sábado, 7 de maio de 2016

O MICROFONE CONTRA O GOLPE. Por Nilo Batista

Há cinquenta e cinco anos um brasileiro conseguiu, sob condições muito adversas, evitar – ou melhor, minimizar – um golpe de estado.

Este brasileiro, cuja casa só não foi bombardeada porque os sargentos da Aeronáutica impediram a decolagem dos caças, estava isolado e sem apoio político no início de sua campanha, cujo quartel-general ficava prudentemente num porão. Para este porão ele deslocara sua principal arma.

Aos poucos conseguiu mobilizar a nação e até mesmo convencer alguns Comandantes militares da legitimidade inquestionável de sua causa: a estrita observância da Constituição, a defesa da legalidade democrática. Sua arma principal, permanentemente guardada no porão do Palácio Piratini, era um estúdio de rádio improvisado, a partir do qual Leonel Brizola levantou o país e convenceu o Comando do III Exército a cumprir seus votos de lealdade institucional.

A vitória só não foi completa porque João Goulart preferiu o conselho de Tancredo Neves (aceitar o parlamentarismo, com formidável redução de seus poderes) ao conselho de Brizola (para quem Jango deveria, imitando Getúlio em 1930, vir do Sul para o Rio por terra, à frente do III Exército, prender os generais golpistas, dissolver o Congresso golpista e convocar eleições parlamentares). Jango preferiu compor, enfraquecendo-se. Em 1964, quando precisou de força, não tinha.

Dessa instrutiva página de nossa história, a campanha da legalidade empreendida por Leonel Brizola em 1961, quero destacar o que acima chamei de arma principal: a comunicação.

Sem aquele microfone, que ainda podemos ver em tantas fotografias daqueles dias tensos, nada teria acontecido: nem o povo brasileiro teria sido conclamado a resistir ao golpe, nem os Chefes militares do III Exército se convenceriam de que era seu dever impedir fosse rasgada a Constituição.

Nos acontecimentos que hoje vivemos talvez possamos contar com milhares de brasileiros dispostos a seguir o exemplo luminoso de Brizola, porém não temos o microfone.

A comunicação social em nosso país é privilégio de uma dúzia de famílias, proprietárias dos meios de comunicação que colocam a serviço de seus interesses econômicos e de suas predileções políticas sem o menor pudor. Essas famílias e seus serviçais detêm o monopólio da informação e da crônica, apesar do noticiário consistir quase todo em propaganda e do comentário ser quase sempre ideologia; eles criam desejos e expectativas mas criam também os fatos que os satisfariam, precisamente para que aconteçam; eles escolhem aquilo que deve ser noticiado e aquilo que deve ser ocultado; destilarias de ódios e preconceitos, eles pretendem ser simultaneamente paladinos da moral e porta-vozes do mercado.

Em escassas frinchas das grandes e lucrativas corporações comunicacionais ou isolados na imensidão da blogosfera, alguns jornalistas dignos desse nome lendário resistem bravamente. O Judiciário brasileiro tem sido pressionado em níveis inaceitáveis por muitos países democráticos, e por isso devemos homenagear todos os magistrados brasileiros que não se submetem à publicidade opressiva sobre procedimentos criminais. Quando se trata de rádio ou TV, são concessões públicas a serviço em tempo integral dos interesses dos concessionários e não do público.

A crise que vivemos tem origem basicamente na investigação espetaculosa e direcionada de modelos viciosos de financiamento de campanhas eleitorais. É significativo e chocante que, sendo o destino final dos recursos despendidos em campanhas eleitorais a publicidade e a comunicação social, os personagens desse complexo econômico – agências de publicidade e veículos de comunicação – só excepcional e secundariamente são criminalizados.

Afinal, os admiradores da técnica “follow the money” deveriam explicar porque razão o dinheiro não é seguido até seu destino final. Porventura será pelo fato de que os alvos reais da criminalização se encontram na classe política? Porventura será porque a seletividade que caracteriza os sistemas penais está hoje sendo manejada pela mídia – em seu relacionamento com operadores do sistema penal sensíveis às tentações da boa imagem?

Há nesse processo de impeachment a característica preocupante de que sua verdadeira causa é a impopularidade na qual incorreu a Presidente da República, independentemente dos motivos que geraram tal impopularidade. Constatada – por um instituto de pesquisa mercadológica – a impopularidade, uma campanha impiedosa da mídia a aprofunda, roendo implacável e diariamente a reputação do mandatário e promovendo seu isolamento político.

O pretexto para o procedimento do impeachment pode ser qualquer um, e não é por outra razão que tantas pessoas ultimamente tratam de frisar que as variáveis de tal procedimento são políticas, e não jurídicas – como se a política, no Estado de direito fosse uma espécie de vale tudo.

O preocupante é que neste modelo o poder midiático soberanamente dá as cartas: o instituto de pesquisa (que na véspera avaliava a audiência de programas da TV e na antevéspera investigava o sabão preferido pelas donas de casa) constata a impopularidade; os meios de comunicação a aprofundam; as agências de publicidade organizam suas campanhas e está quase tudo feito. Sim, a pequena contribuição Congresso Nacional, de joelhos perante a mídia, será apenas destravar a lâmina da guilhotina.

O mercado comandou a República.

Superada essa crise, será um dever para todas as forças do campo progressista discutir e democratizar a comunicação social entre nós. O acesso à comunicação dos pobres e marginalizados só é obtido pela violência: é preciso queimar um ônibus e interditar uma via para que se saiba que a polícia executou alguém, é preciso degolar o desventurado guarda para que as degradantes condições da penitenciária sejam noticiadas, e assim por diante.

Baixos teores de democracia real resultam sempre em violência. É a prioridade número um da enferma democracia brasileira a democratização da comunicação social. Uma tal concentração de poder econômico – sem que o CADE se interesse – e de poder político – um poder ilegítimo porque fundado apenas na propriedade privada dos meios de comunicação – é algo abertamente antidemocrático.

Todos temos direito ao microfone do Brizola.

PS. Este texto, originalmente uma intervenção de Nilo Batista em ato realizado na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, há uma semana,  é, espero, um dos vários que este blog se orgulhará se puder divulgar de um grande jurista, um grande democrata, um grande profissional que usa seu saber não apenas em favor de seus clientes, mas em favor do povo pobre, perseguido e discriminado. Um advogado a quem não falta, além de qualquer título ou conhecimento que se possa imaginar, também o coração sem o qual não existe Justiça e que, modestamente, me envaidece poder chamar de amigo. E que se estivesse hoje sentado no lugar em que tantos fracos, tíbios e mansos estão, teria, nesta quadra, enchido o coração dos brasileiros com um exemplo de coragem, virtude e honradez. Talvez, por isso mesmo, não esteja lá.

Por Fernando Brito

http://www.tijolaco.com.br/blog/o-microfone-contra-o-golpe-por-nilo-batista/


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