Não
quero ser um “abutre epistêmico”, mas não dá para deixar de comentar o recente
pedido de prisão preventiva do ex-presidente Lula. Antes de tudo, vou citar o
jurista Pedro Serrano, que deixou claro, ao criticar os promotores signatários
do pedido de preventiva, que o episódio representa um ponto fora da curva do
Ministério Público de São Paulo. Deixemos isso como dado, em uma espécie de
juízo sintético a priori kantiano, já que tantos filósofos foram citados nas
referidas peças processuais. Minha crítica, portanto, vai blindada por esse
juízo: não preciso bater na pedra para verificar que é dura. Ou seja: não
preciso dizer que o MP-SP não é assim como os promotores fizeram transparecer.
Nas
peças em liça, é possível perceber um conjunto de raciocínios teleológicos.
Subjetividade na veia. Assim: tenho um juízo conclusivo; na sequência, procuro
um modo de justificar aquilo que já sei (e que quero que aconteça). Às peças,
aplica-se a minha aporia da “travessia da ponte”, que está em Verdade e
Consenso: "Como é possível atravessar o abismo gnosiológico do
conhecimento, chegar ao outro lado, para depois retornar e edificar a ponte...
pela qual já passei?"
E
já que os promotores citaram Nietzsche, trago à baila outra frase do filósofo:
"Fatos não existem; só existem interpretações". Bingo. Para ele, tudo
é interpretação. Niilismo. Têm razão, pois, os promotores, paradoxalmente,
porque fatos (que fundamentem a prisão preventiva) não há; só há, mesmo, a
interpretação (deles).
Peço
desculpas pelas ironias, mas não posso deixar de me espantar. Talvez a ironia
seja o melhor modo de criticar o pedido de preventiva (deixo a discussão da
denúncia para outro artigo). Vinte e oito anos de Ministério Público me fizeram
ver muita coisa. Inclusive a luta na constituinte para que o MP tivesse as
garantias da magistratura. Porém, será que as conquistas foram postas na
Constituição para que (alguns de) seus membros agissem sem responsabilidade
política? Sem accountability? Basta pedir? Assim? E na moringa não vai água?
Supondo
que o pedido de preventiva dos promotores vingue, cabe a pergunta: que fizemos
com os requisitos do artigo 312 do CPP? Deixando Lula de lado, como explicar o
pedido de prisão de dona Marisa? Como agiremos no dia seguinte? Direito não
pode ser produto de desejos, paixões e ideologias. Mas não pode mesmo.
Os
promotores dizem que todos são iguais perante a lei. De fato. Assim deve ser.
No entanto, se isso é assim, a partir desse “precedente”, o MP-SP deverá pedir
a prisão preventiva de toda e qualquer pessoa envolvida em delitos como os
apontados na denúncia. Teríamos voltado aos tempos anteriores à Lei Fleury? Nem
naquela época a prisão preventiva era manejada desse modo. Quer dizer que o
ex-presidente e sua família devem ser presos porque ele (e o resto da família?)
podem incitar à violência? De novo, o fator Minority Report? O que é isto, a
ordem pública? O que é isto, o clamor popular? Quando procurador junto à 5ª
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os desembargadores
e eu colocávamos a mão em concha para ouvirmos o clamor das ruas, toda vez que
esse argumento era esgrimido retoricamente, como um conceito ômnibus.
Não
há muito o que falar. O pedido dos promotores fala por si. Confundir Engels com
Hegel já seria suficiente para desqualificar a peça e oferecer uma denúncia por
crime epistêmico. Sem considerar que o pedido vem recheado de argumentos ad
hominem, confundindo Direito Penal do fato com Direito Penal do autor. Juízos
subjetivos como os de que "a conduta do ex-presidente deixaria
envergonhados Marx e Hegel" devem ir para a história... Para ensinar como
não se deve fazer uma peça processual. Os promotores dizem que sua peça não é
política. Pois é. Porém, por que a alusão à Marx e Engels (confundido com
Hegel)? Não está nisso a maior prova de que estão agindo ideologicamente? Não
quero imitar o analista de Bagé, com sua psicanálise galponeira, mas não está
muito evidente isso?
Urgentemente,
o Direito de Pindorama necessita dar uma parada para respirar. Fomos longe
demais com voluntarismos e decisionismos. Está na hora de levar a sério a frase
de que devemos levar o Direito a sério. Ele não é o que o juiz ou o promotor
querem que seja. Não, não quero que você denuncie alguém com base na sua
consciência ou no seu desejo político. Não, não quero que você decida conforme
sua consciência. De novo, vou dizer — porque sofro de LEER — o que digo há 20
anos: eu, como cidadão, não quero saber o que você pensa — na sua linguagem
privada — sobre a política, impostos, política etc. Isso eu lhe pergunto em um
bar ou em uma confraternização. No fórum, na vida pública, quero apenas que
você aja de acordo com a lei e a Constituição. Se você, juiz ou promotor, não
consegue suspender seus pré-juízos, não pode ser um agente político do Estado.
Não pago seu salário para que você substitua a lei pelos seus juízos políticos
ou morais. Simples assim.
A
culpa disso tudo é o modo com que conduzimos o Direito. Nos lambuzamos com a
democracia. Achamos que estamos ainda nos tempos da Escola do Direito Livre.
Faculdades que despejam analfabetos funcionais. Cursinhos que treinam alunos
para quiz shows. Literatura básica usada nas aulas e em peças processuais que
deveria ter uma tarja com a inscrição “o uso constante desse material fará mal
à sua saúde mental”, como nas carteiras de cigarro. Eis os ingredientes para
uma tempestade perfeita.
No
entanto, polianamente (todo hermeneuta é otimista), penso que esse episódio
pode ser benéfico. Serve de alerta para que paremos para refletir. Salvemos
pelo menos a Constituição. E, a propósito, já que os signatários do pedido de
preventiva invocaram, ainda que erradamente, o filósofo Hegel, há uma célebre
frase dele, que pode ser aplicada por aqui: "Deutschland ist kein Staat
mehr" (Alemanha não é mais um Estado). Pode até o Brasil estar carcomido
pela má política e pela corrupção, mas não é a qualquer custo que iremos
combater esses males. Sem o respeito às garantias constitucionais, aí sim
daremos razão à frase de Hegel, de que o Brasil não é mais um Estado.
Aproprio-me
de uma frase que não lembro de quem é: Deus morreu, Marx, Nietzsche e Hegel
(sic) morreram, Elvis se foi... E, confesso, eu não estou me sentindo muito
bem.
http://www.conjur.com.br/2016-mar-11/streck-pedido-prisao-lula-torturou-marx-hegel-nietzsche?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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