Em
dezembro de 2015, Marcelo da Costa Pinto Neves, Professor Titular de Direito
Público da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e Visiting
Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Yale (EUA), divulgou um
parecer classificando o pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff,
acolhido pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), como
“inconsistente e frágil, baseando-se em impressões subjetivas e alegações
vagas”. “Os denunciantes e o receptor da denúncia”, disse ainda o
constitucionalista, “estão orientados não em argumentos jurídicos seguros e
sustentáveis, mas sim em avaliações parciais, de caráter partidário ou espírito
de facção”. “Denunciantes e receptor afastam-se não apenas da ética da
responsabilidade, mas também de qualquer ética do juízo, atuando por impulsos
da parcialidade, do partidarismo e da ideologia, em prejuízo do povo
brasileiro”, acrescentou.
Passados
cerca de seis meses, a abertura do processo de impeachment foi aprovada na
Câmara e o mesmo encontra-se atualmente tramitando no Senado, com o afastamento
da presidenta Dilma por um período de até seis meses. Enquanto isso, o vice
Michel Temer assumiu o governo, trocando não só todo o ministério e escalões
intermediários do governo, mas também o programa do governo eleito pelas urnas
em 2014. Impeachment ou golpe? Em entrevista ao Sul21, Marcelo Neves não tem
dúvidas em apontar a segunda opção. “É um golpe fundado numa ideologia, numa
criação ilusória de que se está atuando de acordo com a Constituição, quando,
na verdade, está se atuando para corroer a Constituição, prejudicando o
funcionamento normal da ordem constitucional”, afirma o professor da UnB. Para
ele, o processo golpista envolve parlamentares, o TCU, a grande mídia e o
Judiciário, incluindo o próprio Supremo Tribunal Federal que, em tese, deveria
zelar pelo cumprimento da Constituição:
“Acho
que o STF está envolvido neste processo, pois está muito parcial. Ele tem
tomado medidas que, às vezes, são muito duras para setores do governo e muito
parcimoniosas, lenientes e favoráveis a grupos pertencentes à política
tradicional brasileira. Além disso, o STF tem se manifestado e prejulgado casos
que ainda vai avaliar”.
Sul21:
O senhor é autor de um parecer, divulgado em dezembro de 2015, que classificou
o pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff como frágil e
inconsistente. Passados quase seis meses da divulgação desse parecer e com o
processo de impeachment já tramitando no Senado, como definiria a situação
política que estamos vivendo hoje no país?
Marcelo
Neves: A situação do impeachment foi uma criação para destituir a presidente
que não tem nenhum fundamento. Toda a estrutura desse processo configura o que
tem se chamado de golpe, um golpe parlamentar com a ajuda do Judiciário e da
grande mídia, que não tem nada a ver com a prática de crime de responsabilidade
pela presidente da República. Há vários elementos que apontam no sentido
oposto. O afastamento da presidente tem a ver, principalmente, com a tentativa
de abafar as investigações para que elas não atingissem certos políticos
hegemônicos da tradição brasileira. Recentes gravações mostram que a presidente
vinha permitindo as investigações sem interferência, deixando o Ministério
Público e a Polícia Federal com autonomia para atuar. A questão é que isso
incomodava muitos grupos. Um ponto fundamental foi esse.
Outro,
evidentemente, é que as políticas sociais incomodavam grupos tradicionais das
elites brasileiras. Esses foram os elementos fundamentais. Crise econômica, nós
já passamos mais graves no governo Sarney e no governo Fernando Henrique. Isso
não justificou o impeachment desses presidentes porque, no presidencialismo,
uma política econômica frágil e mal conduzida em certo momento não é suficiente
para a destituição do chefe de governo. Isso ocorre no sistema parlamentarista.
As
chamadas pedaladas fiscais não configuram caso de crime de responsabilidade. Já
existem muitos estudos sobre isso. Além disso, essas pedaladas foram praticadas
abundantemente antes pelo próprio presidente Fernando Henrique Cardoso, que
abusou de decretos para a abertura de créditos suplementares. Na época, o
Tribunal de Contas da União só encaminhava recomendações para que as contas
fossem saneadas. Nunca houve sequer reprovação das contas, quanto mais um
impeachment que implica crime de responsabilidade. Então, o TCU também está
envolvido nesta trama, na construção deste casuísmo para enfraquecer a presidente
e permitir esse impeachment que, na verdade, fere a Constituição porque a
tipificação do crime de responsabilidade inexiste.
No
presidencialismo, a destituição de um presidente exige que se caracterize o
crime de responsabilidade ou o crime comum, que iria para o Supremo. Mas não há
caracterização de crime comum nem de crime de responsabilidade. Então, o que
vem se dizendo sobre o golpe justifica-se amplamente.
Sul21:
O senhor concorda, então, que estamos vivendo um golpe em curso ou mesmo já efetivado?
Marcelo
Neves: Sim, é um golpe que está em curso e que pode se consumar. Não é um golpe
clássico, no sentido estrito do termo, com o emprego de violência. É um golpe
fundado numa ideologia, numa criação ilusória de que se está atuando de acordo
com a Constituição, quando, na verdade, está se atuando para corroer a
Constituição, prejudicando o funcionamento normal da ordem constitucional.
Sul21:
Quais são as possíveis consequências dessa quebra da ordem constitucional para
a vida do país no médio e longo prazo?
Marcelo
Neves: O que pode ocorrer, caso se consume um abuso desse tipo, é termos sempre
um perigo pairando sobre qualquer governo contrário aos interesses das elites
dominantes. Esse governo não vai conseguir se manter no poder, pois sempre se
poderá recorrer a esse precedente. O grande perigo é que essa prática se torne
uma rotina na nossa vida política, tendo como alvo presidentes que tenham uma
postura transformadora, vinculada a movimentos populares. Isso cria mais
instabilidade inconstitucional no país.
Sul21:
O senhor mencionou a participação do Judiciário neste processo de construção do
golpe, juntamente com parlamentares e a grande mídia. O STF, que é a nossa
última trincheira constitucional, também foi arrastado para essa crise ou está
envolvido ativamente nela. Qual sua avaliação sobre a conduta do STF neste
processo do golpe?
Marcel
Neves: Acho que o STF está envolvido neste processo, pois está muito parcial.
Ele tem tomado medidas que, às vezes, são muito duras para setores do governo e
muito parcimoniosas, lenientes e favoráveis a grupos pertencentes à política
tradicional brasileira. Além disso, o STF tem se manifestado e prejulgado casos
que ainda vai avaliar. Isso tem acontecido com vários ministros, como Gilmar
Mendes, Celso de Mello e Carmen Lucia, que se manifestaram dizendo que o que
está acontecendo não é golpe. Estão se manifestando sobre algo que eles podem
ter que vir a julgar. Isso fere todas as normas de imparcialidade. Eles não
poderiam se manifestar sobre o assunto exatamente porque eles poderão ter que
julgar se há vícios no processo do impeachment. Eles estão prejulgando ao falar
antecipadamente. Isso poderia, em certos casos mais graves, levar até mesmo ao
impeachment de um ministro do Supremo se a gente estivesse atuando, realmente,
de acordo com as regras do Estado de Direito.
Sul21:
Considerando que o STF é o guardião da Constituição, a quem a sociedade pode
recorrer quando ocorre uma quebra da ordem constitucional e aquele que deveria
ser o principal defensor do Estado de Direito se comporta dessa maneira?
Marcelo
Neves: Acho que aí vamos precisar dos movimentos populares. Isso tem que vir
mais de baixo. A mobilização popular pode pressionar e provocar uma modificação
da situação atual e reorientar algumas posições. Como a coisa está ficando tão
descarada com as recentes gravações, isso também vai aumentando o
constrangimento dos poderes públicos. É possível que até mesmo o Supremo se
veja constrangido a mudar suas posições e ser mais rigoroso com esses grupos de
elites tradicionais, em relação aos quais eles não tomam nenhuma providência em
processos que duram de cinco a dez anos. Políticos como Sarney e Renan tem um
poder muito grande no Judiciário porque eles definem normalmente quem entra lá.
Você não pode ir para o Supremo sem beijar a mão de Sarney. Isso torna muito
difícil esses ministros fazerem alguma coisa contra esses políticos que
controlam as nomeações para os altos postos do Judiciário.
Toda
a estrutura está corrompida. O Judiciário também está corrompido, neste
sentido. Agora, a natureza das gravações que estão surgindo pode aumentar o
constrangimento desses poderes e, em certo momento, inverter o jogo, pois pode
ficar mais difícil justificar certas decisões.
Sul21:
Há alguns dias, o senhor advertiu para o risco do surgimento de um Estado
policial no Brasil em função do perfil de Alexandre de Moraes, novo ministro da
Justiça de Michel Temer. Qual a dimensão desta ameaça, na sua opinião?
Marcelo
Neves: O perfil do atual ministro da Justiça é um perfil muito mais de
repressão. A ligação dele com os cargos públicos sempre foi ligada à dimensão
repressiva e nunca à dimensão dos direitos. Então, evidentemente, vai haver uma
fragilização dessa dimensão dos direitos e uma ênfase na repressão. Isso já foi
dito explicitamente e está registrado em gravações. Em uma delas, o ex-ministro
do Planejamento, Romero Jucá, disse que já tinha falado com os militares para
reprimir o MST. Ou seja, há toda uma ordenação de um aparelho repressivo mais
eficiente contra os movimentos sociais. Não há pessoa com perfil mais adequado
à essa orientação do que o atual ministro.
Sul21:
Na sua avaliação, a Constituição de 1988 deixou alguma fragilidade
institucional que está ajudando a desestabilizar a relação entre os poderes e a
própria democracia brasileira?
Marcelo
Neves: Acho que o problema básico não é a Constituição como texto elaborado. A
Constituição sempre deixa um campo aberto para as práticas constitucionais. O
problema é a forma como ela foi construída. É claro que é possível pensar novos
mecanismos de participação como, por exemplo, para a escolha de ministros do
Supremo. Mas isso, me parece, não é o mais importante. O que é mais importante
está ligado à prática de funcionamento das instituições. Em um país onde
existem algumas pessoas muito privilegiadas, que eu chamo de sobrecidadãos, que
estão acima da lei, e uma massa de pessoas, que eu chamo de subintegrados ou
subcidadãos, que não têm acesso aos direitos básicos, é muito fácil para os
primeiros manipular a Constituição. Então, eu penso que é mais o momento da
realização, da prática, que acaba deformando a Constituição.
O
modelo americano de escolha é muito parecido com o nosso, mas o Senado tem um
papel muito sério. Quando um ministro é indicado pelo presidente para assumir a
Suprema Corte americana, professores e especialistas são convidados para
avaliar esse nome. Há um amplo debate público e funciona relativamente bem. No
Brasil, essa indicação virou apenas um jogo particulatista de esquemas
políticos para colocar uma pessoa que vai corresponder não a uma determinada
visão de mundo, mas sim a determinados particularismos de grupos. Aí,
realmente, a deformação e a deturpação da Constituição se tornam o problema
mais grave no nosso caso.
Sul21:
O “ativismo jurídico” tornou-se uma expressão muito repetida hoje no debate
político e jurídico brasileiro. Qual sua avaliação sobre o sentido dessa
expressão?
Marcelo
Neves: Esse ativismo judicial que seria uma tendência à judicialização da
política tem sido entendido como se o Direito se ampliasse no campo político.
Essa é uma interpretação um pouco infeliz porque, na verdade, em grande parte o
que há é uma politização do judiciário. Não é que o Judiciário, com critérios
jurídicos, se amplia e se torna forte para controlar o poder político. No caso
brasileiro, há uma dimensão mais grave neste fenômeno: o Judiciário é
politizado e acaba se vinculando aos interesses de grupos políticos. Isso é
muito mais grave e representa uma ameaça para o próprio funcionamento da
democracia. São pessoas com poder vitalício, adquirido sem eleição e sem
periodicidade, podando e prejudicando o funcionamento do processo democrático.
Sul21:
O senhor defende a possibilidade de eleição no Poder Judiciário?
Marcelo
Neves: Não. Acho que isso seria problemático. O que defendo é que o Judiciário
reconheça as suas funções e seus limites, ficando ligado à Constituição e aos
critérios constitucionais. Em alguns países como a Suíça, em nível municipal, e
os Estados Unidos, os juízes são eleitos pela comunidade. Acho que no Brasil
isso seria um tanto catastrófico em função da forma pela qual o nosso sistema
eleitoral é conduzido.
http://www.revistaforum.com.br/2016/05/29/para-professor-da-unb-stf-esta-envolvido-no-golpe/
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