Há
cinquenta e cinco anos um brasileiro conseguiu, sob condições muito adversas,
evitar – ou melhor, minimizar – um golpe de estado.
Este
brasileiro, cuja casa só não foi bombardeada porque os sargentos da Aeronáutica
impediram a decolagem dos caças, estava isolado e sem apoio político no início
de sua campanha, cujo quartel-general ficava prudentemente num porão. Para este
porão ele deslocara sua principal arma.
Aos
poucos conseguiu mobilizar a nação e até mesmo convencer alguns Comandantes
militares da legitimidade inquestionável de sua causa: a estrita observância da
Constituição, a defesa da legalidade democrática. Sua arma principal,
permanentemente guardada no porão do Palácio Piratini, era um estúdio de rádio
improvisado, a partir do qual Leonel Brizola levantou o país e convenceu o
Comando do III Exército a cumprir seus votos de lealdade institucional.
A
vitória só não foi completa porque João Goulart preferiu o conselho de Tancredo
Neves (aceitar o parlamentarismo, com formidável redução de seus poderes) ao
conselho de Brizola (para quem Jango deveria, imitando Getúlio em 1930, vir do
Sul para o Rio por terra, à frente do III Exército, prender os generais
golpistas, dissolver o Congresso golpista e convocar eleições parlamentares).
Jango preferiu compor, enfraquecendo-se. Em 1964, quando precisou de força, não
tinha.
Dessa
instrutiva página de nossa história, a campanha da legalidade empreendida por
Leonel Brizola em 1961, quero destacar o que acima chamei de arma principal: a
comunicação.
Sem
aquele microfone, que ainda podemos ver em tantas fotografias daqueles dias
tensos, nada teria acontecido: nem o povo brasileiro teria sido conclamado a
resistir ao golpe, nem os Chefes militares do III Exército se convenceriam de
que era seu dever impedir fosse rasgada a Constituição.
Nos
acontecimentos que hoje vivemos talvez possamos contar com milhares de brasileiros
dispostos a seguir o exemplo luminoso de Brizola, porém não temos o microfone.
A
comunicação social em nosso país é privilégio de uma dúzia de famílias,
proprietárias dos meios de comunicação que colocam a serviço de seus interesses
econômicos e de suas predileções políticas sem o menor pudor. Essas famílias e
seus serviçais detêm o monopólio da informação e da crônica, apesar do
noticiário consistir quase todo em propaganda e do comentário ser quase sempre
ideologia; eles criam desejos e expectativas mas criam também os fatos que os
satisfariam, precisamente para que aconteçam; eles escolhem aquilo que deve ser
noticiado e aquilo que deve ser ocultado; destilarias de ódios e preconceitos,
eles pretendem ser simultaneamente paladinos da moral e porta-vozes do mercado.
Em
escassas frinchas das grandes e lucrativas corporações comunicacionais ou
isolados na imensidão da blogosfera, alguns jornalistas dignos desse nome
lendário resistem bravamente. O Judiciário brasileiro tem sido pressionado em
níveis inaceitáveis por muitos países democráticos, e por isso devemos
homenagear todos os magistrados brasileiros que não se submetem à publicidade
opressiva sobre procedimentos criminais. Quando se trata de rádio ou TV, são
concessões públicas a serviço em tempo integral dos interesses dos
concessionários e não do público.
A
crise que vivemos tem origem basicamente na investigação espetaculosa e
direcionada de modelos viciosos de financiamento de campanhas eleitorais. É
significativo e chocante que, sendo o destino final dos recursos despendidos em
campanhas eleitorais a publicidade e a comunicação social, os personagens desse
complexo econômico – agências de publicidade e veículos de comunicação – só
excepcional e secundariamente são criminalizados.
Afinal,
os admiradores da técnica “follow the money” deveriam explicar porque razão o
dinheiro não é seguido até seu destino final. Porventura será pelo fato de que
os alvos reais da criminalização se encontram na classe política? Porventura
será porque a seletividade que caracteriza os sistemas penais está hoje sendo
manejada pela mídia – em seu relacionamento com operadores do sistema penal
sensíveis às tentações da boa imagem?
Há
nesse processo de impeachment a característica preocupante de que sua
verdadeira causa é a impopularidade na qual incorreu a Presidente da República,
independentemente dos motivos que geraram tal impopularidade. Constatada – por
um instituto de pesquisa mercadológica – a impopularidade, uma campanha
impiedosa da mídia a aprofunda, roendo implacável e diariamente a reputação do
mandatário e promovendo seu isolamento político.
O
pretexto para o procedimento do impeachment pode ser qualquer um, e não é por
outra razão que tantas pessoas ultimamente tratam de frisar que as variáveis de
tal procedimento são políticas, e não jurídicas – como se a política, no Estado
de direito fosse uma espécie de vale tudo.
O
preocupante é que neste modelo o poder midiático soberanamente dá as cartas: o
instituto de pesquisa (que na véspera avaliava a audiência de programas da TV e
na antevéspera investigava o sabão preferido pelas donas de casa) constata a
impopularidade; os meios de comunicação a aprofundam; as agências de
publicidade organizam suas campanhas e está quase tudo feito. Sim, a pequena
contribuição Congresso Nacional, de joelhos perante a mídia, será apenas
destravar a lâmina da guilhotina.
O
mercado comandou a República.
Superada
essa crise, será um dever para todas as forças do campo progressista discutir e
democratizar a comunicação social entre nós. O acesso à comunicação dos pobres
e marginalizados só é obtido pela violência: é preciso queimar um ônibus e
interditar uma via para que se saiba que a polícia executou alguém, é preciso
degolar o desventurado guarda para que as degradantes condições da
penitenciária sejam noticiadas, e assim por diante.
Baixos
teores de democracia real resultam sempre em violência. É a prioridade número
um da enferma democracia brasileira a democratização da comunicação social. Uma
tal concentração de poder econômico – sem que o CADE se interesse – e de poder
político – um poder ilegítimo porque fundado apenas na propriedade privada dos
meios de comunicação – é algo abertamente antidemocrático.
Todos
temos direito ao microfone do Brizola.
PS.
Este texto, originalmente uma intervenção de Nilo Batista em ato realizado na
Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, há uma
semana, é, espero, um dos vários que
este blog se orgulhará se puder divulgar de um grande jurista, um grande
democrata, um grande profissional que usa seu saber não apenas em favor de seus
clientes, mas em favor do povo pobre, perseguido e discriminado. Um advogado a
quem não falta, além de qualquer título ou conhecimento que se possa imaginar,
também o coração sem o qual não existe Justiça e que, modestamente, me
envaidece poder chamar de amigo. E que se estivesse hoje sentado no lugar em
que tantos fracos, tíbios e mansos estão, teria, nesta quadra, enchido o
coração dos brasileiros com um exemplo de coragem, virtude e honradez. Talvez,
por isso mesmo, não esteja lá.
Por
Fernando Brito
http://www.tijolaco.com.br/blog/o-microfone-contra-o-golpe-por-nilo-batista/
Nenhum comentário:
Postar um comentário