O antropólogo, cientista
político e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares é um dos mais
notáveis defensores da necessidade de se desmilitarizar a Polícia no Brasil. O
coautor dos livros Elite da Tropa 1 e 2 (Que deram origem aos filmes Tropa de
Elite) defende uma reforma que em sua avaliação não é simples, mas necessária,
para que a polícia brasileira seja menos letal e, ao mesmo tempo, cumpra melhor
seu papel. Esta questão está intimamente relacionada à superlotação das prisões
e à sua falência em recuperar os criminosos, segundo ele.
A entrevista é de Débora
Fogliatto, publicada por Sul21, 21-06-2016.
Carioca, Soares veio a Porto
Alegre para participar do evento “Porto Alegre sem medo – Construindo uma
cidade mais segura“, promovido pela pré-candidata à prefeitura pelo PSOL,
Luciana Genro, que acontece nesta terça-feira (21) na Assembleia Legislativa.
Em entrevista exclusiva ao Sul21, ele fala sobre a questão da desmilitarização
da polícia, a necessidade de haver uma carreira única para os policiais e o
papel que os municípios podem ter para melhorar a segurança pública. “A
ideologia que rege as instituições militares policiais é a da guerra. E se
cumpre um mandado da sociedade para eliminar, liquidar fisicamente os inimigos,
o que é absolutamente incompatível à atividade de uma polícia”, afirma.
Eis a entrevista
O senhor defende a
desmilitarização da polícia como uma possível solução para a violência
policial. De que forma isso beneficiaria a sociedade e mudaria a forma como as
polícias agem?
Não necessariamente mudaria,
mas é um pré-requisito para que mude. Então é uma condição necessária, mas não
suficiente. Se pensarmos no Brasil, nós temos 56 mil homicídios dolosos por
ano, dos quais só 8% são investigados. E a partir daí muita gente deduz que
seja o país da impunidade, quando temos a quarta população carcerária do mundo,
a que mais cresce desde 2002. Então isso pode parecer um enigma, mas é simples
de desvendar. Há uma polícia, que é a mais numerosa, que está nas ruas todos os
dias, durante as 24 horas. E essa polícia é proibida de investigar, é a Polícia
Militar. Então a polícia que não pode investigar é instada, é provocada a
produzir. E qual é a produtividade da PM, como ela define essa efetividade
enquanto instituição? Prendendo. E apreendendo armas e drogas. Se ela não pode
investigar, está proibida constitucionalmente de fazê-lo, ela é pressionada
pelos governos, mídia e população a fazer prisões em flagrante. E quais os
crimes passíveis de prisão em flagrante? Os que são acessíveis aos cinco
sentidos. Isso significa um filtro seletivo que faz com que a ideia de
aplicação da lei seja absolutamente distorcida.
Qual lei é instrumentalmente
mais útil para o trabalho da PM? É a lei de drogas, porque é possível
identificar os aviõezinhos, aqueles rapazes em geral que se dedicam à
comercialização das substâncias ilícitas. E portanto, você encontra nos
territórios mais pobres, mais vulneráveis, nas periferias, vilas e favelas, a
presença policial que vai à caça de seus presos prediletos: os presos
possíveis. Que não por acaso são negros, pobres e jovens, que estão entupidos
as penitenciárias, sendo induzidos a buscar um vínculo com uma organização
criminosa. Em geral, quando são presos eles não apresentam vínculos sólidos com
organizações criminosas, não portam armas e não cometeram violências. Então
você está prendendo varejistas do comércio de substâncias ilícitas, entupindo
as prisões e arruinando a vida desses jovens por um preço muito alto. Isso tudo
por conta de um casamento perverso entre o modelo policial e a lei de drogas.
A lei de drogas também
precisaria ser mudada, então?
É, eu estou focalizando num
aspecto que é importante, mas não é o único. Porque então pode-se dizer que se
deve conceder à Polícia Militar a possibilidade de investigar também. Mas como
seria possível para agentes que são organizados hierarquicamente, que seguem o
comando superior sem pestanejar – porque a disciplina militar exige isso –
aplicar a lei civil, se responsabilizar por investigações? Parece incompatível
a natureza militar com esse tipo de prática.
Qual é a melhor forma de
organização? É uma pergunta que não pode ser respondida, depende da
instituição. A organização adapta uma certa entidade ao cumprimento de suas
finalidades. Então começamos identificando o objetivo. O Exército, que é o
modelo copiado pela PM, se organiza para cumprir sua tarefa, que é garantir a
soberania do território, recorrendo inclusive a recursos bélicos quando
necessário. Por isso, se centraliza de forma muito rigorosa, com uma hierarquia
vertical muito rígida, porque o seu método de ação para cumprir sua finalidade
se define pelo pronto-emprego, que é a capacidade de deslocar grandes
contingentes humanos de forma eficiente e rápida. Portanto, se justifica, ainda
que tenha havido muitas mudanças, com sofisticação, meios eletrônicos, os
exércitos estão mais organizados. Mas de qualquer forma, compreende-se
plenamente o formato. Uma polícia só deveria imitar essa estrutura do exército
se a finalidade fosse a mesma. Mas não é essa a finalidade. A polícia tem como
finalidade a garantia de direitos, prover meios para que se pratique a garantia
de direitos. E se é assim, como vai se organizar como se fosse um exército?
Claro que há confrontos que são bélicos, mas esses momentos correspondem a um
número muito reduzido diante da complexidade e da magnitude das tarefas que se
impõem às polícias militares do Brasil. Você não vai organizar uma instituição
inteira para atender 1% da necessidade. Poderia ter unidades formadas
especificamente para essa finalidade.
E por isso a polícia é tão
letal?
Sim, isso nos conduz à
questão do comportamento. A violência policial letal é uma tragédia nacional, a
polícia do Brasil é uma das que mais matam no mundo, pelo menos entre os países
que fornecem essas informações. E os dados são subestimados. No Rio de Janeiro,
que talvez seja um dos estados com melhor registro desses fatos, tivemos entre
2003 e 2015, 11.343 mortes provocadas por ações policiais. Policiais muitas
vezes morrem também, a situação de enfrentamento bélico é negativa também para
eles. A ideologia que rege as instituições militares policiais é a da guerra. E
se cumpre um mandado da sociedade para eliminar, liquidar fisicamente os
inimigos, o que é absolutamente incompatível à atividade de uma polícia, porque
não há inimigos, há cidadãos que são suspeitos ou que estão colocando em risco
a vida de terceiros e devem ser contidos a partir da escala das ameaças. Isso
nada tem a ver com a guerra propriamente dita, ainda que ações sejam similares.
Quando toda a polícia é treinada para eliminar um inimigo, o suspeito passa a
ser alvo de um ataque de destruição. Isso é escandaloso. Claro que seria
possível tentar mudar essa cultura corporativa tão violenta e tão brutal mesmo
sem a mudança estrutural, mas seria muito difícil. Não valeria a pena todo o
empenho cujos resultados seriam improváveis mantendo um sistema organizacional
que de qualquer forma é incongruente e incompatível às necessidades
constitucionais.
A atitude das Polícias
Militares em relação às repressões de movimentos sociais também segue essa
lógica da guerra?
Sim, tem a ver com a
estrutura organizacional, com a militarização. Até porque os policiais na ponta
são máquinas de reprodução das ordens superiores, não são agentes treinados
para refletir e tomar decisões com alguma dose de autonomia, o que seria o
ideal. Eles são instruídos para obliterar o pensamento e agir como máquinas que
obedecem e cumprem ordens. Por isso vemos cenas terríveis, tristes, em que
jovens, pobres, frequentemente negros, entram em confronto com outros jovens,
pobres, frequentemente negros, oriundos dos mesmos territórios vulneráveis,
alguns uniformizados. Quando não haveria nenhuma razão para que se matassem
mutuamente, sobretudo no campo dos movimentos sociais.
Ao mesmo tempo, o senhor
mencionou os homicídios que são poucas vezes desvendados. A Polícia Civil
também precisaria passar por uma reforma?
Sim, e essa própria
distinção entre civil e militar é parte do problema. Toda polícia, como em
qualquer parte do mundo, deveria cumprir todas as atribuições. A Polícia Civil
enfrenta problemas enormes e é muito deficiente no cumprimento do seu mandato
constitucional. Oito por cento de crimes resolvidos significa 92% de
impunidade. Qualquer instituição que se proponha a cumprir um objetivo e não
consiga em 92% dos casos diria que é preciso parar e começar de novo. Isso não
é culpa de uma pessoa, é um problema estrutural. Assim como a brutalidade da
Polícia Militar, não é necessariamente passível de atribuição a um ou outro indivíduo,
já tem um padrão que vai se reproduzindo independente da vontade do próprio
corpo profissional. Portanto, temos, na área da investigação, problemas na
relação com a perícia, problemas organizativos, de investimentos, há o problema
do inquérito policial, que é burocratizado, não flui. Então temos um desastre,
uma falência desse modelo. Prendemos muitíssimo, temos mais de 700 mil presos
no Brasil, dos quais só 12% cumprem penas por homicídio, 2/3 estão lá por
crimes contra o patrimônio. Não é preciso dizer que, num país racista como o
nosso, a maioria é negra, além de jovem e do sexo masculino. Prendemos muito e
mal, arruinamos vidas de jovens e abdicamos de controlar a violência letal. E
pior, o Estado acaba por reproduzi-la com seus braços institucionais. Então o
Estado é parte do problema, assim como as polícias, independente das vontades
individuais.
E ainda por cima, há muitos
presos que aguardam julgamento dentre os que lotam as prisões, certo?
Exato. Eram 40% até dois
anos atrás e houve um esforço muito grande do CNJ, houve uma queda expressiva,
embora ainda seja um grande número. Mas a diferença é de classe, o que no caso
brasileiro acaba sendo também de cor. Porque quem tem advogado não fica preso,
salvo exceções. E as defensorias públicas não existem em número suficiente para
atender essa massa de suspeitos, réus, inclusive porque há mais de 300 mil
mandados de prisão esperando cumprimento no Brasil.
Existem projetos de lei já
pensando em mudar essa questão das polícias militarizadas?
Há dezenas de PECs
(propostas de emenda à constitucional) circulando ou tramitando no Congresso
Nacional sobre a polícia. Mas, a respeito da desmilitarização, eu acho que são
poucas. A mais elaborada, do meu ponto de vista, seria a PEC 51/2013, de autoria
do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), cuja elaboração eu até participei. Ela
resulta de conversas com profissionais, pessoas das corporações, diálogos e
experiências diversas. Não há proposta perfeita, mas essa é talvez a que pode
ir mais longe, de forma sistêmica, com o mínimo de resistência. É um meio-termo
entre o avanço e a capacidade de agregação. Os pontos principais são a
desmilitarização e a realização do ciclo completo com atribuição de todas as
instituições policiais. Com a desmilitarização, a PM deixaria de existir e a
nova polícia iria investigar, mas de outro modo. A carreira única é outra
grande bandeira de agentes e oficiais da Polícia Civil, Federal e de boa parte
dos trabalhadores da Polícia Militar [incluída na PEC]. Há alguma resistência na
cúpula das instituições, mas, particularmente na Polícia Civil, os oficiais são
mais abertos em relação a isso.
Porque hoje, na prática,
temos quatro polícias. A Civil se divide em delegados e agentes. Basicamente os
agentes, embora tenham várias funções, não podem ascender até se tornarem
delegados, que é uma função de comando. E, na Polícia Militar, há os oficiais e
praças, são duas entradas diferentes, o que acaba formando castas que viram
problemas internos. Esse tipo de arranjo não estimula a coesão interna e barra
o acesso às posições superiores de muitos profissionais que poderiam ascender
com base no mérito, no tempo de experiência. Quem entra como praça, precisaria
fazer um novo concurso para conseguir chegar às posições mais altas. E não se
leva em conta na prova a experiência prévia.
Importante também falar que
isso não é suficiente. Essas mudanças todas são, a meu juízo e segundo
avaliação da maioria dos envolvidos nessa área, indispensáveis, mas não são
suficientes, porque podemos ter estruturas organizacionais muito melhores, mais
suscetíveis a controles externos, mais permeáveis a políticas de transparência,
mais indutoras de políticas de segurança e mais capazes de respeitarem direitos
humanos. Mas as estruturas por si mesmas, ainda que facilitem, não garantem que
políticas de segurança aplicadas sejam adequadas. Isso depende de autorização
política, da formação, do governo do Estado, e depende da autorização popular.
A brutalidade policial não existiria sem autorização social.
Sobre essa autorização
social, percebe-se que o discurso do “bandido bom é bandido morto” se acentua
conforme a violência aumenta. A mudança teria que vir a nível cultural também?
Sem dúvida. Só que devemos
pensar nisso tudo como uma realidade pluridimensional, com muitas camadas
diferentes. Se nós agirmos em todas as dimensões, cujas temporalidades são
muito diferentes, vamos contribuir para que esse processo estabeleça uma
química interna e gere um agregado mais favorável. A mudança da sensibilidade
da cultura acontece sem que a gente possa controlar, mas se a gente investir em
uma educação com sensibilidade para os direitos humanos, vamos estimular esse
resultado, embora não possamos garantir. Se a mídia e as linguagens de
comunicação incorporassem um pouco mais esses valores, isso ajudaria. Se as
escolas constituíssem força de valorização dessas atitudes, avançaríamos numa
direção mais positiva. São processos que precisam existir paralelamente.
Isoladamente, essas medidas não são suficientes, mas são imprescindíveis e
devemos investir em cada uma delas de acordo com as possibilidades e com as
resistências que enfrentamos. Esses são processos muito complexos, não podemos
resolver em um só momento todos os problemas.
Nesse sentido, o que se pode
fazer no âmbito municipal para tornar as cidades mais seguras?
Pergunta fácil essa, né?
(Rindo). Na nossa constituição, no artigo 144, que organiza a segurança
pública, os municípios não têm nenhum lugar. Há uma menção rápida de que podem
ter uma guarda civil, que podem cuidar dos patrimônios municipais, como
parques. E isso inclusive é uma contradição com todo o desenho da constituição
brasileira, que em 1988 estimulou a participação do município como ente
federado importante, no cumprimento das grandes políticas sociais, como educação,
saúde e assistência. Há uma tripartição de funções e de destinação de recursos,
há uma composição articulada no SUS, mesmo na educação, nunca vi esse modelo
sendo criticado, foi até modelo de conquista. Isso não se aplica à segurança
pública, o município não tem função nesse sentido. A União tem a Polícia
Federal, a Rodoviária Federal e ponto final. Isso é muito pouco diante das
responsabilidades que poderiam ser atribuídas. Todas as responsabilidades caem
nos ombros dos estados. E os municípios não têm responsabilidades do ponto de
vista de segurança pública. Não há politica nacional, orientação sobre o que
devem ser as guardas municipais. A segurança municipal é uma grande
possibilidade da reinvenção da segurança pública no Brasil, a despeito de todos
os limites.
A partir de investimentos em
assistência social, por exemplo?
Falar em assistência é muito
genérico. Para que haja resultados, é preciso que haja diagnóstico. A gente tem
que observar cada situação em cada bairro, território, entender que processos
estão em curso. Isso exige pesquisa, escuta e diálogo com a comunidade. Por
exemplo, por que em determinado lugar as pessoas se armam para vender
substancias ilícitas, por que acontece esse crescimento? Temos que descobrir
que tipos de trajetória estão tendo esses jovens, quais as características
desse processo. Se entender em cada região o porquê de acontecer um crescimento
desse tipo de formação armada, pode-se atuar sobre os dispositivos geradores
desses processos. O que se obtém no tráfico é reconhecimento, valorização,
acesso a recursos simbólicos e financeiros. Isso são condições para que a
autoestima se fortaleça, mesmo que essas generalizações sejam complicadas.
Jovens que são invisíveis, que não são reconhecidos, vivem um esmagamento da
autoestima, enfrentam problemas em casa, familiares, comunitários e vagando
pelas ruas se sentem desprezados ou desprezíveis. Quando lhes é oferecida uma
arma para que ingressem em um grupo poderoso, percebem que isso é uma espécie
de passaporte para a visibilidade e o pertencimento. E a experiência do
pertencimento é muito gratificante. Isso tudo explica em parte porque se está
disposto inclusive a arriscar a própria vida ingressando ali muitas vezes por
pagamentos diminutos. Em geral, o recurso material não é a principal razão.
Se esse diagnóstico foi
razoavelmente preciso, podemos extrair que, ao invés de montar uma máquina de
guerra e invadir esse território para liquidar essas pessoas, com as
implicações desastrosas que estamos cansados de ver, você pode montar um
processo paralelo que seja capaz de oferecer a esses jovens o mesmo que o
tráfico oferece, com o sinal invertido: reconhecimento, valorização,
pertencimento e possibilidade de redefinição dos seus horizontes de vida. Se
você monta um dispositivo capaz de competir com essas outras fontes de
recrutamento, você pode recrutar aqueles que estão vulneráveis a irem para o
tráfico.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/556650-a-brutalidade-policial-nao-existiria-sem-autorizacao-social-entrevista-com-luiz-eduardo-soares
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