesco um aprendiz de dramaturgo.
Se
o juiz, chame-se Moro ou Moura, ou Gilmar Mendes, pode tudo, ou tudo pode,
contra a lei e o Direito, jogaram-se às urtigas a segurança jurídica, sem a
qual simplesmente não há Direito.
É
a legitimação da lei da selva.
Quando
um juiz de primeira ou de qualquer instância comete um ilícito, e por esse
ilícito, reconhecido pelo STF, não é punido, a mais alta Corte torna-se
cúmplice dele.
O
Supremo declarou ilegais as gravações de conversa da presidente com o
ex-presidente Lula que o juiz Moro tornou públicas.
Que
cumpria, então, ao STF, fazer? Oficiar à Procuradoria-Geral da República e ao
CNJ dando ciência desse ilícito de quebra de sigilo. Nada foi feito.
Quando
esse mesmo juiz, no recebimento de denúncia contra Luiz Inácio Lula da Silva,
declara que, a partir dali, ‘regularmente processado’ o acusado teria condições
de provar sua inocência, está agredindo tudo o que se concebe como Direito,
pois, no Estado de Direito Democrático, não cabe ao acusado provar sua
inocência, uma presunção, mas ao acusador provar sua culpa!
E
assim, em um simples despacho, o juiz transforma a presunção de inocência em
presunção de culpa! E fica tudo como dantes no Castelo de Abrantes!
Porque
o juiz – no caso juiz, investigador, promotor e julgador – não está só. Amparam
suas costas largas a mídia irresponsável, a Polícia Federal e o Ministério Público,
e, principalmente, dá-lhe respaldo o STF, quando, em dois julgamentos, decide
fazer tábula rasa do princípio constitucional da presunção da inocência, e
quando admite, contra o texto constitucional, a execução da pena de prisão
antes de a condenação haver transitado em julgado, isto é, haver passado por
todas as instâncias de apreciação.
O
STF agride os fundamentos do Direito Penal dos países civilizados.
Mostra-se,
no século XXI, incapaz de entender as lições que o Marquês de Beccaria nos
legou no seu clássico (geralmente leitura obrigatória dos calouros dos cursos
de direito) Dos delitos e das penas, obra do século XVIII.
Pensando
em punir adversários de hoje, pune a civilização, que tem na liberdade o maior
dos direitos do homem, a ele só equiparável o direito à vida.
A
supressão da liberdade é o último recurso de que deve lançar mão o Estado
contra o indivíduo, pois os anos de cárcere não são recuperáveis, como não é
recuperável a vida depois de executada a sentença de morte.
Que
fazer com a liberdade perdida pelo condenado absolvido em terceira instância?
Por
isso mesmo é de um absurdo que brada aos céus a forma como a privação da
liberdade, sem julgamento, banalizada, transformou-se em instrumento de
suplício e tortura contra acusados ainda sem culpa, posto que são presos para
que a culpa se estabeleça e os fatos de que eventualmente serão acusados
finalmente sejam apurados.
Era
assim nos tribunais dos tristes dias do stalinismo e dos famosos ‘Julgamentos
de Moscou’, era assim, entre nós, no ‘Estado novo’, era assim nos anos de
chumbo da ditadura: os adversários do regime ilegal são presos sem culpa
formada, são condenados, e a seguir ‘processados’, mas tudo começa pela prisão.
Todos
os arbítrios têm suas justificativas, sempre negadas pela História.
Os
muitos Savanarola das muitas inquisições se diziam enviados de Deus para
purificar o mundo dos ímpios e dos infiéis, como Joana D’Arc, Giordano Bruno e
Galileo.
Já
nos nossos tempos, Hitler pretendia salvar a raça ariana e Stalin livrar a
pureza do comunismo das ameaças de seus adversários internos.
Vargas
precisava, depois de 1935, livrar o País dos comunistas e dos integralistas.
A
última ditadura militar prometia livrar o País da ameaça comunista e da
corrupção. Sempre ela.
Tudo
cabia sob o guarda chuva de “crimes políticos”.
Hoje,
jovens juízes e procuradores, sem cultura histórica, esmeram-se como os novos
“salvadores da pátria” (de que os cemitérios de todo o mundo estão plenos),
portadores de uma missão divina, sentem-se e agem como cruzados da modernidade.
Para
salvar o País da corrupção, tudo é permitido, mesmo a injustiça, a perseguição
política, a derrogação dos direitos individuais tão penosamente conquistados
pela civilização.
A
judicialização da política se agrava com a partidarização da Justiça e quando
procedimentos inconstitucionais não são detidos, como os do juiz Moro e os do
inefável ministro Gilmar Mendes – “aquele que não disfarça” como muito bem
precisou o jornalista Bernardo Mello Franco, a Justiça, última expectativa de
segurança do cidadão comum, transforma-se em uma falácia.
Permanentemente
impune, o ministro Mendes impregna de peçonha os seus pagos e agora transforma
o TSE em tribuna para discutir parecer da Procuradoria-Geral da República que
condena como inconstitucional a PEC 241 (aquela que congela os investimentos em
saúde e educação) e assim meter seu incabível bedelho na discussão do mérito da
emenda.
Em
“nota técnica” assinada e divulgada por ordem superior por dois funcionários da
casa, o TSE – que nada tem a ver com as discussões que se travam no Congresso,
e sem ser chamado – discute o mérito da proposta e condena o que chama de
irresponsabilidade fiscal de governos predecessores.
Referindo-se
claramente à Procuradoria-Geral da República, dita a nota: “Não se afigura
sequer razoável que instituições que se beneficiaram tanto e, portanto são
sócias da irresponsabilidade, agora procurem fazer uma interpretação
constitucional heterodoxa, contrária à história, para buscar, de modo egoísta,
a manutenção de privilégios[…]”.
Para
o procurador e jurista Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, esses tristes
dias de hoje lembram muito a visão de justiça nazista.
Nossos
juízes de hoje estariam simplesmente a repetir o que fazia Roland Freisler,
presidente do Volksgerichtshof, o Tribunal Popular da Alemanha.
Naquele
então também se proclamava que “tempos excepcionais exigem leis excepcionais,
tempos difíceis que exigiam juízes excepcionais, decisões excepcionais.
Assim
entre nós, no Tribunal de Segurança Nacional da ditadura varguista.
Em
1964, para salvar a democracia, os militares nos premiaram com 20 anos de
ditadura.
O
Poder Judiciário brasileiro é um ponto fora da curva do Estado de direito
democrático.
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/roberto-amaral-o-poder-judiciario-brasileiro-e-um-ponto-fora-da-curva-do-estado-de-direito-democratico.html

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