No
início do dia 12 de maio de 2016, com base no artigo 86 da Constituição,
sacramentou-se, com mais de dois terços dos integrantes do Congresso, a
abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
O
encerramento da votação no Senado Federal significou, nos termos da
Constituição, a admissibilidade do pedido de impeachment, que, por se tratar de
requerimento embasado em suposto crime de responsabilidade, passará a tramitar
na Câmara Alta, sob presidência do presidente do STF.
Ocorre
que, com o afastamento da presidente Dilma e, ato contínuo, assunção do cargo pelo
vice-presidente Michel Temer, instaurou-se, no país, momento político e
jurídico sem qualquer precedente.
Hoje,
é possível afirmar que temos dois presidentes: Michel Temer, eleito como vice,
que se convencionou chamar de presidente em exercício ou presidente interino, e
Dilma Rousseff, presidente afastada por, no máximo, 180 dias.
Diferente
da postura de Itamar Franco, que iniciou, oficialmente, a escolha de seus
eventuais ministros quando assumiu a Presidência provisoriamente no período de
afastamento de Collor, Temer, após a primeira fase da admissibilidade do
julgamento de Dilma, ocorrida na Câmara, já se reunia com partidos de oposição
e com conhecidos nomes políticos a fim de compor seus ministérios, como
amplamente noticiado.
Essa
postura do vice, apesar de dentro da normalidade do ponto de vista jurídico,
por ser um tanto quanto precipitada, causou perplexidade, posto que somente a
primeira fase da admissibilidade do pedido havia se encerrado. E, nesse
momento, relembramos, ao menos, dois atos praticados por Temer, não reprováveis
juridicamente, porém, cuja lembrança é necessária para entender o panorama
político criado pelo então vice-presidente:
i) em 7/12/2015, cinco dias após a
autorização para abertura do processo de impeachment na Câmara por Eduardo
Cunha, há a divulgação de carta à Dilma Rousseff, enumerando os momentos em que
se sentiu desprestigiado e apontando episódios em que teria restado clara a
desconfiança de Dilma em relação ao PMDB, tornando público o distanciamento —
para não falar em ruptura — do vice em relação à presidente;
ii) em 11/4/2016, seis dias antes da
votação da admissibilidade do pedido de impeachment pela Câmara, Temer envia a
aliados gravação de 14 minutos em que fala dos rumos do país, assumindo que a
votação da Câmara teria decidido pela admissibilidade do pedido, em discurso
que seria feito caso essa situação se concretizasse. Nessa fala, o
vice-presidente já apresenta prévia de seu programa de governo caso chegasse à
Presidência, mencionando tópicos como reforma tributária, revisão do pacto
federativo, mudança nas leis trabalhistas e reforma previdenciária.
Após
destacar fatos relevantes para delimitação das circunstâncias políticas
anteriores à admissibilidade do processo de impeachment, passaremos à análise
dos dispositivos constitucionais que devem pautar a atuação do vice-presidente
na condição de presidente em exercício, durante os 180 dias de afastamento da
presidente.
Em
primeiro lugar, as atribuições do vice estão dispostas nos artigo 78 e 79 da
Constituição, com destaque para o caput do último:
“Art. 79. Substituirá o Presidente, no caso
de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente (...)”.
Verifica-se
que o artigo 79 dispõe sobre duas situações distintas em que o vice passa a
ocupar o cargo de presidente: i) impedimento, em que o vice substitui o
presidente; e ii) vacância, em que o vice o sucede.
Ao
tratar das duas hipóteses, José Afonso da Silva as diferencia da seguinte
forma:
“‘Impedimento’ é qualquer causa que obsta
ao exercício de cargo ou função pública. Esse obstáculo pode ser de fato ou de
direito. (...)
A suspensão também é um impedimento
jurídico. Assim, quando o presidente fica suspenso de suas funções, por recebimento
da denúncia nos crimes comuns ou instauração do processo de crime de
responsabilidade, tem-se uma causa que o impede de exercer aquelas mesmas
funções (art. 85, §1º). (...)
O impedimento é, assim, uma situação
temporária, de fato ou de direito, que não permite ao titular cumprir os
deveres e responsabilidades de seu cargo ou função. Por isso se lhe dá
substituto.
O impeachment é ato de cassação do mandato
do presidente da República. É, pois, impedimento definitivo, que tem como
consequência a vacância do cargo. A hipótese, pois, já não é substituição, mas
de sucessão”[1].
Assim,
a primeira conclusão a que se chega é a de que o vice só sucede o presidente na
vacância do cargo, que, no caso do processo de impeachment, ocorre com a
aplicação da sanção de perda do cargo ao final do julgamento. Michel Temer,
portanto, está substituindo a presidente Dilma Rousseff durante o afastamento
que pode durar até 180 dias.
Passando
à análise do artigo 86, parágrafo 1º, II e parágrafo 2º, da Constituição, que
trata do rito do processo de impeachment, no caso de crime de responsabilidade,
observa-se que:
“Art. 86. Admitida a acusação contra o
Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele
submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais
comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas
funções:
(...)
II - nos crimes de responsabilidade, após a
instauração do processo pelo Senado Federal.
§ 2º Se, decorrido o prazo de cento e
oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do
Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo (...)”.
Desse
modo, após o reconhecimento da denúncia pelo Congresso, inicia-se o seu
julgamento, com fase de contraditório e produção de provas.
O
constituinte previu no parágrafo 2º, do artigo 86 da Constituição, o
afastamento por até 180 dias do réu do cargo de presidente. Como visto, o
afastamento temporário não configura vacância do cargo, mas impedimento,
porque, nesse estágio do processo de impeachment, não houve condenação, somente
indícios de que o réu teria cometido crime de responsabilidade. Trata-se,
contudo, de mera plausibilidade de ação ilícita que justifica o início da fase
de julgamento do processo de impeachment, de modo que não ocorre a sucessão do
presidente afastado pelo vice-presidente. Como observado, o vice-presidente
substitui o presidente no exercício do cargo, sendo daí que decorre a utilização
da expressão “presidente em exercício” ou “presidente interino”.
E
o papel ocupado pelo vice durante o período de 180 dias é inerente a essa
condição provisória, pois, antes do julgamento final do mérito do processo, não
há qualquer decisão condenatória. Quando o processo é admitido pelo Senado, é
forçoso que se reconheça, em interpretação teleológica do artigo 86, parágrafo
2º, da Constituição, que o presidente é afastado do cargo, pois se verificou a
fumaça do bom Direito em que se baseou o pedido de impeachment.
Havendo,
portanto, um juízo político prévio que reconheceu a verossimilhança das
alegações, afasta-se o presidente, assumindo o vice, sob espécie de condição
suspensiva, já que assume a função que só se torna definitiva após o julgamento
do processo no Senado, no caso de condenação do presidente eleito por crime de
responsabilidade.
Tanto
é precário o exercício da Presidência pelo vice no período de afastamento, que
o constituinte, no parágrafo 2º, do artigo 86 prevê a possibilidade de retorno
do presidente afastado caso o julgamento se prolongue por mais tempo do que o
referido prazo.
Da
leitura do artigo 86 da Constituição, portanto, verifica-se que o constituinte,
em claro exercício de ponderação, em sede de juízo preliminar sobre o mérito do
processo de impeachment, decidiu:
considerando a verossimilhança do direito
em que se fundamentou o pedido, pelo afastamento, por 180 dias, em caráter
cautelar do presidente, após a admissibilidade do processo de impeachment;
tendo em vista o alto grau de
irreversibilidade desse afastamento, pelo retorno do presidente eleito para o
cargo, ainda que o julgamento não tenha sido concluído.
A
partir dessas duas premissas, conclui-se que, durante o afastamento do
presidente, o vice assume precariamente, com o fim de substituição, podendo,
apenas, tomar medidas de urgência, sem alterações na ordem vigente e no
programa de governo do presidente eleito.
Isso
porque, entender que o vice, em exercício precário da Presidência, possui
competência para colocar em prática reformas institucionais, econômicas e
sociais e/ou romper com os programas instaurados pelo presidente afastado, é
assumir que o constituinte permitiu a ocorrência de gravíssimo periculum in
mora in reverso.
Em
outras palavras, o constituinte definiu que o melhor cenário seria aquele em
que, durante o julgamento, o presidente permanecesse afastado, tendo em vista
que se encontra impossibilitado de exercer plenamente as atribuições
constitucionais descritas no artigo 84, vez que se tornou réu e precisa
produzir os elementos necessários à sua defesa. Afirmar que a previsão de
afastamento implica em presunção de culpa pelo constituinte é admitir que há
contradição na Constituição de 1988, que confere status de direito fundamental
à presunção de inocência, no artigo 5º, LVII.
Portanto,
deve-se reconhecer que o constituinte não conferiu plenos poderes presidenciais
ao vice durante o período de afastamento, pelo seguinte: i) o vice-presidente
não foi eleito para ocupar a função do presidente da República; ii) seria, no
mínimo, leviano por parte do constituinte assumirpericulum in mora in reverso
de tamanha monta, aos custos da sociedade brasileira, já que a previsão
constitucional é clara no sentido de afastamento temporário; iii) não menos
importante, o constituinte não previu que o vice presidente não estaria
alinhado com o presidente, de modo a não dar continuidade ao programa de
governo até então praticado e iniciar seu próprio mandato, como ocorre
atualmente.
Ressalta-se
o último tópico acima: era imprevisível, quando da elaboração do artigo 86, que
o vice não estaria alinhado com o governo.
Quanto
à imprevisibilidade de um cenário de ruptura política entre o vice e a
presidente, que ficou claro, é necessário que se reconheça que era impossível
ao constituinte cogitar essa hipótese quando impôs que o vice assumiria no
período de afastamento, antes de sentença condenatória, e mudaria radicalmente
os rumos dos programas até então praticados. O constituinte delineou o rito do
impeachment contando que o vice assumiria de forma precária, no período de
afastamento da presidente, dando, ao menos nesse primeiro momento, continuidade
ao programa em andamento. Deve-se reconhecer que é contrária à vontade do
constituinte, e, por óbvio, à própria Constituição, qualquer alteração
significativa na ordem social, econômica e institucional vigente, devendo o
presidente em exercício se ater à tomada de medidas emergenciais.
Dessa
forma, a série de mudanças propostas ou já implementadas por Temer que rompem
com o programa de governo da presidente Dilma são, no presente momento,
inconstitucionais. Exemplifica-se: redução no número de ministérios, com
extinção de pastas de relevância ímpar para as políticas públicas consagradas
pelos eleitores, como Cultura, Ciência e Tecnologia, Desenvolvimento Agrário,
Direitos Humanos e Previdência Social; redução da autonomia da
Controladoria-Geral da União com a sua transformação em ministério;
implementação de reformas tributárias e previdenciárias; venda de participação
da União nos Correios e na Casa da Moeda; flexibilização nas regras sobre
privatizações; redução de direitos trabalhistas, distribuição de cargos para
partidos de oposição ao da presidente afastada; alteração de programas sociais;
a anulação de atos praticados pela presidente durante o regular exercício
mandato, no período entre a autorização da Câmara e antes da abertura do
processo pelo Senado, dentre outras.
Ou
seja, desde o primeiro dia no exercício da Presidência, Michel Temer se
comporta não só como presidente efetivo, mas como líder de um movimento que
subverte todas as políticas públicas que avalizou nas eleições.
Trata-se
de rompimento com o programa de governo em andamento para a adoção de ideias
que fragilizam o Estado Social e que, por isso, nunca foram levadas aos
eleitores pelos principais candidatos ao pleito de 2014. Essas modificações bruscas
na formulação de políticas públicas em nosso país criam um cenário político,
social e econômico irreversível, contribuindo para que a presidente afastada
não retorne para o seu cargo e, caso retorne, encontre um país impossível de se
governar.
Não
cabe, ainda, o argumento de que o vice-presidente também foi eleito
democraticamente, possuindo, portanto, competência para conduzir o país,
atualmente, sem qualquer parâmetro. O constituinte de 1988 abandonou o modelo
vigente na Constituição de 1946 que permitia que o vice fosse eleito por chapa
diferente daquela do presidente. Se aquele modelo admitia a independência
programática entre o presidente e o vice, gerando a possibilidade de crises
institucionais, como a verificada em 1961 com a renúncia do presidente Jânio
Quadros e o veto militar à posse do vice-presidente João Goulart, a Carta atual
pressupõe o alinhamento político e programático dos dois mandatários maiores do
país.
Assim,
no sistema atual, o vice, na verdade, é eleito para cumprir as suas próprias
atribuições constitucionais, podendo vir a substituir a presidente em caso de
impedimento temporário, ou sucedê-la, em caso de vacância do cargo, dando
cumprimento ao programa apresentado por ambos e que foi sufragado pelos
eleitores. Por isso, caso qualquer impedimento permanente venha a ocorrer,
espera-se que o vice dê continuidade ao programa iniciado pelo presidente
impossibilitado de ocupar o cargo em caráter permanente. Afinal, aquele também
se comprometeu com o programa escolhido pelos eleitores. Com mais razão, a
necessária continuidade programática exige-se quando o afastamento é
transitório.
Por
essas razões, antes da conclusão do julgamento definitivo do processo
deimpeachment da presidente Dilma Rousseff pelo Senado Federal, não é
compatível com a Constituição Federal que o exercício provisório da Presidência
pelo vice seja marcado por decisões de cunho permanente, especialmente quando
claramente distintas dos compromissos assumidos pela presidente eleita pelo
povo brasileiro, como as medidas acima enumeradas.
Corre-se
o risco de vermos o poder deixando de ter origem direta no povo e passando a
ser intermediado pela vontade do Congresso, que aprovou a abertura do processo
de impeachment, o que, decerto, não encontra fundamento na Constituição e no
Estado Democrático de Direito.
[1]
José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, Malheiros: 2007, p.
478.
No
Consultor Jurídico
http://www.ocafezinho.com/2016/05/20/o-papel-do-vice-presidente-durante-o-processo-de-impeachment/
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