Duas teses passarão a
frequentar o Senado federal e as redações midiáticas: a do caráter político do
impedimento e a da irrecorribilidade da decisão congressual. Paulo Brossard
será apresentado como patrono da primeira e nada menos do que Rui Barbosa
patrocinaria a segunda, este quando os golpistas se dão ao trabalho de recorrer
a alguma autoridade além de Paulo Brossard. Embrulhadas em rococó
diversionista, estas serão as mesmas teses defendidas posteriormente pela
maioria do Supremo Tribunal Federal. A primeira delas corresponde a uma
interpretação degradada da atividade política, ausente do ideário de Paulo
Brossard, e a segunda é totalmente contra a letra e o espírito de um discurso
de Rui, dezenas de vezes impresso e citado desde então.
Com ótica parlamentarista,
Paulo Brossard concorreu à cátedra de Direito da Universidade Federal do rio
Grande do Sul apresentando ensaio sobre o impeachment. Contra a doutrina de que
o impedimento do presidente da República implicava julgamento criminal,
Brossard enfatiza a natureza exaustivamente política da medida: o impedimento
“não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, e é
julgado segundo critérios políticos (…)”. Lida e ouvida, a opinião será
repetida mil vezes como a indicar que o julgamento do impeachment, por ser
político, calhe desconsiderar os fatos e a técnica jurídica. Em matéria
política, o Congresso tudo pode, asseveram os golpistas. Para exemplo, veja-se
o espetáculo de celebração da tese exposto pela Câmara dos Deputados em 17 de
abril deste estranho ano de 2016.
Patranhas. A ênfase de Paulo
Brossard destina-se a distinguir um processo de impedimento administrativo de
um processo criminal, coincidência então defendida por não poucos juristas. Mas
seja uma medida estritamente política ou criminal, como pretendiam à época
Pontes de Miranda e outros, ela tem que necessariamente expressar um
“julgamento que não exclui, antes supõe, é óbvio, a adoção de critérios
jurídicos”. Este é o final do trecho acima, sistematicamente omitido pelos
defensores da deposição da presidente Dilma Rousseff, encontrado à página 75 da
edição de 1992 de “O Impedimento: aspectos da responsabilidade política do presidente
da República”. Ou os escrevinhadores não leram a obra ou a amputam, deliberada
e, por que não dizer, desonestamente.
Quanto a Rui Barbosa,
transcrevo parte de habitual, longa e tediosa intervenção recente do ministro
Celso de Mello (ver Luiz Nassif para apropriado retrato do ministro em A
falácia do decano, GGN, 21/04), dedo em riste, com certeza, lembrando o antigo
e famoso discurso ruibarbosiano. Tratava-se, agora em 2012, do direito de
decidir sobre perda de mandato de legisladores, e o ministro declarava que o
STF detinha “em termos de interpretação constitucional, e por força de
delegação da Assembleia Constituinte, o monopólio da última palavra”. Entender
diferente, continuou, equivaleria a pretender “justificar afirmações
politicamente irresponsáveis e juridicamente inaceitáveis de que não se
cumprirá decisão do Supremo Tribunal Federal”. No arroubo do discurso original,
dizia, igualmente, Rui: “Acaso Vossas Excelências poderiam convir nessa
infalibilidade que agora se arroga o poder qualquer desses ramos da
administração pública, o Legislativo ou o Executivo, de dizer quando erra e
quando acerta o Supremo Tribunal Federal? O Supremo Tribunal Federal, Senhores,
não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por
último, de decidir por último, de dizer alguma cousa (sic) que deva ser
considerada como erro ou como verdade”. Discursava ele na sessão de 29 de
dezembro de 1914, conforme se lê no volume XLI, tomo III, das Obras Completas
de Rui Barbosa, edição da Fundação Casa de Rui Barbosa, RJ, 1974, página259.
Claro que nem Celso de
Mello, hoje, nem os demais defensores da fuga de que não cabe ao STF apreciar
matéria sob a soberania do Congresso recorrerão à lembrança da opinião da dupla
Rui/Mello. Em tempo de delações seletivas, qual a surpresa com memorialísticas
escolhidas? Mas fica para arquivo da República: os comentadores comprometidos
com o golpe de Estado corrompem as doutrinas clássicas.
http://jornalggn.com.br/noticia/recrutando-rui-barbosa-e-paulo-brossard-para-o-golpe-por-wanderley-guilherme-dos-santos
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