Ao afirmar que Eduardo Cunha
não possui as "condições mínimas" para assumir as responsabilidades
como presidente da Câmara de Deputados, o ministro Teori Zavascki reafirmou o
óbvio mas ficou devendo a explicação essencial. Entre os mais de 200 milhões de
brasileiros, Zavascki era o único legalmente capacitado para impedir que um
personagem definido como "delinquente" pelo Procurador Geral da
República Rodrigo Janot pudesse seguir no exercício de suas atividades.
Se não pode permanecer a
frente da instituição depois de 5 de maio de 2016, um dia igual a tantos outros
nestas jornadas estranhas e turbulentas que estamos vivendo depois que a
oposição sofreu sua quarta derrota consecutiva em eleições presidenciais, é
preciso esclarecer por que Eduardo Cunha teve o direito de permanecer em seu
posto até aqui. Foi isso, e apenas isso, que lhe permitiu exercer seus poderes
em plenitude em 17 de abril, data em que orquestrou, detalhe por detalhe,
minuto a minuto, os passos que conduziram a abertura do processo de impeachment
contra a presidente Dilma Rousseff. Não se tratava, como sabemos todos, de um
movimento banal, mas de um passo gravíssimo, capaz de jogar o país numa crise
institucional, abrindo um período de retrocesso político e ameaça as liberdades
e direitos conquistados após a democratização.
Cunha era réu na Lava Jato,
naquele momento. Nessas condições, não tinha isenção nem imparcialidade para
seguir em sua atividade. Autoridades sob suspeita, aprende-se nos cursos de
Direito, devem ser impedidas de apurar crimes e investigar denúncias. Isso porque
lhes falta imparcialidade para dar conta do trabalho. Caso as denuncias sejam
confirmadas, seu trabalho deve ser revisto e suas conclusões, anuladas. Se,
manda a jurisprudência, a simples acusação de um co-réu deve ser colocada em
dúvida e examinada sob cuidados redobrados, imagine-se o tratamento que deve
ser dispensado a uma autoridade nesta situação, com plenos poderes de comando e
orientação dos trabalhos. Lembra o clássico "Investigação sobre o Cidadão
Acima de Qualquer Suspeita."
Protagonista indispensável
de um processo que, entre várias personalidades, o Premio Nobel da Paz Adolfo
Perez Esquivel define como golpe de Estado, cabe perguntar por que Eduardo
Cunha foi deixado de mãos livres para agir. Desde 15 dezembro de 2015 ele já se
tornara réu na Lava Jato, a partir de denúncia do PGR Rodrigo Janot apresentada
ao Supremo Tribunal Federal, numa decisão que foi a evolução natural de uma
investigação em profundidade. No processo, foi acusado até de usar os serviços
de uma parlamentar amiga para chantagear -- em votação no legislativo --
empresa que não queria pagar propinas que julgava merecidas.
Cunha frequenta as listas de
autoridades suspeitas de corrupção no país desde os tempos de PC Farias e
Fernando Collor, na década de 1990, mas as principais descobertas de natureza
criminal ligadas a Lava Jato foram reveladas há pelo menos um ano. Em abril de
2015, as contas secretas de Cunha e seus familiares no banco Julius Baer, na
Suiça, eram bloqueadas. Em julho, o lobista Julio Camargo reabriu a delação
premiada apresentada meses antes, na qual Eduardo Cunha não era mencionado,
para incluir a acusação de que o presidente da Câmara embolsara uma propina de
US$ 5 milhões. Semanas depois, a advogada Beatriz Catta Preta, responsável pela
delação de Camargo e de outros oito réus da Lava Jato, denunciou ameaças de
violência e deixou o país, exilando-se com a família em Miami.
Em setembro, respondendo a
um requerimento apresentado pelo PSOL, o Ministério Público confirmou que havia
recebido de seu equivalente na Suiça um conjunto de informações comprometedoras
contra Eduardo Cunha. Em 19 de novembro, o relator do caso na Comissão de Ética
da Câmara, Fausto Pinato, antigo aliado de Cunha, renunciou a suas funções
depois de denunciar que seus familiares haviam sido ameaçados. Em 2 de dezembro
-- duas semanas antes da denúncia de Janot -- o Partido dos Trabalhadores
decidiu afastar-se de Cunha e, com os votos de 3 deputados, apoiar continuidade
das investigações na Comissão de Ética.
"No mesmo dia",
lê-se numa reportagem do UOL em de 3 de dezembro, Cunha disse em entrevista que
decidira aceitar a denuncia formulada "pelo doutor Helio Bicudo e outros
advogados. "
A partir dessa cronologia
cabe perguntar por que Teori Zavaski assistiu de camarote aos múltiplos exercícios
de Eduardo Cunha para garantir a própria impunidade na Câmara, consumando uma
aliança de sobrevivência que incluiu comprar o silêncio do PSDB em troca do
impeachment de Dilma Rousseff, entregando a mercadoria 18 dias atrás.
Isso é que é obstrução de
justiça, vamos combinar. Para não cair, Cunha tentou derrubou a própria
presidente da República. Vai ter indício de "grupo criminoso", como
disse Janot, lá na Suíça.
Em minha opinião, os
festejos pelo afastamento de Eduardo Cunha podem estar sendo apressados. Ele
foi afastado da presidência da Câmara mas conservou o mandato. A cassação
deverá ser votada pelos próprios deputados, regra que respeita um mandamento
constitucional, o que está correto. A verdade é que ninguém sabe quando isso
vai ocorrer - e se vai ocorrer. O vice presidente Waldir Maranhão, subordinado
de Cunha desde sempre, irá colocar a degola do padrinho em pauta?
Cunha possui uma máquina de
200 parlamentares, que não lhe devem fidelidade. A maioria deve servidão. A
menos que faça um acordo para que possa deixar a cena em situação menos
desconfortável do que se imagina, poderá assombrar aliados de hoje, ontem e
anteontem, como o verdadeiro homem-bomba de 2016. Classificado como psicopata
pela falta de limites na defesa de seus interesses, pode ser transformado na
grande ameaça ao acordo que está sendo construído por Michel Temer na confecção
do golpe.
É fácil compreender que o
destino de Cunha, hoje, se cruza com o destino de Dilma. Ameaçar conduzir o
deputado ao cadafalso da Lava Jato é uma forma de agradar uma massa de
brasileiros que quer ver a punição da corrupção, mas anda cada vez mais
desconfiada de um processo seletivo e dirigido para adversários da velha ordem.
Resta saber se essa mesma disposição para punir Cunha irá permanecer após a
decisão do Senado sobre Dilma. Ninguém tem o direito de imaginar que os
adversários do governo não tem noção de prioridade e costumam perder tempo e
energia com aquilo que seres humanos normais chamam de princípios.
O ponto central diz respeito
a obra máxima de Cunha, que foi a aprovação do pedido de impeachment. Estamos
falando de um delinquente que empregou seus poderes em escala máxima, sem ser
atrapalhado por ninguém, para garantir a punição de uma presidente honesta,
contra quem não pesa um fiapo de prova.
O placar de 11 a 0 foi a
comprovação, por unanimidade, que Eduardo Cunha não tinha a menor condição de
presidir a sessão que julgou a presidente. Não foi um debate fácil. Teori só
resolveu debater o destino de Cunha depois que o presidente do STF, Ricardo
Lewandowski, decidiu pautar o debate sobre uma ação da Rede que questionava se
o presidente da Câmara deveria permanecer na linha de sucessão de Cunha, apesar
de seu currículo tão carregado. O relator dessa questão seria Marco Aurélio
Mello, que poderia ocupar, na tarde de ontem, os holofotes frequentemente
monopolizados por Teori. O agravante é que Marco Aurélio tem sido um crítico
frequente da Lava Jato, onde se destaca como um defensor permanente de
garantias democráticas.
Vamos ler um trecho da
sentença de Teori, conhecida de madrugada:
"Os elementos fáticos e
jurídicos denunciam que a permanência do requerido, o deputado federal Eduardo
Cunha, no livre exercício de seu mandato parlamentar e à frente da função de
Presidente da Câmara dos Deputados, além de representar risco para as
investigações penais sediadas neste Supremo Tribunal Federal, é um pejorativo
que conspira contra a própria dignidade da instituição por ele liderada. Nada,
absolutamente nada, se pode extrair da Constituição que possa, minimamente,
justificar a sua permanência no exercício dessas elevadas funções
públicas".
Após quatro meses e meio de
silêncio, essas palavras são definitivas. A única forma do STF mostrar-se
coerente com elas é debater a anulação da sessão que abriu o processo de
impeachment contra a presidente. Parece difícil e, com certeza, em muitos
ambientes será considerado escandaloso. Pode dar trabalho e exigir muita
discussão. As alternativas são piores, inaceitáveis e vergonhosas. Implicam em
fingir que não há um cadáver na sala. Não faz bem a nenhum tribunal do mundo.
Na dúvida, bastar ler mais
uma vez este simples parágrafo de Teori para compreender que, nas
circunstâncias atuais, trata-se da única alternativa que preserva coerência e
dignidade ao Supremo.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/05/por-coerencia-stf-deve-anular.html?spref=tw
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