Ontem
dediquei algumas horas a ler decisões de juízes, desembargadores e ministros.
Adoeci um pouco mais e espero conseguir fazer algo de positivo com o chorume
que li.
Enunciados
falsos podem fazer sentido. E nada há de trivial nisso. Um dos Diálogos
platônicos de maturidade, O Sofista, é dedicado ao estatuto lógico dos
enunciados falsos e sobre o passado (ou, mais precisamente, sobre o que não é).
Desde O Sofista, avançamos na literatura secundária mas, como todo problema
filosófico nos exige, não há uma solução para o estado do problema e, vale
dizer, não deve haver. A filosofia não existe para resolver os problemas do
verdadeiro e do falso, do que existe e do que não existe, mas para nos ajudar e
entender e a descrever a natureza e o escopo desses problemas, inclusive na vida
cotidiana. Inclusive frente ao poder político e ao direito.
Fui
dormir com uma pergunta na cabeça: se um juiz ou desembargador brasileiro
prescrever uma receita de ovo frito e, com base nela, autorizar a que se
enjaule um cidadão antipático à opinião do Jornal Nacional e da Revista Veja,
por que razão ele não estaria autorizado a fazê-lo?
Existe
interpretação e há teorias da interpretação, as chamadas hermenêuticas. Existem
distinções de método. Essas coisas não anulam e nunca anularão a ruptura entre
o verdadeiro e o falso e, se o fizerem, nem são interpretação, nem
hermenêutica, mas pilantragem, quando não, crime, caso envolvam violação
documental e ideológica, tipificadas no código penal, ou o uso mal intencionado
e vil de enunciados textuais, a fim de cometer atos sem amparo legal.
Há
três casos de falsificação documental que extrapolam em muito a complacência
estamental da hermenêutica jurídica e que dão a ver a seriedade dessa questão,
acima.
Por
ocasião da Ação 470, o caso do mensalão, um ministro do STF arregimentou e
violou o sentido de uma doutrina, para produzir sua acusação. A chamada
doutrina do "domínio do fato", inventada e utilizada como mera
arregimentação, é, em termos estritos, uma falsificação do que Roxxin produziu.
Na sua versão brasileira, o que ocorreu foi mais grave, em termos lógicos e
penais, do que uma dublagem: a arregimentação serviu para se inventar uma
teoria penal da responsabilidade objetiva que não visa a, como manda a
filosofia penal moderna e o direito penal brasileiro e a teoria do domínio do
fato, segundo Roxxin, buscar a pessoa ou as pessoas de direito que cometeram o
crime (com base na identificação particular, subjetiva, no encadeamento de
responsabilidade diante de crimes de magnitude e escopo coletivo), mas a atribuir
à peculiar noção de objetividade ali exposta, uma totalidade adhoc tal que
configure um crime coletivo, por associação qua associação. É como o crime
cometido por um cnpj, uma aberração semântica, jurídica, penal, processual
penal, judicial e real.
Que
uma mídia familiar oligárquica, sonegadora e vinculada a regimes de exceção e
deles advogada permanente faça isso, não surpreende. Que isso entre para a
jurisprudência brasileira é uma violação de sentido naquilo que define o que se
passou a chamar de condições de sentido de um enunciado: as condições para que
ele seja dito verdadeiro ou falso.
Ainda
assim, essa arregimentação, na medida exata em que não passa disso, pode fazer
algum sentido, como falsidade. O acusador sofista, aposentado após a prestação
de seu serviço, ao menos se retirou de cena. Com pouca repercussão e nenhum
acolhimento conceitual entre os bacharéis superassalariados, o próprio Roxxin
disse sua teoria havia sido falsificada, quando em visita ao Brasil, num
seminário, após ter se tornado célebre (infelizmente, não por ter sido
predado).
Outra
falsificação grotesca, também de escopo nocivo e corrosivo da vida
institucional do país, foi cometida pelo juiz moro. Ele conseguiu transmutar a
descrição, feita por Vannuci, o cientista político italiano, no célebre "O
Fracasso da Operação Mãos Limpas", segundo a qual a operação teria
produzido uma "deslegitimação da política", em prescrição. Num artigo
cometido em revista especializada, cita o Vannuci para defender, vejam só o
desvio além da hermenêutica: operações de combate à corrupção deveriam promover
a deslegitimação da política.
Dizer
que algo produziu a deslegitimação da política não é, por critério algum, dizer
que algo deve produzir a deslegitimação da política. Pior: identificar ambos os
enunciados ao citá-los como idênticos é falsificar o enunciado original.
A
terceira falsificação escandalosa que autoriza a gravidade da questão acima, a
respeito do ovo frito, foi cometida há muito pouco tempo, por desembargador
federal, prontamente apoiada por uma maioria de falsificadores ou complacentes
com a falsificação.
A
propósito da análise de representação contra as violações, como tais
reconhecidas pelo próprio TRF4, do juiz sergio moro, da Lei Orgânica da
Magistratura, que veda o expediente delinquente de grampear advogados e violar
a relação entre esses e seus clientes, os senhores desembargadores não somente
arregimentaram um filósofo, como o fizeram por segunda mão, via Apud, de texto,
inacreditavelmente, cometido por um ex-ministro do STF. O ex-ministro comete a
inversão completa e falsificadora do sentido de "exceção jurídica"
analisado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Eros Grau preda o que diz
Agamben e os senhores do TRF4, sem timidez nem respeito ao texto do Agamben,
aliás com boa tradução para a língua portuguesa, e para a vergonha e a explicitação
de um grau periculoso de indigência intelectual e jurídica que assola e ameaça
as instituições do país, julgam válida a falsificação do sentido de
"exceção jurídica" e usam uma falsificação para assegurar outra.
Trata-se
de uma falsificação de segunda ordem, para escândalo de qualquer pessoa
letrada. Essa falsificação é grave e nos leva a muitas questões, igualmente
graves: se e quantos outros casos há, de falsificações gritantes de teorias,
arregimentadas por juízes que não respondem pelo que fazem, não prestam contas
a ninguém e, por isso, mandam para a cadeia e inviabilizam a vida de quem for?
Enganam-se
os que pensam que isso vai parar ou que isso é só contra o PT e seus
dirigentes. Essa ingenuidade não tem o menor cabimento, quando juízes não se
envergonham de falsificar teorias, prender sem provas e dizendo que a falta de
provas é motivo para prender.
Pode
ser analfabetismo funcional, pode ser ignorância, pode ser miséria intelectual
carregada do câncer atávico, residual, da cultura bacharelesca, de colônia
escravagista. Há muitas hipóteses que exigem o acompanhamento judicioso do que
juízes dizem que usam como fundamento de suas decisões e o que procuradores e
promotores usam para fundamentar suas denúncias. Fico pensando se alguém que
denega a existência pregressa dos dinossauros ou o legado epistêmico do
darwinismo pode saber em que consiste uma relação de causalidade, de inferência
e de probabilidade. Custo a crer, mas eu sou só uma doutora em filosofia, que
se graduou em direito numa das melhores escolas do país, caracterizada,
exatamente, por nos prevenir das metástases antilegalistas. Quanto a isso, sou
grata.
Descrever
algo é uma das coisas mais difíceis e também requer compromissos semânticos
explícitos. Quando eu digo: "a teoria do domínio do fato é o modo de
fritar ovos", estou dizendo que essa teoria, não uma outra, é o modo, não
nenhum outro, de fritar ovos.
Se
esse não é o modo de fritar ovos, incorro em falsidade, isto é, enuncio algo
falso, mesmo que possa fazer tanto sentido como um ou o modo x de fritar ovos.
Mas
uma criança em idade escolar, antes da reforma do ensino médio imposta pelo
subletrado da força de usurpação do MEC, pode distinguir sem problema algum
entre "o modo de fritar ovos" e "o modo como se deve fritar
ovos". Uma criança saberá que essas frases e seus enunciados não são
idênticos e que, portanto, identificá-las é errado.
De
que natureza é esse erro? Um das coisas mais graves, além do fato melancólico e
estarrecedor de que juízes podem mandar enjaular pessoas com base em
falsificações feitas por eles mesmos, ou que podem autorizar um outro juiz a
fazê-lo, com base em outras falsificações, feitas e cometidas em publicações
sem filtro intelectual minimamente alfabetizado, é que esses servidores
públicos recebem salários elevados sem que, para tanto, seja requerido mais do
que a graduação em direito e, podemos inferir muito tranquilamente, concursos
públicos com baixa exigência intelectual e cultural.
Eles
não dão aulas em dois ou três expedientes, após doutorado e mestrado, recebendo
bolsas simbólicas que mal compram livros e pagam passagens de ônibus. Eles não
são obrigados a ler e escrever em mais de um idioma. Não são julgados por pares
e pelos que dependem de seu trabalho, para se formarem. Eles não respondem a
ninguém e vivem num estado orçamentário e burocrático cujo nível de
accountability é irredutivelmente separado do que se passa na vida fiscal,
orçamentária e institucional, do país.
Proposições
falsas podem fazer sentido, mas não ciência. Proposições falsas e verdadeiras
não podem e não devem ser transportadas, sem filtros como os das prerrogativas
fundacionais do estado de direito e dos direitos fundamentais, para o âmbito
judicial. Proposições falsas não podem é mandar ninguém preso e nem fundamentar
o enjaulamento de pessoas.
E
aí o problema lógico ganha um contorno mais grave: ele serve ao delito, ao
crime, ao arbítrio.
Agora
respondam: por que um juiz brasileiro não pode enviar alguém para a cadeia ou
autorizar a delinquência de um par, com base na receita de ovo frito?
Espero
em breve ter isso mais organizado (estudo o Roxxin, no momento, e espero
publicar este texto, se ele ficar mais bem trabalhado). Uma das vantagens de
ter perdido tantas coisas e de viver o direito como algo nada trivial, é poder,
sem medo de punição além das que já recebi e receberei, chamar atenção para
isto: o golpe em curso, no Brasil, não é parlamentar. E quem pensa em termos
democráticos e defende a democracia precisa voltar os olhos e a inteligência
para esses setores de opacidade, predação e violação de direitos, que
contaminam e inviabilizam a economia, a vida institucional e as relações de
representação, no país.
Desde o
Viomundo, o Conversa Afiada reproduz estupenda análise de Katarina Peixoto em
seu Facebook
http://www.conversaafiada.com.br/brasil/estupraram-roxxin-e-agamben
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