Coordenador
do MTST, Guilherme Boulos critica, em entrevista ao portal Sul21, a política do
governo Michel Temer em relação ao 'Minha Casa Minha Vida', lembrando que
"o governo interino já disse que vai mexer nos subsídios e no recurso do
FGTS para políticas sociais"; sobre o impeachment, ele avalia que
"tudo indica que a disputa no Senado é muito difícil de reverter";
"Mas achar que a crise política do país se encerra após os senadores
fazerem a votação final do impeachment é uma ilusão", ressalta
Débora
Fogliatto, Sul 21 - O Departamento Municipal de Habitação (Demhab) ficou
ocupado por 29 dias por movimentos de luta por moradia em Porto Alegre,
despejados na última quinta-feira (11). Um dia antes da reintegração de posse,
a ocupação sediou a aula pública “A periferia ocupa a cidade“, com a presença
do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
Guilherme Boulos, para quem os problemas observados na capital gaúcha se
assemelham aos do restante do país.
Ativista,
cientista político e integrante do MTST há 15 anos, Boulos falou, em entrevista
exclusiva ao Sul21, sobre a situação política atual, com a recente decisão do
Senado de dar continuidade ao processo de impeachment da presidenta afastada
Dilma Rousseff (PT), além dos desafios que os movimentos sociais irão enfrentar
daqui para a frente. Em termos de políticas habitacionais, o cenário é
complicado: “a equação está montada, eles querem transformar o Minha Casa,
Minha Vida num programa de financiamento imobiliário para classe média e alta”,
apontou, referindo-se ao governo de Michel Temer.
Recentemente,
os partidos DEM e PSDB pediram a prisão de Boulos, acusando-o de “incitação ao
crime”, o que foi amplamente denunciado pelos movimentos sociais como uma
tentativa de criminalização das manifestações. Sempre criticando a direita, ele
encara a questão com tranquilidade. “Essa é a cara da elite no Brasil, não só
econômica, mas essa elite dos partidos tradicionais e conservadores. Não me
estranha que criminalizem. Eu prefiro sofrer um processo do DEM ou do PSDB do
que receber um elogio deles”, afirma.
Sul21
– De que forma o MTST enxerga o cenário político nacional atual?
Guilherme
Boulos – Tudo indica que a disputa no Senado é muito difícil de reverter. Mas
achar que a crise política do país se encerra após os senadores fazerem a
votação final do impeachment é uma ilusão. Esse foi o peixe podre que venderam
para poder legitimar o impeachment, até porque o que está em jogo evidentemente
é a democracia, com a colocação de um governo que não recebeu voto de ninguém,
mas também o programa do golpe. O golpe não foi feito por acaso, não foi
financiado por acaso. A burguesia brasileira não dá ponto sem nó. Essa turma
quis e apostou nessa jogada política para poder ter melhores condições de
aplicar um programa de regressão social total no país. Reforma trabalhista,
reforma da previdência, PEC do teto dos gastos públicos, desmonte da
universidade pública, destruição de programas sociais, com o fim do subsídio
que os respalda. O que está em jogo é uma política de regressão, fazer o país
andar 30 anos para trás. Para a gente ter uma ideia, eles consideram a
Constituição um entrave. Se no Brasil ser de esquerda é defender a
Constituição, nós não estamos bem. Até porque é uma Constituição limitada, que
não tem grande ênfase social, e ainda assim isso se tornou um entrave pra
acumulação selvagem de capital que eles querem promover. Isso é parte da
disputa do golpe. Achar que vai aplicar um programa como esse no país e não vai
ter resistência popular, é ingenuidade. Isso vai continuar, não se encerra um
ciclo com a votação. Entramos num período longo de instabilidade, luta política
e efervescência social no Brasil.
“De
fato, há uma ameaça brutal para a política pública de habitação no Brasil e
também uma iminência de retrocesso”
Sul21
– A luta por moradia, mesmo com poucos avanços na reforma agrária e urbana,
obteve algumas melhorias nos últimos governos, com programas como o Minha Casa,
Minha Vida. De que forma essa área também pode ser afetada?
Boulos
– É importante a gente situar que nós sempre fomos muito críticos ao modelo do
Minha Casa, Minha Vida.[O programa] foi construído com protagonismo das
empresas de construção, fora de um debate sobre reforma urbana e cidade,
produzindo moradia em geral mal localizada e de baixa qualidade. Ainda assim, o
Minha Casa, Minha Vida foi uma reversão do subsídio público para moradia
popular que não tinha havido no país. Depois do fim do BNH, que também era um
programa cheio de limitações, o país ficou 30 anos sem programa habitacional.
Então veio o Minha Casa, Minha Vida, limitado, e nós criticamos isso, mas
acabar o MCMV não é enfrentar suas contradições, é destruir o que possa haver
de política habitacional no Brasil, e isso seria um retrocesso tremendo. E,
nesse sentido, vamos ter que enfrentar isso, o governo interino já disse que
vai mexer nos subsídios e no recurso do FGTS para políticas sociais. A equação
está montada, eles querem transformar o MCMV num programa de financiamento
imobiliário para classe média e alta. Isso foi o que sempre existiu, que é ir
num banco e pegar financiamento imobiliário, com juros de mercado. Isso não é
programa social, é crédito imobiliário. Não precisa do Estado pra isso, o
mercado já faz, já oferece. De fato, há uma ameaça brutal para a política
pública de habitação no Brasil e também uma iminência de retrocesso, vai ser um
desafio para o MTST e o conjunto de movimentos travar esse combate.
Sul21
– Tem como se pensar em um modelo de política habitacional ideal?
Boulos
– O ideal não seria uma política habitacional, mas sim uma política urbana.
Sequer o problema da moradia se resolve construindo só moradia. O MCMV é o
melhor exemplo disso, porque produziu de 2009 até aqui uns três milhões de
moradias, em sete anos. O déficit habitacional brasileiro em 2008 era cinco
milhões e 300 mil famílias. O último dado que temos disponível no IBGE é 2012,
quando o MCMV já tinha três anos e tinha construído cerca de um milhão de
casas. E o déficit subiu para cinco milhões e 800. Ou seja, se construiu um
milhão de casas e o déficit aumentou. Por quê? Porque não basta construir casa.
É preciso ter uma política urbana que freie a especulação imobiliária, que garanta
a capacidade do poder público de planejar e executar a política pública na
cidade e que tire isso da mão do mercado. Nós tivemos, nesse mesmo período, um
processo de especulação imobiliária brutal. Ao mesmo tempo em que se teve um
programa de habitação inédito, as cidades nunca produziram tanto sem-teto.
O
ritmo de produção de moradia foi menor que o ritmo de criação de novos
sem-teto, pela especulação imobiliária, pela inflação do valor do aluguel, pela
expulsão. Isso tem a ver com uma política urbana comandada pelo capital
privado. Quem controla terra, controla política pública. Quem controla a terra
define o preço da terra e consequentemente, o preço do aluguel, define a
localização pra onde vai se construir habitação popular, ou seja, o tema não é
apenas construir uma política habitacional, o tema é fazer reforma urbana, é
construir um banco público de terra, é aplicar algumas medidas previstas no
Estatuto das cidades, de enfrentamento da especulação imobiliária, com IPTU
progressivo, com desapropriação e sanção, impedimento de terras ociosas.
Existem mecanismos legais que podem ser utilizados pra isso.
“O
prefeito de Porto Alegre e seu vice e candidato a prefeito têm que entender que
a luta dos sem-teto em Porto Alegre veio pra ficar”
Sul21
– Aqui em Porto Alegre, a forma como o município tem conduzido essas políticas
tem sido muito criticada, inclusive com a ocupação do Demhab. Tem como apontar
alguma cidade brasileira que talvez esteja melhor nesse caminho?
Boulos
– É difícil. É difícil porque a lógica é uma só: setor da construção financia
campanha eleitoral. Setor da construção tem as bancadas de vereadores na sua
mão, detém cargos estratégicos na política urbana do poder público e molda a
cidade a seus interesses. É claro que há iniciativas interessantes. Agora em
São Paulo, na prefeitura do Fernando Haddad, teve um mutirão de notificação de
áreas ociosas, que são o primeiro passo para aplicação do IPTU progressivo. A
legislação diz: “Área ociosa tem que ser notificada pelo poder público. Depois
de um ano ocorre IPTU progressivo e, depois de cinco anos com IPTU progressivo,
o poder público pode desapropriar por sanção”. Isso não acontece porque não se
faz o primeiro passo, que é a notificação. Então lá se fez um mutirão de
notificação. O plano diretor de São Paulo, conquistado pelos movimentos
sociais, pela luta e a organização, foi um plano diretor que teve mecanismos de
algum grau de enfrentamento à especulação imobiliária, mas são experiências
ainda muito residuais, insuficientes para se enfrentar o tamanho e a voracidade
do capital imobiliário.
A
respeito aqui de Porto Alegre, a ocupação do Demhab é um exemplo. É um
escândalo que dezenas de pessoas estejam aqui há 28 dias e que a Prefeitura de
Porto Alegre não se disponha a negociar e ofereça uma alternativa habitacional,
que trabalhe com tratar como caso de polícia. Achar que as pessoas vão sumir
daqui, que as pessoas vão entrar no bueiro? As pessoas vão continuar existindo
e vão continuar fazendo luta. O prefeito de Porto Alegre [José Fortunati] e seu
vice e candidato a prefeito [Sebastião Melo] têm que entender de uma vez por
todas que a luta dos sem-teto em Porto Alegre veio pra ficar e que vão ter que
lidar com essa situação. Não é botando tropa de choque da Brigada Militar aqui
na frente do Demhab que o problema vai se resolver. Tem que negociar, tem que
oferecer política pública. É um escândalo que depois de 28 dias de ocupação, a
postura da Prefeitura de Porto Alegre seja o silêncio [Essa entrevista foi
concedida um dia antes da reintegração de posse do Demhab. A posição da
Prefeitura de não dialogar com os movimentos permaneceu a mesma até o despejo].
Sul21
– Qual é o tamanho do MTST e a atuação do movimento atualmente?
Boulos
– O MTST está hoje em 11 estados brasileiros, reúne algo em torno de 40 mil
famílias, entre ocupações e núcleos comunitários nas periferias, principalmente
das capitais desses estados. Ano que vem completa 20 anos de existência tendo
como sua principal forma de atuação as ocupações na luta por moradia, mas é um movimento
que não se restringe ao tema da moradia. O MTST busca trabalhar a questão
urbana e a luta pelo direito à cidade de uma forma integrada. Então a luta por
moradia está associada à luta por mobilidade, porque quando as pessoas são
jogadas mais longe por causa da especulação mobiliária, isso significa maiores
distâncias em relação ao trabalho. A luta por moradia está associada à luta por
serviços públicos de qualidade nas periferias, porque o fator que separa a
periferia do centro é relativo a ter ou não benefícios em determinados cantos
da cidade. O MTST busca construir em sua atuação uma visão crítica de cidade e
uma luta por reforma urbana.
“A
raiz da corrupção estrutural no Estado brasileiro está ligada ao financiamento
empresarial de campanha”
Sul21
– O movimento também tem posição em relação à necessidade de uma reforma
política?
Boulos
– Claro. O MTST acha que há reformas estruturais pendentes na sociedade
brasileira. Há uma dívida histórica do Estado brasileiro com a maioria do nosso
povo. Os 13 anos de governo petista nem de longe sanaram essa dívida. Do ponto
de vista das reformas populares estruturais, não se tocou nisso. Se fez um
verdadeiro pacto, onde ao mesmo tempo em que os de baixo ganharam algo com
programas sociais, com política de valorização salarial, com crédito público,
os de cima não perderam nada. Continuaram tendo lucros recordes. Esse pacto
conservador se deu ao custo de não tocar em nenhum dos temas essenciais, como
reforma agrária, reforma urbana, reforma tributária, dívida pública e,
naturalmente, o sistema político. Se uma coisa ficou clara nesses últimos anos
é que esse sistema político brasileiro está falido. Com todas as suas
contradições, a Lava Jato mostra isso também. Digamos que uma coisa efetiva que
a Lava Jato mostra é o que a esquerda brasileira falava, há 20 anos, que a raiz
da corrupção estrutural no Estado brasileiro está ligada ao financiamento
empresarial de campanha, que é o cerne desse sistema político, um sistema
absolutamente permeável e aberto aos interesses econômicos e fechado aos
interesses populares, à participação popular. Essa é a cara do sistema político
brasileiro, e ele faliu.
Há
uma crise de representatividade brutal. Existe então a necessidade de uma
reforma política profunda e estrutural, com radicalização democrática, que
passe pelo fechamento dos canais de irrigação que fazem o poder público refém
do interesse econômico, que passe pela construção de mais mecanismos de
participação popular, plebiscitos pra temas essenciais, mecanismos de controle
social, de conselhos deliberativos – não os consultivos que existem e são
ornamentos bonitinhos, mas não decidem nada – que passe por uma garantia de
representatividade efetiva, como por exemplo, a participação das mulheres, de
negros e negras no Parlamento, que há uma distorção brutal. Nós temos menos de
10% de mulheres no parlamento e são 51% da sociedade brasileira. Empresários,
temos 60% deles no parlamento e são 2% da sociedade, então é preciso uma
mudança profunda no sistema político brasileiro. Nós defendemos isso.
“A
direita não tem mais argumentos, lida na pancada. É uma direita que trabalha na
iniciativa da criminalização como seu principal método”
Sul21
– De que forma o MTST tá encarando a realização dos jogos olímpicos e todas as
polêmicas em torno dos megaeventos?
Boulos
– Nós achamos que esses megaeventos trazem muito mais um anti-legado do que um
legado. Assim foi na Copa e assim está sendo nas Olimpíadas. A consequência
mais direta das Olimpíadas para a maioria do povo carioca é militarização,
especulação imobiliária, remoção e despejos, inflação do custo de vida na
cidade e as obras são muito focalizadas, ligam o setor hoteleiro, aeroportuário
e arenas, que não atendem no essencial a maioria do povo carioca. Assim foi na
Copa com a maior parte das cidades-sede, então nós não estamos entre aqueles
que fazem uma crítica em relação aos jogos Olímpicos apenas porque o Michel
Temer foi ao Maracanã e acha que se fosse a Dilma, tudo bem. Nós somos críticos
aos efeitos perversos, mas evidentemente, nós também achamos que os jogos
olímpicos, nessa condição, em meio a um golpe parlamentar, se tornaram uma
oportunidade para denunciar esse golpe e é importante que essa denúncia ocorra
como tem ocorrido. Tiveram uma derrota, quiseram fazer uma censura vergonhosa e
foram derrotados. O Michel Temer sofreu uma vaia estrondosa no Maracanã e os
jogos olímpicos não deixam de ser uma forma de denunciar para a comunidade
internacional que há, de fato, um golpe em curso no Brasil e que se estabeleceu
um governo ilegítimo e antipopular.
Sul21
– Recentemente, o DEM e o PSDB entraram com ações contra ti. Como foi essa
questão? Como é que tu estás encarando?
Boulos
– Eu acho que isso é o retrato do pântano que se tornou a direita brasileira. É
uma direita que não tem mais argumentos, que lida na pancada. É uma direita que
trabalha na iniciativa da criminalização como seu principal método. O golpe
mostrou muito isso. Uma direita com uma mentalidade de casa grande, uma direita
patriarcal, uma direita rançosa. Essa é a cara da elite no Brasil, não só
econômica, mas nessa elite dos partidos tradicionais e conservadores. Não me
estranha que criminalizem. Eu prefiro sofrer um processo do DEM ou do PSDB do
que receber um elogio deles. É, talvez, um sinal de estar no caminho certo, na
luta do MTST, da Frente Povo Sem Medo, que é essa iniciativa que nós
estimulamos, de unidade mais ampla de lutas em nível nacional. Esse é um sinal
do campo de luta organizado que construíram e que de alguma forma está
incomodando. Não deixa de ser um bom sinal.
http://www.brasil247.com/pt/247/rs247/249814/Boulos-%E2%80%98Achar-que-crise-se-encerra-ap%C3%B3s-impeachment-%C3%A9-ilus%C3%A3o%E2%80%99.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário