Em
2007, quando o assassinato de Che Guevara completou 40 anos, a revista Veja,
cujo modelo de jornalismo já conhecemos publicou uma reportagem de capa, ao
estilo “guia politicamente incorreto” de seus foquinhas amestrados, para tentar
demolir o mito. Dias depois, uma carta pública do biógrafo de Che, o premiado
jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, desmentia o teor da reportagem
praticamente por completo, acusando seu autor de ter sido parcial e desonesto.
“O
que você fez com Che é o equivalente a escrever sobre George W. Bush utilizando
apenas o que lhe disseram Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad para sustentar seu
ponto de vista”, escreveu Anderson, cujo livro é apontado pela própria Veja
como “a mais completa biografia de Che”. Espantosamente, este libelo de mau
jornalismo vem sendo utilizado nos últimos anos pela direita indigente
intelectual brasileira para tentar reduzir Che a um “assassino”, como se o
contexto, uma revolução, não justificasse mortes. Tem colunista de jornal aí
que só se refere a ele como “porco fedorento”. Este é o nível deles.
Mas
qual o interesse dos cérberos reaças de enlamear Che Guevara? Será que é porque
não tem nenhum ídolo do lado de lá para servir de modelo aos jovens a não ser
torturadores, generais ditadores e exploradores da miséria do mundo? Leiam
abaixo a entrevista que fiz com Jon Lee Anderson para CartaCapital na época e
vejam o que ele responde.
***
Guerra
é guerra*
O
jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, autor de Che Guevara – Uma
Biografia (Editora Objetiva), considerado o mais completo relato sobre a vida
do guerrilheiro executado em 1967, rebate incisivamente as acusações de que Che
fosse não um herói, mas um assassino frio que se regozijava de matar seus inimigos.
Lee Anderson é colaborador da revista The New Yorker desde 1998. Respeitado
correspondente internacional, escreveu, além do livro sobre Che, A Queda de
Bagdá (Editora Objetiva) e Guerrillas (inédito no Brasil), em que analisa os
mujaheddin do Afeganistão, a FMLN (Frente Farabundo Martí de Liberación
Nacional), de El Salvador, a Unidade Nacional Karen (KNU) birmanesa, a Frente
Polisário do Saara Ocidental e um grupo de jovens palestinos que luta contra
Israel na Faixa de Gaza.
O
jornalista criticou a reportagem de capa da revista Veja em que o
revolucionário argentino é acusado de ser uma farsa e até de não gostar de
tomar banho. “O artigo de Veja é ridículo! Baseado em fontes parciais e
comprometidas, sem nenhuma novidade, é um exemplo singular de jornalismo
barato, ou seja, algo construído a partir do nada, mas com o objetivo de fazer
sensacionalismo. Embora aparente ser jornalismo investigativo, na realidade é
puramente tablóide.”
Leia
a seguir a íntegra da entrevista de Jon Lee Anderson, que se encontra
atualmente viajando por vários países dando palestras sobre Che Guevara. Ele
falou à CartaCapital via e-mail enquanto esperava, no aeroporto de Miami, um
vôo para Caracas.
CartaCapital:
É verdade que Che Guevara se acovardou em seus últimos momentos, dizendo: “Não
disparem. Valho mais vivo do que morto”?
Jon
Lee Anderson: Não me consta e francamente duvido que tenha dito isso. Tudo
parece crer que, ao contrário, demonstrou muita coragem em seus últimos
momentos, como havia demonstrado antes. Não se acovardou. Isso é uma invenção
para desacreditá-lo.
CC:
Che foi um assassino frio e cruel? Tinha prazer em matar?
JLA:
Che queria mudar o mundo. Não foi cruel. Foi, isto sim, uma pessoa muito
rigorosa e teve um período severo (mas totalmente justificado pelas normas da
guerra) na guerrilha cubana com traidores, desertores e demais. Executou
algumas pessoas e ordenou a execução de outras. Depois do triunfo, presidiu os
tribunais para criminosos acusados de delitos pelo antigo regime, tais como
tortura, violação e assassinato. Centenas deles foram julgados e justiçados.
Posteriormente, houve uma tentativa de um grupo de críticos da revolução cubana
de reviver essa época para apresentar o Che como uma espécie de assassino em
série, como fez Veja. A verdade é que Che se portou como um soldado encarregado
de uma tropa em precárias condições e com a responsabilidade de um oficial. Não
fez nem menos nem mais do que qualquer outro militar confrontado com situações
de vida ou morte. Não se regozijou de matar, assumiu-o como um mal necessário
da guerra, por sua vez necessária para mudar o regime cubano de Fulgencio
Batista. Ninguém nunca acusou Che e seus combatentes de haver matado soldados
inimigos capturados, nem os feridos que encontraram. Ao contrário: Che os socorreu
pessoalmente ou providenciou para que fossem socorridos. Em alguns casos
liberou soldados presos, à diferença da tropa de Batista, que assassinou
rebeldes capturados e civis simpatizantes também. Descontextualizar as ações de
Che na guerra, além de tendencioso, é totalmente absurdo do ponto de vista
histórico.
CC:
Alguns soldados criticam a atuação de Che como líder, dizendo que foi fraca,
desastrosa. Ele não sabia liderar?
JLA:
Os líderes nem sempre são populares com todos os seus subordinados. Alguns
podem ter se ressentido com Che por sua língua afiada e tendência a não perdoar
os idiotas nem os frouxos – podia ser muito ácido. Mas outros respeitaram este
mesmo rasgo da personalidade do Che e o definiram como um fator de seu
crescimento pessoal. Aceitaram a crítica e trataram de melhorar para também
receber o beneplácito de Che, a quem respeitaram muito por sua coragem,
honestidade e incorruptibilidade. Em resumo, sim, sabia liderar, mas era muito
exigente.
CC:
Che matou gente com suas próprias mãos?
JLA:
Que soldado não mata? A guerra é um teatro bélico no qual os homens enfrentam
sua própria morte e tentam matar os inimigos para que não os matem.
CC:
A biografia do Che é a história de um fracassado, como defendem alguns?
JLA:
Isso depende da ótica política de cada um, obviamente. Eu acho que o legado do
Che é mais inspirador que derrotista. Quer dizer, é certo que ele não triunfou
em seus esforços para fomentar a revolução em países como o Congo e a Bolívia.
Mas o legado que deixou, de que um homem pode tentar mudar o mundo e que pode
deixar um exemplo que estimule outros a segui-lo – inclusive depois de morto –,
é mais duradouro. Universalmente, o Che é, fracassado em vida ou não, visto
como um herói, um símbolo de rebeldia e princípios diante de um status quo
injusto. Isto é o que enlouquece os de direita, o que os incomoda: que o Che
siga potente como um símbolo, um mártir, um herói. Que herói eles têm para
ostentar à raiz da Guerra Fria, alguém que a garotada queira pôr em camisetas?
Pinochet???
CC:
Em sua opinião, quem matou Che, a CIA ou o Exército boliviano?
JLA:
Está comprovado que foram os dois. A CIA esteve presente. O agente Félix
Rodríguez admite ter recebido a ordem de executar Che do Alto Comando militar
boliviano e de haver pedido a um voluntário para cumprir a ordem. O sargento
boliviano Mario Terán levantou a mão e o fez. A responsabilidade é conjunta,
compartilhada.
CC:
O senhor é um fã de Che? Acredita que ele seja um herói?
JLA:
Sou seu biógrafo, não um fã. Os fãs são totalmente acríticos, são groupies para
quem seus heróis podem fazer qualquer coisa e o aceitam. Eu não sou fã de
ninguém porque ninguém é infalível. O Che tem meu respeito, isso é verdade.
Havia aspectos nele dos quais eu não gostava, e outros que sim. Se no meu
julgamento tinha aptidões de herói? Sim. Viveu de uma forma muito heróica,
sobretudo ao final. E morreu com valentia. Isso, como sempre foi para a
humanidade através da história, o faz um herói. Assassinar um homem ferido e
depois esconder seu cadáver, isso é covardia. Qualifica- se como um crime de
guerra.
*Reportagem originalmente publicada em CartaCapital em 11/10/2007.
http://www.socialistamorena.com.br/biografo-de-che-que-heroi-a-direita-tem-para-colocar-em-camisetas-pinochet/
Nenhum comentário:
Postar um comentário