Quando
estava no poder, Dilma Rousseff reuniu-se certa vez com o presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, para conversar sobre a crise
política, mas o convidado só queria falar de aumento de salário do Judiciário.
No comando do julgamento da petista no Senado, o ministro aproveitou para pedir
por lá a aprovação de uma lei de reajuste para o STF.
O
comportamento de Lewandowski, que pelo cargo simboliza o Sistema de Justiça
(Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Geral da União),
dá vida a um diagnóstico feito pelo sociólogo Jessé Souza. O Brasil, segundo
ele, tem hoje um “aparelho jurídico-policial” bastante ativo na defesa de
interesses corporativos. Uma casta jurídica, diz, “composta pelos verdadeiros
marajás do Estado brasileiro” e peça valiosa no impeachment.
Do
“complexo jurídico-policial” descrito por Souza, ex-presidente do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor de ciência política da
Universidade Federal Fluminense, fazem parte juízes, procuradores de Justiça e
policiais federais. As duas primeiras categorias estão entre os mais altos
salários pagos no serviço público e as mais caras do mundo.
O
juiz Sergio Moro embolsou 651 mil reais em 2015, média mensal de 54 mil.
Corregedora-nacional de Justiça até meados de agosto, Nancy Andrighi recebeu 40
mil por mês, de janeiro a julho de 2016, na qualidade de ministra do Superior
Tribunal de Justiça (STJ).
Mesma
média, em igual período, recebida pelo presidente da Associação Nacional dos
Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti. O procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, chefe do Ministério Público (MP), ganhou 35 mil reais
por mês. Exceto em junho, quando levou 54 mil, em razão das férias.
O
salário dos togados do STF é o valor máximo que deveria existir no setor
público, de acordo com a Constituição. Está em 33,7 mil reais. Vários
“penduricalhos” (auxílios etc) garantem ao Judiciário e ao MP contracheques
mais gordos, como os de Moro, Andrighi, Robalinho e Janot.
Em
algumas ocasiões, os valores explodem. Em abril, o procurador Deltan Dallagnol,
chefe da força-tarefa da Operação Lava Jato, recebeu 86.850,59 reais. Dois
meses depois, a ministra do STJ Regina Helena Costa ganhou 83.322,35 reais.
Uma
lei foi enviada ao Congresso em 2015 por Dilma para disciplinar os
penduricalhos e fazer o teto salarial do funcionalismo valer de fato, mas está
parada entre os deputados.
Se
o lobby de Lewandowki no impeachment der certo, a remuneração no STF subirá
16%, para 39,2 mil reais mensais. Valor proposto para o procurador-geral em
outra lei a tramitar no Senado. As duas foram aprovadas em junho pelos
deputados, os mesmos que seguram o projeto do teto.
Uma
lei sancionada em julho por Michel Temer subiu em 41% os vencimentos dos
funcionários do Judiciário e em 12%, os daqueles do MP. Um impacto estimado
pelo Ministério do Planejamento de 2 bilhões de reais ao erário este ano.
“A
casta jurídica”, diz Souza, “consegue pornográfico aumento nos seus salários já
nababescos, em meio à grave crise, e mostra todo o seu descaso e descolamento
da realidade social vivida pelos outros cidadãos.”
Mesmo
sem reajustes, o Brasil ocupa, com folga, o posto de campeão mundial em despesa
com tribunais, ao menos no Ocidente. Uma liderança apontada pelo professor
Luciano da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no estudo “O
custo da Justiça no Brasil”, de 2015.
Aqui,
gasta-se com o Judiciário 1,3% do PIB, a geração anual de riquezas do país. Nos
Estados Unidos e na Inglaterra, 0,14%. Na Colômbia, 0,21%. No Chile, 0,22%. Em
Portugal, 0,28%. Na Alemanha, 0,32%.
“Mesmo
ostentando esses números hiperbólicos, a prestação da tutela jurisdicional, no
Brasil, é uma das mais morosas do mundo, refletindo a ineficiência do Estado
como prestador de serviços públicos”, diz o desembargador Reis Friede,
vice-presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da Segunda Região, em artigo
publicado em junho no jornal O Estado de S. Paulo.
O
orçamento do MP também é sui generis. Equivale a 0,32% do PIB, de acordo com o
estudo de Da Ros, acima do gasto com o Judiciário de vários países. Na Itália,
pátria da Operação Mãos Limpas, a Lava Jato de lá nos anos 1990 e a inspiração
de Sérgio Moro no século XXI, morde 0,09%. Em Portugal, 0,06%. Na Espanha e
Alemanha, 0,02%.
Tudo
somado (Judiciário, MP, Defensoria Pública, Advocacia Geral da União), o Brasil
possui um Sistema de Justiça de 1,8% do PIB. Algo como 100 bilhões de reais
anuais.
Esse
“gigantismo”, escreve Da Ros, deveria tornar o “complexo jurídico” um tema de
interesse geral, devido aos efeitos macroeconômicos e nas prioridades de
investimento do setor público. “O debate sobre o tipo de país que o Brasil quer
ser crescentemente deverá levar em conta também o tamanho da comunidade
jurídica que a sua população pode e/ou deseja sustentar”, diz.
A
“casta jurídica” dona de gordos proventos, segundo Jessé Souza, foi um dos
protagonistas do impeachment, análise feita por ele no livro A Radiografia do
Golpe, recém-lançado pela editora Leya.
O
impeachment, diz a obra, resulta de uma combinação de interesses. No topo da
hierarquia, a elite econômica, insatisfeita com as escolhas feitas pelo PT.
Esta elite teria dois “braços armados”, o Congresso e a mídia, influenciados
por financiamento eleitoral e publicidade, respectivamente. Haveria, por fim,
“um aliado de ocasião”: o “aparelho jurídico-policial do Estado”.
O
“aliado de ocasião” foi decisivo, segundo o livro, para empurrar parte da
sociedade à causa do impeachment. Por duas razões, basicamente.
De
um lado, por identidade social. “Existe uma correspondência perfeita entre a
classe média e a classe média alta que saíram às ruas com o perfil do novo tipo
de operador jurídico que se instala no Estado”, escreve o sociólogo.
De
outro, por oferecer um motivo para milhares de pessoas engrossarem passeatas
“Fora Dilma”, a corrupção. “A Lava Jato criou um verdadeiro campeonato entre as
diversas corporações jurídicas para ver quem ganha o troféu de 'guardião da
moralidade pública'.”
Um
“falso moralismo”, segundo Souza, pois mostra indignação com a corrupção, algo
existente mundo afora, mas não com a escandalosa desigualdade social, mais
típica do Brasil. Uma desigualdade para a qual a “casta jurídica” contribui com
seus generosos holerites.
No
caso dos magistrados, o “falso moralismo” talvez tenha ainda uma outra
explicação. Ex-corregedora nacional de Justiça, a juíza baiana Eliana Calmon
acha que uma das empreiteiras baianas enroscadas na Lava Jato corrompeu
tribunais. “Não é possível que a Odebrecht levasse 30 anos de intimidade com o
poder público, com o governo, sem a conivência do Judiciário”, diz.
O
fato de o “complexo jurídico-policial” ser um “aliado de ocasião” do poder
econômico, do Congresso e da mídia explica por que já se percebe um racha na
coalizão pró-impeachment.
O
aumento do salário de ministros do STF e do procurador-geral gera briga em
Brasília. O PMDB de Temer é a favor das leis. O PSDB, segundo maior partido
governista, é contra, por causa do efeito cascata. O reajuste se multiplicará a
juízes e promotores pelo País, devido a regras constitucionais. Polêmica a
descambar para ameaças de PSDB e DEM de romper com Temer.
Outro
racha está nos rumos da Lava Jato. Em junho, o STF impôs à operação uma derrota
de caráter simbólico, ao negar a prisão de um trio da pesada do PMDB, os
senadores Renan Calheiros e Romero Jucá e ex-presidente José Sarney. Prisões
solicitadas por Janot com base justamente na acusação de o trio tentar
atrapalhar as investigações.
Mais
recentemente, após dois anos de sintonia com a República de Curitiba (Moro,
procuradores, policiais federais), o ministro do STF Gilmar Mendes atacou a
operação.Bastou a negociação de delações premidas com executivos das
empreiteiras OAS e Odebrecht indicar que tucanos graúdos serão alvejados.
Mendes, como se sabe, é íntimo do ninho tucano.
O
“partidarismo” da operação, diz Jessé Souza, tem agora que penetrar em terreno
minado e abranger antigos aliados. “Esse é o aspecto central da crise atual. A
luta de morte entre os políticos e os operadores jurídicos pelo espólio
político do golpe.”
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/09/os-marajas-do-judiciario-e-do-mp.html
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