“Não existe pecado do lado
de baixo do Equador”, escreveu o holandês Gaspar Barleu ao se deparar com a
libidinagem no Recife do século 17.
Não EXISTIA. A liberdade
sexual dos primeiros moradores do Brasil seria logo substituída pela noção de
transgressão, pelo pudor excessivo, pelas proibições e pelo preconceito –a
homofobia, por exemplo, nascia ali. Em que contribuíram os europeus para a sexualidade
das Américas além de nos apresentar à culpa?
Tudo o que era possível
trazer para cá, em termos sexuais, já era conhecido entre os nativos:
homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, bigamia, poligamia. As
posições também iam muito além do “papai-e-mamãe” no escuro e sob lençóis dos
colonizadores: masturbação mútua, sexo anal, oral, grupal. Sexualmente falando,
eram os indígenas os avançados e os homens brancos, os primitivos. Mas foi só
chegar a igreja e pronto: a pretexto de civilizar-nos, destruíram milênios de
conhecimento autóctone sobre a sexualidade.
As próprias narrativas dos
primeiros cronistas são contaminadas pelo puritanismo da época. No México,
Hernán Cortés escreveu: “fomos informados de que são todos sodomitas e usam
aquele abominável pecado”. O tema da sexualidade, é claro, sofreu censura por
parte dos colonizadores, e só recentemente historiadores e arqueólogos têm
apresentado descobertas neste campo. Cortés estava bem informado: entre os
maias, a homossexualidade era frequente, e uma espécie de rito de passagem da
infância para a adolescência (como ocorre, aliás, com tantos homens e mulheres,
de forma velada, em todos os tempos).
“Viam no prazer sexual um
dom divino, equiparável ao alimento, à alegria, ao vigor vital e ao repouso
cotidiano. Era questão de moderar o desfrute daquele presente, como se fazia
com qualquer outro bem concedido pelos deuses”, escreveu o antropólogo Alfredo
López Austin em um dos artigos da edição especial da revista Arqueologia
Mexicana sobre sexualidade entre os maias, em 2010.
A masturbação ritual era
praticada por muitos indígenas da América Central como uma maneira de fecundar
a terra, considerada “feminina”. As carícias mútuas faziam parte do coito: o
homem tocava as partes íntimas da mulher e a mulher tocava o homem. Moderno,
não? Tem gente que não faz isso até hoje…
Tudo isso foi documentado em
esculturas em pedra e cerâmica que ficaram escondidas, trancafiadas em salas de
museu até a metade do século 20. Uma mostra de arte erótica pré-colombiana
organizada no México em 1926 foi relegada a um salão secreto durante décadas.
Em Uxmal e Chichen Itzá há esculturas dedicadas ao órgão sexual masculino, cujo
significado ainda permanece um mistério. Supõe-se que os falos gigantescos
simbolizavam a fertilidade e eram objeto de culto.
No Peru, só em 1957 foi
aberta a sala onde ficavam escondidas as cerâmicas eróticas pré-colombianas do
Museu Nacional de Antropologia. Veio a público então uma impressionante série
de cerâmicas da cultura mochica, anterior aos incas, representando atos sexuais
de forma explícita, em posições que fariam corar ainda hoje em dia algumas
senhoras de Santana da renascida direita tupiniquim. Algumas delas podem ser
apreciadas no Museu Larco, em Lima.
Na América protestante a repressão
não foi diferente. Muito igualitária, a sociedade Cherokee dava às mulheres
postos semelhantes aos dos homens; elas podiam integrar o conselho da tribo e
ser guerreiras. O adultério era permitido a ambos os sexos, sem punição, assim
como o divórcio: bastava a mulher colocar os pertences do homem para fora da
casa.
Havia ainda os transgêneros,
encontrados em mais de 150 tribos norte-americanas. Chamados de Two-Spirit
(“dois espíritos”) ou “berdaches”, eram homens que gostavam de estar entre as
mulheres, fazer as coisas que elas faziam e vestir-se como elas. Ou o
contrário: mulheres que gostavam de se vestir como homens. Os primeiros relatos
de colonizadores sobre os Two-Spirit aparecem já no século 16. O preconceito
contra eles só vai surgir mais tarde, por influência do homem branco. A partir
daí, eles passam a ser rejeitados por suas tribos e são marginalizados.
Na América católica, a
“Santa” Inquisição foi convocada para reprimir sexualmente os nativos, coibindo
“delitos” como a bigamia ou a sodomia, embora fossem práticas permitidas em
algumas culturas indígenas. No México, conta-se do índio Ángel Porecu, de
Michoacán, punido por bigamia com cem chibatadas. No Brasil, um projeto da
Universidade Federal do Pará rastreou os casos de naturais da Amazônia, entre
eles indígenas, enviados aos tribunais do “Santo” Ofício em Lisboa por “crimes”
similares.
Foi o caso da índia
Florência Perpétua, de 28 anos, acusada de bigamia em 1766, levada a Portugal e
condenada à prisão, após a qual foi solta e admoestada a viver com o primeiro
marido. A sodomia (prática de sexo anal) também era razão para julgamento e
punição pela Inquisição, mas apenas a masculina. “A sodomia feminina não era
alvo da Inquisição porque não havia o derramamento de sêmen, considerado pecado.
A masculina era considerada bestialismo”, explica o historiador Antonio
Otaviano Vieira Jr., coordenador do trabalho.
A ordem era vestir as
índias, cobrir o que foi olhado com tanto espanto e deleite pelos primeiros
exploradores. “Desde o início da colonização lutou-se contra a nudez e aquilo
que ela simbolizava. Os padres jesuítas, por exemplo, mandavam buscar tecidos
de algodão, em Portugal, para vestir as crianças indígenas que frequentavam
suas escolas. ‘Mandem pano para que se vistam’, pedia padre Manuel da Nóbrega
em carta a seus superiores”, escreve Mary del Priore no livro Histórias
Íntimas. “Aos olhos dos colonizadores, a nudez do índio era semelhante à dos
animais; afinal, como as bestas, ele não tinha vergonha ou pudor natural.
Vesti-lo era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco
de problemas duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a
lascívia, os pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, as
indígenas não se negavam a ninguém.”
Enquanto fora de casa o
homem se divertia, dentro do casamento era um pudor só. “Até para ter relações
sexuais as pessoas não se despiam. As mulheres levantavam as saias ou as
camisas e os homens abaixavam as calças e ceroulas. Mesmo nos processos de sedução
e defloramento que guardam nossos arquivos, vê-se que os amantes não tiravam a
roupa durante o ato”, lembra Mary.
A sexualidade dos índios no
Brasil é ainda hoje pouco estudada. Há alguns relatos de cronistas, como o de
Gabriel Soares de Sousa entre os tupinambás, na caliente Bahia do século 16.
“São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não
cometam”, escreve Gabriel no Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Segundo ele,
os índios não só transavam muito como gostavam, homens e mulheres, de falar
sobre sexo desavergonhadamente.
Havia homossexualidade e o
adultério era permitido também às mulheres, que seduziam amigas para o leito
conjugal. “As que querem bem aos maridos, pelos contentarem, buscam-lhes moças
com que eles se desenfadem, as quais lhe levam à rede onde dormem, onde lhes
pedem muito que se queira deitar com os maridos, e as peitam para isso; cousa
que não faz nenhuma nação de gente, senão estes bárbaros”, constata, não sem
uma pontinha de inveja, nosso cronista.
As mulheres mais velhas, por
sua vez, “desestimadas dos homens”, tratavam de iniciar sexualmente os meninos:
“ensinam-lhes a fazer o que eles não sabem”. E os insatisfeitos com o tamanho
do membro –nada de novo sob o sol– “costumam pôr o pelo de um bicho tão peçonhento,
que lho faz logo inchar, com o que têm grandes dores, mais de seis meses, que
se lhe vão gastando por espaço de tempo; com o que se lhe faz o seu cano tão
disforme de grosso que os não podem as mulheres esperar”.
“O esforço no sentido de
fazer prosperar na colônia estrita monogamia teve que ser tremendo”, escreveu
Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala. O pernambucano, que assumia com
tranquilidade suas experiências homossexuais na juventude, prestou atenção nas
práticas entre o mesmo sexo e na bissexualidade, que não eram incomuns entre os
indígenas brasileiros e tampouco eram práticas condenadas. Pelo contrário, os
homossexuais eram bem-vistos e tinham relevância na comunidade. Freyre supõe
que a função de curandeiro das tribos, não só brasileiras como as demais do
continente, fosse destinada aos gays. Também se afirma isso sobre os
Two-Spirit, que seriam os xamãs da América do Norte.
“Quanto aos pajés, é
provável que fossem daquele tipo de homens efeminados ou invertidos que a maior
parte dos indígenas da América antes respeitavam e temiam do que desprezavam ou
abominavam”, defende Freyre. “Uns, efeminados pela idade avançada, que tende a
masculinizar certas mulheres e a efeminar certos homens; outros, talvez, por
perversão congênita ou adquirida. A verdade é que para as mãos de indivíduos
bissexuais ou bissexualizados pela idade resvalavam em geral os poderes e
funções de místicos, de curandeiros, pajés, conselheiros, entre várias tribos
americanas.”
Entrevistei o antropólogo
Estevão Fernandes, professor da Universidade de Rondônia, que estuda a
homossexualidade indígena.
Socialista Morena – Era
frequente a homossexualidade entre os índios brasileiros? Ou depende da etnia?
Estevão Fernandes – Não
apenas “era”, como é, algo normal. Um grande desafio no tocante aos indígenas
homossexuais em várias terras indígenas do País é o de romperem com uma imagem
que se tem, no Brasil, de que os povos indígenas sejam coletividades paradas no
tempo. Isso faz com que indígenas cujas sexualidades não se enquadram no modelo
hegemônico sejam vistos como “perdendo sua cultura” ou “gays por causa do
contato com os brancos”, gerando preconceito, inclusive, em suas próprias
aldeias –muitas vezes devido ao contato com os não-índios, com igrejas
diversas, por meio da mídia. A perspectiva de que estas sexualidades eram
abjetas chegou com a colonização, com a imposição de padrões ocidentais de
sexo, gênero, família, pela necessidade do colonizador de se organizar o
trabalho, o espaço e o tempo nas aldeias. Assim, os homens deveriam se vestir
como homens, trabalhar onde os homens trabalham, ter nome de homem, e se
comportar como os homens se comportam; idem com relação às mulheres. Os
indígenas que não se enquadravam nesta perspectiva (r)estrita de dimorfismo
sexual e heteronormatividade eram castigados –há relatos, por exemplo, de
execuções, cortes de cabelo forçados, castigos físicos, etc., levados a cabo
pelos colonizadores, não pelos indígenas. Neste sentido, a heteronormatividade
e o preconceito são parte integrante da colonização, mas não das formas pelas
quais os indígenas lidavam com essas práticas. Temos fontes que situam práticas
queer entre povos indígenas no Brasil desde, pelo menos, meados do século XVI e
em diversas etnias e povos indígenas do país, sem que houvesse qualquer tipo de
preconceito ou exclusão destes indivíduos em suas aldeias.
– Só há relatos de
homossexualidade masculina ou feminina também?
– Tanto uma quanto outra
(ainda que as fontes sejam mais frequentes no tocante ao sexo entre homens,
reflexo da perspectiva viricentrada e patriarcal quase sempre assumida pelos
observadores).
– Gilberto Freyre propõe que
muitos dos pajés eram homossexuais. Será verdade?
– No Brasil há poucos dados
sobre isso, ainda que existam. Isto talvez explique a perseguição que os homo e
bissexuais sofreram ao longo da colonização. Há vários relatos na literatura
que nos permitem afirmar que havia (e talvez ainda haja), entre povos
ameríndios, o ponto de vista que relaciona homo/bi/transexualidade ao potencial
sagrado, como mostram os Two-Spirit nos Estados Unidos e Canadá. Também há o
caso dos Muxes, no México, que apontam não apenas para esse importante papel
religioso, mas também político e social desempenhado por esses indivíduos.
– A sexualidade indígena é
um assunto muito pouco estudado no Brasil. Por quê? Qual a principal
dificuldade em pesquisar este campo?
– Ainda é, embora venham
surgindo boas pesquisas a este respeito. Uma das hipóteses é, talvez, a própria
resistência que algumas lideranças indígenas têm em tocar no assunto, por
temerem o preconceito em relação às suas comunidades… Outra é a relativamente
pouca penetração de ideias como as teorias queer na academia brasileira. Neste
sentido, um grande desafio é trazer o queer para uma discussão mais próxima da
etnologia indígena e da crítica às práticas coloniais, administrativas e
políticas empregadas junto aos povos indígenas. Por outro lado, fico feliz em
ver que alguns e algumas indígenas já se mobilizam em suas comunidades para
pensar estas questões, inclusive trazendo estas reflexões para a própria
academia –um exemplo é o texto Sexual Modernity in Amazonia, escrito em
coautoria com uma indígena Tikuna, aluna da UFAM (Universidade Federal do
Amazonas).
– Os relatos dos primeiros
cronistas sobre sexualidade eram sempre permeados de julgamentos e
preconceitos. Há alguma exceção? Algum cronista foi mais, digamos, permissivo?
– Até onde pude observar,
não há exceções… Quase sempre o enquadramento a partir do qual a sexualidade
indígena é vista reflete as perspectivas e preconceitos do observador… No
tocante aos missionários e cronistas é ainda mais evidente como a sexualidade
era vista, junto com a poligamia e a antropofagia, como prova da necessidade de
se converter –quase sempre pelo uso do medo– os indígenas.
***
Talvez a própria imagem do
indígena como “inocente” ou “assexuado” tenha sido útil à Igreja para
disseminar suas teorias sobre céu e inferno. A analogia com Adão e Eva era
perfeita: nus, no “Paraíso”, os “inocentes” foram tentados pela serpente do
“pecado”. Era preciso fazê-los sentir-se mal em relação a algo natural e
convertê-los à “fé”. E assim morria, no “descobrimento”, a genuína sexualidade
das Américas. Mas o pecado, Barleu tinha razão, não está mesmo em nosso DNA.
http://www.socialistamorena.com.br/como-a-igreja-arruinou-a-vida-sexual/
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