Cidadania,
Nação e Desenvolvimento: anotações esquemáticas a propósito de um Brasil
golpeado, que renuncia a si mesmo.
A
cidadania moderna, conforme assinala T.H. Marshall (1967), é um status
compartilhado. Com ela, na Europa Moderna, foi superada a estrutura fragmentada
de soberania, direitos e obrigações da sociedade medieval, integrando todas as
pessoas num mesmo sistema de direitos, ainda que, num primeiro momento,
limitado à sua dimensão civil.
Abria-se,
contudo, um espaço de disputa que vai pavimentar a expansão da cidadania às
suas outras dimensões, política e social. Como se sabe, foram agentes decisivos
de tal expansão os trabalhadores e suas organizações, presentes em diferentes
figurações que impulsionaram a conquista do sufrágio universal, da liberdade de
associação e dos direitos sociais, esses materializados nos distintos formatos
que encobriram a emergência do Estado de Bem-Estar Social.
Os
Estados Nacionais delimitaram o espaço de disputa aludido acima. No limite,
eles tendem a se consolidar como a articulação entre as modernas burocracias
públicas e a ordem política democrática (Bendix, 1996), ambiente institucional
em que se afirmam e pactuam os atores que concorrem para a expansão da
cidadania.
A
Nação é sua dimensão subjacente, o elemento não contratual da cidadania, historicamente
construído. Certa feita, Weber (1984) assinalou que a Nação é uma comunidade de
sentimento, que aspira construir um Estado.
Para
além de laços de consanguinidade, territoriais ou linguísticos, o que define
fundamentalmente a Nação é a disposição das pessoas de viverem juntas sob um
mesmo Estado, ainda que muitas vezes tal disposição seja caudatária de
processos impositivos da autoridade estatal, que se desenrolam na longa
duração.
As
conexões entre os Estados Nacionais e as grandes empresas, nascidas e sediadas
no espaço territorial em que aqueles exercem sua soberania, representaram uma
memorável aliança (Weber, 1968), que permitiu tanto o alcance de certa
homogeneidade normativa e jurídica para a operação das firmas no espaço
nacional, quanto sua projeção externa.
Por
seu turno, conquanto associada também a outros fatores, a propensão de tais
empresas à inovação tecnológica foi impulsionada pela resposta empresarial à
pressão dos trabalhadores atuantes no espaço nacional comum (Furtado, 1979), conduzindo
à elevação dos salários e da produtividade e conferindo suporte material aos
provimentos vinculados à expansão dos direitos sociais.
Uma
vez que a garantia dos direitos, como franquias e provimentos
(Dahrendorf,1992), exige a presença de instituições com capacidade de
enforcement, não se vislumbra em futuro próximo a substituição do Estado
Nacional como locus da cidadania.
É
possível e razoável pensar em instituições supranacionais que definam (com a
noção de direitos humanos, por exemplo) limites à atuação dos Estados
Nacionais, bem como imaginar processos hodiernos de construção de novas
comunidades de sentimento, que sustentem a disposição de viver sob arranjos
erguidos a partir da renúncia deliberada a soberanias parciais, como pareceu
estar ocorrendo, por certo tempo, com a União Europeia.
Todavia,
nada no horizonte aponta, hoje, para a constituição de instituições supranacionais
com capacidade de tornar homogênea e efetiva, no espaço territorial que
abarcam, a operação dos direitos da cidadania.
Na
trajetória da cidadania no Brasil, o êxito da colonização portuguesa, e dos
grupos que controlaram o Estado após a Independência, na manutenção da unidade
linguística e territorial do Brasil, foi importante para a constituição de
laços identitários entre as pessoas que nele habitam.
Tais
laços, todavia, não têm sido suficientes para eliminar – na comunidade de
sentimento insinuada pela convivência em um espaço comum – as fissuras
derivadas da monumental desigualdade e segmentação da sociedade brasileira, em
seu percurso autocrático-burguês (Fernandes, 1975) do escravismo colonial
(Gorender, 1980) ao capitalismo dependente.
Assim,
em sequência diversa daquela apontada por Marshall, a cidadania afirmou-se, no
Brasil, de forma regulada e incompleta (Santos, 1979 e 1993; Carvalho,2002;
Fleury, 1994).
Não
se erigiu, ademais, no espaço econômico doméstico, um elenco expressivo de grandes
empresas nacionais, com disposição para inovar e propensão à projeção externa.
De certa forma, isso decorreu da perspectiva que orienta as decisões relativas
à aceleração do processo de industrialização, cujo propósito mais destacado foi
a produção interna de bens típicos da pauta de consumo das sociedades europeias
e de sua extensão norte-americana, para atendimento à demanda dos segmentos
mais endinheirados da população (Furtado, 1979).
Entre
esses, o sentimento de pertencimento à comunidade nacional brasileira sempre
rivalizou com a percepção de que eram, na verdade, filhos desterrados das
regiões centrais do capitalismo.
O
esforço de equiparação do Brasil às economias centrais, tal como o de outros
países que vieram depois, foi liderado pelo Estado (Castro, 2012). Proteção e
estímulos diversos se somaram à criação de um significativo sistema de ciência
e tecnologia e à atuação das empresas estatais, cujas inversões asseguravam
forte ritmo de crescimento, além de concentrar o rarefeito ímpeto inovador do
capitalismo no país.
O
apelo precoce às multinacionais para acelerar o processo de industrialização,
todavia, não favoreceu a geração de mecanismos de estímulo à inovação no
conjunto da economia brasileira. Entre as multinacionais, as atividades inovadoras
mantinham-se fundamentalmente nos países sedes.
Entre
as empresas brasileiras, desenvolvia-se uma modalidade passiva de aprendizado
tecnológico, inibindo iniciativas de pesquisa e desenvolvimento e reforçando o
apego ao trabalho barato, sustentado no enorme contingente de população rural
que se dirigia às cidades e na limitação do espaço de atuação sindical e
política dos trabalhadores.
Se
outro caminho era possível, quando buscado não foi capaz de soldar coalizões
suficientemente fortes para deter o processo de internacionalização progressiva
do espaço econômico doméstico, apesar da ocorrência de momentos marcados por
grande energia cívica nacional em favor da construção de um país soberano e
justo.
Proposições
nacionalistas eram torpedeadas pelo discurso cosmopolita de parcelas
majoritárias das elites econômicas e da classe média, sob a batuta das
corporações familiares da mídia, sempre acompanhado da sabotagem mais ou menos
aberta à operação da ordem democrática.
O
sentimento de pertencimento à Nação brasileira dissociou-se, pois, de suportes
econômicos, além de conectar-se fracamente à democracia, manifestando-se em boa
medida apenas como o compartilhamento de certos estilos, símbolos e práticas
culturais.
O
fim da ditadura militar foi um desses momentos de manifestação de expressiva
energia cívica, indicado acima. Contemporâneo da conclusão do processo de
industrialização substitutiva e da transição rural-urbana, com o fortalecimento
do peso e da presença política dos trabalhadores e de todos os de baixo,
assistiu ao alinhamento e atualização concentrados das três dimensões da
cidadania, expressas na Carta de 1988.
Por
seu turno, embora com ímpeto menor que as demandas de expansão da cidadania,
emergiram também inclinações nacionalistas tardias, como a anunciar, mesmo fora
da ordem e num espaço econômico já profundamente internacionalizado, a
possibilidade de articulação entre a construção da cidadania, a afirmação da
Nação e a promoção do desenvolvimento.
O
que os economistas liberais chamaram de a década perdida, de fato representou a
possibilidade de um novo começo, em que as fissuras na comunidade de sentimento
(até então só prometida pela existência de uma identidade brasileira) poderiam
ser finalmente superadas, com a democracia e o desenvolvimento, de modo a gerar
as bases materiais necessárias para prover os direitos civis, políticos e
sociais previstos no pacto firmado pela Constituição Cidadã.
Na
década de 1990, contudo, em meio às pressões do ambiente internacional e ao
alinhamento majoritário das elites econômicas contra o risco de ascensão da
esquerda à direção do Estado, instaurou-se mais um ciclo de internacionalização,
acompanhado de esforços para reduzir o alcance dos direitos sociais inscritos
na Carta de 1988, e da anacrônica pretensão de firmar a competitividade das
empresas no rebaixamento do custo do trabalho, incongruente com a conclusão da
transição rural-urbana já vivida pelo país.
As
inconsistências do arranjo neoliberal à escala global, expressas nas
recorrentes crises financeiras, a resistência dos de baixo, bem como a
frustração do que restou de empresariado nacional com a promessa de um novo
ciclo de desenvolvimento (assentado no tripé abertura econômica/atração de
capitais externos/ redução do custo Brasil), impediram a plena efetivação da
distopia internacionalizante neoliberal.
Os
governos inaugurados em 2003 propuseram um novo pacto nacional, circunscrito
pelos limites herdados da trajetória pregressa do país. Assim, ao mesmo tempo
em que apostaram na constituição de um mercado de massas (com crescimento dos
salários e políticas de transferência de renda) e na adoção de políticas ativas
para estimular a disposição de inovar das empresas brasileiras, mantiveram os
arranjos macroeconômicos estabelecidos no período anterior, que minavam o
impacto de boa parte das políticas encaminhadas.
Por
seu turno, se na política externa e em políticas setoriais apontava-se para a
projeção soberana do país no cenário internacional e para o fortalecimento e
emergência de agentes econômicos nacionais, tais iniciativas não foram
acompanhadas de efetiva disputa política e ideológica para cimentar as coalizões
que dessem sustentação ao pacto proposto.
Sem
alterações de relevo no sistema político, mantida intocada a estrutura
oligárquica e familiar da mídia brasileira, diante dos impasses gerados pelas
turbulências da economia global e desacertos na condução política e econômica
do governo, em 2013, verificou-se a deserção ao pacto proposto, dez anos antes,
de parte importante do empresariado brasileiro, mais uma vez seduzida pela
reacionária perspectiva de elevação da competitividade com a erosão dos ganhos e
direitos do trabalho.
O
protagonismo e autonomia da presença política brasileira no cenário global e a
orientação nacionalista de algumas políticas, como a do Pré-Sal, incomodavam
círculos empresariais e políticos dos EUA, somando-se à insatisfação do capital
financeiro, internamente, com as ações para derrubada da taxa de juros,
apontadas como voluntaristas.
Assim,
sob comando da mídia, secundada pelo viralatismo empedernido de grande parte da
classe média, desencadeou-se o processo de desestabilização política do governo
Dilma Rousseff, que se acentuou em 2015 e 2016, culminando na instalação do
processo de impedimento da presidenta.
O
golpe de 2016 representa o eterno retorno do Brasil a um passado que teima em
não desaparecer. Não mais a Nação. Não mais a cidadania. Não mais o
desenvolvimento. O horizonte do governo de ocupação nacional que se estabeleceu
em 17 de abril, além da desconstrução dos já frágeis arranjos de proteção
social existentes no país, é a constituição de um espaço econômico plenamente
internacionalizado.
Tal
configuração só conduziu à combinação de dinamismo econômico e bem-estar social
em países pequenos, convertidos a plataformas de exportação de empresas
multinacionais. Nos países médios e grandes, em território e população, a presença
de um elenco expressivo de empresas nacionais inovadoras foi decisiva à
ocupação de posições centrais ou à superação de posições inferiores na economia
global (Amsden, 2009).
Ela
é, também, elemento nuclear nas configurações que sustentam o círculo virtuoso
que conecta inovação tecnológica, valorização do trabalho e bem-estar social.
Pretender outro caminho não é, como afirma o discurso pedante da capitulação
nacional, absorver a melhores práticas ou participar da convergência que
derivaria do processo de globalização. Não há convergência. Não há precedentes.
O horizonte do governo golpista, de todos os golpistas, é único, singular, é
mais uma jabuticaba brasileira. Sem sabor, sem sentimento, sem nação. É a
renúncia ao Brasil.
Referências
AMSDEN,
A. (2009) A Ascensão do ‘Resto”. São Paulo: Editora da UNESP
BENDIX,
R. (1996). Construção Nacional e Cidadania. São Paulo: EDUSP
CARVALHO,
J. M. (2002) Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
CASTRO,
A.B. (2012) Brasil: Desenvolvimento Renegado. In: Ana Célia Castro e Lavínia
Barros de Castro (org) Do Desenvolvimento Renegado ao Desafio Sinocêntrico –
Reflexões de Antônio Barros de Castro sobre o Brasil. Rio de Janeiro/ São
Paulo: Elsevier /Campus.
DAHRENDORF,
R. (1992) O Conflito Social Moderno Rio de Janeiro: Zahar, 1992
FERNANDES,
F. (1975) A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar
FLEURY,
S (1994). Estado sem Cidadãos. Rio de Janeiro: Fiocruz.
FURTADO,
C. (1979). Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Companhia
Editora Nacional
GORENDER,
J. (1980) O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática.
MARSHALL,
T. H (1967). Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar.
SANTOS,
E. G (1993) As Razões da Desordem. Rio de Janeiro: Rocco.
SANTOS,
V. G. (1979) Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Campus
WEBER,
M (1968) História Geral da Economia. São Paulo: Editora Mestre Jou.
WEBER,
M.(1984) La “nacion”. In M. Weber, Economia y sociedad. Mexico: Fondo de Cultura
Economica.
*Ignacio
Godinho Delgado é Professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), nas áreas de História e Ciência Política, pesquisador do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e
Desenvolvimento (INCT-PPED), e colabora com a Revista Escuta. Doutorou-se em
Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1999, e
foi Visiting Senior Fellow na London School of Economics and Political Science
(LSE), entre 2011 e 2012.
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/ignacio-delgado-governo-de-ocupacao-de-temer-troca-soberania-por-globalizacao-sem-freios.html
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