“Faço um apelo para que se
inicie desde logo, e se consolide, um vasto programa de educação ética em todos
os níveis, a fim de que sejamos ao final capazes de rejeitar o espírito de
egoísmo, que tomou conta do nosso povo, e que constitui a alma do capitalismo,
como assinalou o Papa Francisco”, afirma o jurista.
“O Presidente da Câmara dos
Deputados e seus auxiliares forjaram grosseiramente a existência de um crime de
responsabilidade da Presidente Dilma Rousseff”, diz Fábio Konder Comparato à
IHU On-Line.
Segundo ele, “a disposição
constitucional do art. 85, inciso VI da Constituição Federal, declarando que
constitui crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atente
contra a lei orçamentária, deve ser completada com o disposto em lei”.
O jurista explica que, por
enquanto, “todas as definições penais” das leis nº 1.079/1950 e nº 101/2000
“dizem respeito, estritamente, a ‘operações de crédito’ feitas pela União
Federal em benefício de terceiros, e as ‘pedaladas fiscais’ nada têm a ver com
isso”. E acrescenta: “É exatamente o contrário do disposto nas leis citadas: em
vez de a União Federal conceder crédito, ela retarda o pagamento de seus
débitos”.
Na entrevista a seguir, em
que respondeu algumas das questões enviadas pela IHU On-Line por e-mail,
Comparato avalia que as razões da crise política “são de duas naturezas”. A
primeira delas diz respeito ao fato de “uma pessoa oriunda da classe
proletária” conseguir “se introduzir no quadro político tradicional”. “Trata-se
de algo insuportável para a classe dominante, pois anuncia o possível desafio
das camadas mais carentes de nossa população, no que se refere ao exercício da
soberania política”, frisa. Contudo, a inabilidade política da presidente
“estimulou os representantes políticos da classe dominante a forjar o
impeachment”.
A segunda razão da crise
política está relacionada com o fato de o país se encontrar, “presentemente, à
beira de um colapso. Caminhamos para o terceiro ano consecutivo de queda do
PIB, o que representa um fenômeno inédito desde que iniciamos o levantamento da
contabilidade econômica nacional”, que tem como consequência “mais de 10% da
massa trabalhadora sem emprego”, pontua.
Comparato diz ainda que,
embora a decisão do impeachment seja responsabilidade da Câmara dos Deputados e
do Senado, “o STF não pode, de forma alguma, manter-se alheio ao processo de
destituição”.
Fábio Konder Comparato
possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e doutorado em
Direito pela Université Paris 1. É professor Emérito da Faculdade de Direito da
USP e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, e especialista em
Filosofia do Direito, Direitos Humanos e Direito Político. É também titular da
Medalha Rui Barbosa, conferida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Analisando
juridicamente, houve ou não crime de responsabilidade fiscal por parte da
presidente Dilma? Há ou não, portanto, base legal para o impeachment a partir
dessa fundamentação?
Fábio Konder Comparato - A
disposição constitucional do art. 85, inciso VI da Constituição Federal,
declarando que constitui crime de responsabilidade o ato do Presidente da
República que atente contra a lei orçamentária, deve ser completada com o
disposto em lei. Eis por que a denúncia aprovada pela Câmara dos Deputados em
17 de abril último qualifica as chamadas “pedaladas fiscais” como crimes
definidos no art. 10, alíneas 7 e 8 da Lei nº 1.079 de 1950, e nos artigos 29,
inciso III; 32, § 1º, inciso I; e 36 da Lei Complementar nº 101 de 2000.
Acontece que todas as
definições penais de ambas essas leis dizem respeito, estritamente, a
“operações de crédito” feitas pela União Federal em benefício de terceiros, e
as “pedaladas fiscais” nada têm a ver com isso. São retardamentos no repasse de
recursos a bancos públicos, privados e autarquias, retardamentos esses depois
inscritos na prestação de contas do governo federal como empréstimos tomados
àquelas instituições. Ou seja, é exatamente o contrário do disposto nas leis
citadas: em vez de a União Federal conceder crédito, ela retarda o pagamento de
seus débitos.
Em conclusão, o Presidente
da Câmara dos Deputados e seus auxiliares forjaram grosseiramente a existência
de um crime de responsabilidade da Presidente Dilma Rousseff.
IHU On-Line - Como o senhor
está acompanhando a discussão sobre o impeachment? Como avançarmos no sentido
de compreender e elucidar as razões de ter ou não impeachment, ultrapassando os
debates apaixonados pró e contra o governo? Nesse sentido, que questões deveriam
ser esclarecidas?
Fábio Konder Comparato - O
que importa é saber os fatos que desencadearam a atual crise política. Eles são
de duas naturezas.
Em primeiro lugar, o fato de
que, pela primeira vez na história do nosso país, uma pessoa oriunda da classe
proletária consegue se introduzir no quadro político tradicional, formado
exclusivamente pelos membros da classe dominante, e assume a chefia do Estado
em dois mandatos eleitorais consecutivos, ao final dos quais, obtém 80% de
apoio popular. Trata-se de algo insuportável para a classe dominante, pois
anuncia o possível desafio das camadas mais carentes de nossa população, no que
se refere ao exercício da soberania política.
Como não se pode ignorar, o
povo brasileiro, desde o Descobrimento, jamais teve poder político efetivo.
Dir-se-á que agora o povo vota em eleições, mas isso não muda, minimamente, o
poder soberano da classe dominante. O povo brasileiro até agora, com raríssimas
exceções, tem sido mero figurante no teatro eleitoral, pois as campanhas
eleitorais, também com raríssimas exceções, são comandadas pelo poder do
dinheiro e pela propaganda deformante dos meios de comunicação de massa, controlados
por um oligopólio empresarial.
Sem dúvida, a Presidente
Dilma Rousseff, eleita após o término dos dois mandatos consecutivos de Lula,
revelou-se uma Chefe de Estado inábil, apresentando em 2016 um índice de
reprovação popular de cerca de 80%; ou seja, exatamente o contrário do seu
antecessor. Tal fato estimulou os representantes políticos da classe dominante
a forjar o impeachment, como acima demonstrado. Aliás, desde 1985 essa foi a
forma preferida para a derrubada de presidentes latino-americanos, depois que,
sem dúvida por pressão dos Estados Unidos, os países latino-americanos
abandonaram a reiterada prática do golpe militar.
Entre 1985 e 2005, houve na
América Latina 13 processos de impeachment de chefes de Estado. E em 2012, o
Presidente Fernando Lugo, uma espécie de Lula paraguaio, uma vez que não
pertencia à classe dominante, foi destituído pela oligarquia em 48 horas.
Nesse contexto, é mais do
que provável que os plutocratas, tal como fizeram com Dilma, forjem um delito
cometido por Lula, a fim de incapacitá-lo a concorrer às eleições presidenciais
de 2018. A Polícia Federal, o Ministério Público e, talvez, o juiz Moro
provavelmente vão se dispor a atuar com esse objetivo.
Causa econômica da crise
Já no que se refere à causa
econômica da crise atual, ela diz respeito ao fato de que nosso país
encontra-se, presentemente, à beira de um colapso. Caminhamos para o terceiro
ano consecutivo de queda do PIB, o que representa um fenômeno inédito desde que
iniciamos o levantamento da contabilidade econômica nacional. Só no primeiro
trimestre de 2016, um milhão e 100 mil empregados foram despedidos. Estamos
atualmente com mais de 10% da massa trabalhadora sem emprego. No ano passado,
segundo dados contidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD,
pela primeira vez desde 1992 a renda do trabalho dos brasileiros diminuiu e a
desigualdade aumentou.
Tal situação, das mais
preocupantes, é na verdade, em grande parte, o reflexo entre nós de uma mudança
histórica da maior importância: a sucessão do capitalismo industrial pelo
capitalismo financeiro. Todos sabem que, ao contrário das indústrias, os bancos
não criam riqueza alguma; na melhor das hipóteses, auxiliam na produção de
riqueza, através do crédito. Sucede, porém, que as instituições financeiras, no
mundo todo, não se limitam hoje a fazer operações de crédito, mas se dedicam,
também (e algumas delas especialmente) à especulação com valores mobiliários.
Foi isto que desencadeou a grande recessão mundial em 2007, consequente à
quebra do banco Lehman Brothers nos Estados Unidos, quando a cadeia dos
chamados “derivativos”, sobre os quais seu capital estava assentado,
desmoronou. Segundo previsão do Fundo Monetário Internacional, a expectativa é
de que, no mundo todo, este ano, mais de 2,3 milhões de pessoas percam seu
emprego, totalizando quase 200 milhões de desempregados.
É óbvio que o governo de
Dilma Rousseff não criou no Brasil esse colapso econômico, mas segundo um
defeito tradicional dos brasileiros revelou-se incapaz de previsão e planejamento
do fenômeno. Ademais, o governo Dilma Rousseff decidiu aliar-se preferentemente
aos banqueiros, deixando de dar início ao necessário processo de
reindustrialização do país. Com isto, enquanto nossa produção industrial
diminuiu 21% desde meados de 2013, nossos dois maiores bancos, Bradesco e Itaú,
tiveram no ano passado um lucro líquido de 13 e 14%, respectivamente.
IHU On-Line - A quem cabe a
decisão sobre o impeachment? Alguns dizem que isso cabe ao Congresso Nacional e
outros ao STF. Quem decide?
Fábio Konder Comparato - A
Constituição Federal determina que a decisão de impeachment cabe ao Congresso
Nacional: a Câmara dos Deputados admite a denúncia contra o Presidente, e o
Senado aceita-a ou não. Mas o STF não pode, de forma alguma, manter-se alheio
ao processo de destituição. Não só porque lhe compete, precipuamente, “a guarda
da Constituição” (art. 102), como também porque “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Constituição
Federal, art. 5º, XXXVI).
IHU On-Line - Seria possível
convocar novas eleições neste momento? O que determina a Constituição sobre
esse ponto e qual deveria ser o procedimento? Quem deveria convocá-la e que
atores deveriam participar de sua elaboração?
Fábio Konder Comparato -
Novas eleições só serão admissíveis mediante emenda constitucional.
IHU On-Line - Em seu artigo,
intitulado O Poder Judiciário no Brasil, o senhor faz alguns questionamentos
sobre a atuação dos órgãos judiciários e uma delas diz respeito ao fato de se
eles devem ou não ser controlados. Tendo em vista a política brasileira atual,
como responde à questão? Quais órgãos judiciários devem ser controlados, em
quais ocasiões e por quem?
Fábio Konder Comparato - A
triste verdade — totalmente ignorada no ensino jurídico oficial — é que os
Ministros do Supremo Tribunal Federal não se submetem ao controle de poder
algum. Eles podem cumprir ou não qualquer norma jurídica, desde o Regimento Interno
do Tribunal até os mandamentos constitucionais, sem que sejam minimamente
responsabilizados pelo descumprimento.
HU On-Line - Deseja
acrescentar algo?
Fábio Konder Comparato -
Sim. Quero dizer que o atual ambiente generalizado de ódio, preconceito e
intolerância política, criado durante o governo Dilma Rousseff, e que culminou
com a escandalosa sessão da Câmara dos Deputados do último dia 17 de abril, pôs
em foco a falta de formação ética de grande parte do nosso povo para uma
convivência harmônica e respeitosa dos direitos humanos.
Faço, portanto, um apelo
para que se inicie desde logo, e se consolide, um vasto programa de educação
ética em todos os níveis, a fim de que sejamos ao final capazes de rejeitar o
espírito de egoísmo, que tomou conta do nosso povo, e que constitui a alma do
capitalismo, como assinalou o Papa Francisco. Esse generalizado costume de
busca do interesse próprio, em detrimento do bem comum do povo, nos foi
insuflado desde o início da colonização. Como bem advertira Frei Vicente do
Salvador, em sua História do Brasil publicada originalmente em 1627, “nem um
homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual
do bem particular”.
Ora, se a razão de ser da
vida humana é alcançar a felicidade, individual e social, é preciso frisar que
o egoísmo jamais, em lugar algum, produziu esse resultado. A plena felicidade
só se alcança com um comportamento altruísta, fundado na compaixão, na
solidariedade e no amor ao próximo, sem restrições de qualquer espécie.
Por Patricia Fachin
No Instituto Humanitas
Unisinos
http://www.ocafezinho.com/2016/04/27/comparato-cunha-forjou-grosseiramente-o-processo-de-impeachment-de-dilma/
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