A
5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgando o Recurso em Habeas Corpus
59.759, interposto pelo Núcleo Recursal da Defensoria Pública de Santa
Catarina, anulou um processo em que a decisão de recebimento da denúncia não
foi fundamentada. Segundo a Defensoria Pública catarinense, "considerando
que a decisão que recebe a denúncia tem natureza interlocutória, deve ser
fundamentada, ainda que de forma sucinta. Nesse momento, o juiz deve verificar
a presença dos pressupostos processuais, das condições da ação penal e a
existência da justa causa."
Esta
decisão do Superior Tribunal de Justiça é paradigmática, pois, como se sabe,
nossos tribunais sempre consideraram que a decisão que recebe a denúncia seria
um mero despacho, de modo que prescindiria da necessária fundamentação. É bem
verdade que já tinha havido "alguma evolução" a respeito da matéria,
pois a jurisprudência passou a entender, há algum tempo, que tal ato judicial
seria uma "decisão interlocutória simples", admitindo-se, por
conseguinte, a utilização das fórmulas genéricas: “cite-se o acusado” ou
“recebo a denúncia, pois preenchidos os requisitos legais.”
Ainda
assim, a ofensa ao artigo 93, IX, da Constituição Federal, que dispõe sobre o
dever do Poder Judiciário de fundamentar suas decisões, era de uma evidência
absurda. Não esqueçamos que a legitimidade dos membros Poder Judiciário (e do
Ministério Público também) sustenta-se, fundamentalmente, na motivação de suas
decisões (e dos pareceres em relação àqueles), já que não são escolhidos pelo
voto popular. Afinal de contas, como dizia Calmon de Passos, "nosso saber
só se legitima pela fundamentação racional (técnica, política e ética) de
nossas conclusões). Porque impossível o controle experimental da correção do
resultado, exige-se sua convincente fundamentação e compatibilidade
sistêmica."[1]
Ao
ratificar a referida tese, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afirmou
que "a decisão de recebimento da denúncia possui natureza interlocutória,
prescindindo de fundamentação complexa. (...) Caso em que o julgador, nem mesmo
de forma concisa, ressaltou a presença dos requisitos viabilizadores da ação
penal. Deixou de verificar a presença dos pressupostos processuais e das
condições da ação, tampouco tratou da existência de justa causa para o
exercício da ação penal, limitando-se a cuidar da presença dos pressupostos
intrínsecos à peça processual, nestes termos: Recebo a denúncia, pois a peça
acusatória preenche todos os requisitos do art. 41 do CPP. (...) A falta de
fundamentação não se confunde com a fundamentação sucinta. Interpretação que se
extrai do inciso IX do art. 93 da CF/88.”
Este
julgado, efetivamente, trata-se de uma superação da então jurisprudência
predominante em nossos tribunais (overrulling). A propósito, em uma palestra no
3º Congresso da Magistratura Laboral, ocorrido na sede do Tribunal Regional do
Trabalho da 2ª Região, em São Paulo, questionado por esta revista Consultor
Jurídico se os magistrados precisariam analisar todas as alegações das partes
em suas sentenças e acórdãos, o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori
Zavascki afirmou que, no confronto entre a necessidade de os Juízes
fundamentarem suas decisões e a celeridade processual, a primeira norma (sic)
deveria prevalecer “o dever de fundamentar está na Constituição Federal. Agora,
a fundamentação não pode ser insuficiente, mas não precisa ser excessiva. Eu
acho que ela tem que ser razoável e adequada, dependendo do caso”. Na mesma
oportunidade, Teori Zavascki disse que os juízes modernos não poderiam basear
suas decisões apenas na legislação infraconstitucional: "Os Magistrados
precisam sempre interpretar os fatos e argumentos tendo em vista os direitos e
garantias elencados na Constituição."[2]
Ora,
"a motivação dos atos jurisdicionais, conforme imposição do artigo 93, IX,
da Constituição Federal (“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário
serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade...”),
funciona como garantia da atuação imparcial e secundum legis (sentido lato) do
órgão julgador. Como bem leciona Antônio Magalhães Gomes Filho, a motivação
exerce quer uma função política, quer uma garantia processual. Como função
política, a motivação das decisões judiciais “transcende o âmbito próprio do
processo” (A motivação das decisões penais. São Paulo: RT, 2001, p. 80),
alcançando o próprio povo em nome do qual a decisão é tomada, o que a legitima
como ato típico de um regime democrático. Como garantia processual, dirige-se à
dinâmica interna ou à técnica do processo, assegurando às partes um mecanismo
formal de controle dos atos judiciais decisórios, de modo a “atender a certas
necessidades de racionalização e eficiência da atividade jurisdiciona.l”[3]
É
certo, como adverte Jacinto Miranda Coutinho, que "no século XXI, como o
domínio do pensamento mercadológico neoliberal, inadvertidamente tomado como
epistemologia, era questão de tempo e consequência lógica o esgarçamento da
ética. Afinal, partindo da eficiência como o princípio reitor e o lucro como
finalidade, não se podia esperar que a competição fosse leal e ética; e se
tivesse olhos para os outros."[4] Especialmente para os denunciados...
Como
lembrou Lenio Streck, juiz não pode ser como Azdak, da peça de Brecht, que
decidia como queria, que não devia explicações a ninguém, e tampouco
justificava suas decisões.[5] A exigência da fundamentação no recebimento das
decisões das peças acusatórias (denúncia e queixa) não responde apenas a uma
questão meramente procedimental ou formalista como querem alguns, especialmente
os teóricos da instrumentalidade do processo, muito afeitos aos estudos do
Direito Processual Civil.
[1]
Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo - Reflexões de um
Jurista que Trafega na Contramão, Salvador: Editora JusPodivm, 2012, p. 61.
[2]
http://www.conjur.com.br/2015-mai-22/juiz-priorizar-fundamentacao-vez-celeridade-teori,
acesso em 26 de abril de 2016.
[3]
http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5112-O-DIREITO-POR-QUEM-O-FAZ-Superior-Tribunal-de-Justia.
Acesso em 27 de março de 2015. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais -
Boletim nº 258 – Maio de 2014.
[4]
O Lugar do Poder Juiz em Portas Abertas, de Leonardo Sciascia, texto publicado
na obra coletiva "Os Modelos de Juiz", São Paulo: Atlas, 2015, p.
224.
[5]
O Modelo de Juiz e a Literatura, texto publicado na obra coletiva "Os
Modelos de Juiz", São Paulo: Atlas, 2015, p. 234.
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2016-mai-09/mp-debate-recebimento-peca-acusatoria-exige-expressa-fundamentacao?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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