Os estudantes paulistas
estão sinalizando que o caminho para enfrentar os tempos sombrios que se
avizinham é o aprofundamento da democracia, não o seu acovardamento.
Por Clóvis Gruner
Na mesma semana, dois
eventos aparentemente distintos permitem perceber o alcance de uma crise que já
não é mais apenas de um governo ou partido, o PT, mas do pacto democrático que
nas últimas três décadas fez o parto e sustentou a chamada “Nova República”. Na
quinta (5), liminar do ministro do STF Teori Zavascki, suspendeu o mandato do
deputado Eduardo Cunha (PMDB), agora ex-presidente da Câmara. Um dia antes, na
quarta (4), estudantes paulistas ocuparam a Assembleia Legislativa de São
Paulo, de onde dizem só sair depois de instalada a “CPI da merenda”.
A decisão de Zavascki conseguiu
o feito de desagradar oposição e governistas. Os primeiros manifestaram seu
estranhamento frente a uma deliberação que, dizem, extrapola os limites do
judiciário, e alguns partidos – entre eles o PSC de Jair Bolsonaro, e o PMDB do
vice Michel Temer – assinaram nota pública de repúdio contra o que consideraram
“um desequilíbrio institucional entre os Poderes da República”. Paulinho da
Força, do Solidariedade, também réu no STF, sintetizou a indignação dos aliados
de Cunha: “Por essa base, ele [Teori Zavascki] cassa mais 200, 300 deputados
que tem processo no Supremo”, disse, em um misto de preocupação e ato falho.
Entre os governistas – e
digo governistas porque o governo, acertadamente, manteve um silêncio
protocolar – a versão é que o afastamento veio tarde, e só depois que Cunha
cumpriu seu papel no roteiro do impeachment, que tratam como “golpe”. A tese é
conveniente a um governo que trava uma guerra, além de jurídica e política,
narrativa. Por outro lado, baseado na liminar o Advogado Geral da União, José
Eduardo Cardozo, deve entrar com pedido no STF solicitando a anulação da
votação que decidiu pelo impeachment. Há ainda outro pedido de anulação na
Câmara, e o deputado Waldir Maranhão, que assumiu a presidência da Casa, tem o
poder de avaliá-lo e, eventualmente, considerar nula a sessão.
À exceção de PSDB e DEM,
todos os partidos e personagens envolvidos na crise foram, em algum momento dos
últimos trezes anos, governo ou estiveram próximo a ele. No caso do PMDB, mais
especificamente, sua participação no consórcio foi fundamental para assegurar a
tal governabilidade e nunca é demais lembrar que, apesar da decisão de romper
com o governo, tomada em míseros três minutos, o partido ainda mantém o vice,
que não renunciou, e um bom punhado de ministérios. No primeiro caso, seria
coerente a renúncia do vice. No segundo, a demissão dos ministros dissidentes
pela presidenta. Nada disso aconteceu.
Foi em parte para minar o
poder peemedebista que o PT e o governo incentivaram o ex-prefeito de São
Paulo, Gilberto Kassab, a fundar o PSD, hoje um dos principais articuladores do
impeachment junto com PMDB e PP, que também já esteve no governo, onde ocupou
ministérios importantes como o da Saúde e da Integração Nacional, entre outros.
E se hoje há quem se horrorize com as negociações de Temer com Malafaia e
outras lideranças religiosas, é recomendável não olvidar que a IURD já ocupou
acento nas reuniões ministeriais do governo Dilma, e que a aproximação do PT
com as igrejas evangélicas começou com Lula, que chamou José Alencar para seu
vice.
Relembro isso porque há algo
na narrativa do governo e aliados que não fecha. Mais que acusar o parlamento e
o vice de desferirem um “golpe” (no duplo sentido da palavra), ao governo e ao
PT caberiam, nesse momento, uma necessária e urgente autocrítica. Gostemos ou
não, ambos foram em parte responsáveis pela enrascada institucional em que
estamos todos metidos, porque não é possível supor que lideranças experientes
como Lula, não soubessem dos riscos implicados em cada uma das alianças
fisiologistas que firmou ao longo dos últimos 13 anos.
Há quem as justifique,
alegando que no presidencialismo de coalizão não há outro modo de governar e
que alianças são um “mal necessário”. Mas a ideia de “coalizão” foi reduzida a
um balcão de negociações não raro escusas. E embora tais práticas não tenham sido
criadas nas gestões petistas, o PT tampouco se esforçou para mudá-las. Antes
pelo contrário, fez delas amplo uso enquanto lhe foi conveniente e possível.
Tal continuidade foi em parte favorecida pelos parâmetros no interior dos quais
se consolidou o pacto político que, em meados dos anos de 1980, forjou a “Nova
República”.
Redemocratizar a democracia,
politizar a política
Em linhas gerais, tal acordo
não supunha assegurar, como observa Marcos Nobre em seu “Imobilismo em
movimento”, as condições para o desenvolvimento de “uma vida política
substantivamente democratizada”. Mesmo depois de 30 anos de democracia formal
ainda convivemos, por exemplo, com polícias militares para quem os movimentos
sociais são inimigos a serem combatidos e eliminados, e com políticas públicas
que, baseadas na anistia ampla geral e irrestrita, obra dos últimos governos
ditatoriais, favorecem o esquecimento de uma violência de Estado que foi regra,
e não exceção, ao longo de duas décadas.
O resultado é uma democracia
frágil e precária, porque sustentada, praticamente, em acordos institucionais
também eles frágeis, quando não baseados no fisiologismo e na corrupção. Um dos
resultados mais lesivos dessa precariedade foi uma crescente despolitização da
política, se a entendermos como gestão (no sentido de organizar e regular) do
convívio entre diferentes. “A política”, segundo a filósofa Hannah Arendt,
“baseia-se no fato da pluralidade dos homens”. E se tal pluralidade caminha no
sentido de assegurar mais e maiores liberdades, ela pressupõem igualmente a
existência de mecanismos amplos e sólidos de participação democrática que não
se resumem às eleições, ainda que essas sejam componente indispensável aquela.
A abertura política e a
retomada democrática foram insuficientes para superar as muitas experiências de
repressão sistemática a movimentos sociais e populares, que antecedem mas foram
substancialmente recrudescidas nos 20 anos de ditadura civil militar. A “Nova
República” herdou e manteve praticamente intocado um sistema político montado,
fundamentalmente, para marginalizar politicamente a grande massa da população.
Infelizmente, e ainda que por caminhos distintos, algumas facetas da
experiência petista de governo corroboraram essas práticas de despolitização da
política. Se, por um lado, as gestões Lula e Dilma promoveram uma inédita e
histórica diminuição dos índices de miséria e de desigualdade social, por outro
agiram no sentido de neutralizar e, em alguns casos, criminalizar movimentos e
manifestações que poderiam, se ouvidos com atenção, apontar alternativas para
uma efetiva guinada à esquerda que, como Godot, nunca veio.
Premido pelas próprias
contradições e sitiado por uma oposição hostil e desonesta que, parte dela, há
até pouco tempo compunha sua base aliada, o governo acenou nas últimas semanas
a setores da esquerda e dos movimentos sociais com os quais pouco dialogou na
última década: destravou a reforma agrária; demarcou áreas à comunidades
quilombolas e assinou decreto que permite o uso do nome social em crachá por servidores
LGBTs, por exemplo. Louvável. Mas é pouco, talvez tenha chegado tarde e acaba
por reforçar a impressão de que uma política de direitos não pode viver a
reboque dos governos e suas prioridades que, normalmente, não coincidem com as
dos movimentos sociais.
Cientes disso, pela segunda
vez em menos de um ano estudantes paulistas decidiram – e desculpem se recorro
a um jargão – “tomar a história nas mãos”. No ano passado foi para barrar a
“reorganização escolar” proposta por Alckmin. Agora, é para exigir, entre
outras coisas, que o governo tucano investigue efetivamente o desvio das verbas
destinadas às merendas escolares. No ano passado, ocuparam escolas. Nesse,
ocuparam também a Alesp. Enfrentaram e enfrentam uma das mais poderosas e
violentas máquinas estatais, a do estado de São Paulo, que não titubeou em
recorrer de decisão judicial para ter o direito de usar armas letais na
desapropriação do Centro Paula Souza, ocupado pelos estudantes desde a semana
passada.
Embora extremo, o gesto não
é novo: uma parcela expressiva da juventude brasileira está nas ruas há muito
tempo. Foram os jovens, principalmente, os que ocuparam as ruas para se
solidarizar com as comunidades indígenas vitimadas pela truculência
desenvolvimentista do Estado e das grandes empreiteiras; para denunciar a
violência contra a mulher nas “Marchas das vadias”; para protestar contra o
preconceito e festejar a liberdade nas “Paradas da Diversidade”; que acusam o
nosso racismo; que sofrem no corpo e gritam corajosamente contra as muitas e
cotidianas formas de violência policial.
Agora são eles, novamente,
os que chamam a atenção para as precárias condições de nossas escolas e de
nossa educação. E ao fazê-lo não apenas denunciam, mais uma vez, a truculência
governamental, mas a fragilidade de uma democracia que teme a experiência
democrática, e que só a tolera nos limites não raro estreitos da formalidade.
Uma democracia que, em outras palavras, cultiva o ódio à democracia sempre que
ela ameaça ultrapassar as fronteiras institucionais para afirmar-se como
cultura democrática. Tempos sombrios se anunciam. Os estudantes paulistas estão
sinalizando que o caminho para enfrenta-los é o aprofundamento da democracia,
não o seu acovardamento. Recomendo que os ouçamos.
* Clóvis Gruner é
historiador e professor na Universidade Federal do Paraná
Foto: Mídia Ninja
http://www.revistaforum.com.br/2016/05/07/mais-estudantes-menos-cunha/
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