Dierle
Nunes e Lenio Streck, autores de livro sobre novo CPC, respondem a
11
perguntas sobre norma.
O
sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) não é
nenhum remédio milagroso que resolverá os problemas do Judiciário. Quem alerta
são os advogados Lenio Streck e Dierle Nunes, que colaboraram com a criação do
novo código que entrou em vigor na última sexta-feira (18/3).
Nunes
foi um dos membros da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do novo
CPC na Câmara dos Deputados. Streck um "crítico do Direito em terrae
brasilis", que desde o início das discussões não poupou sugestões para
melhorar o projeto, até mesmo depois de aprovado.
Juntos,
contabilizam uma vitória: a retirada do poder do livre convencimento do novo
CPC. "Em tempos de democracia, não é adequado que se permita o livre
convencimento nas decisões", afirmam.
Porém,
apesar dos avanços do código, ambos atentam que é necessária uma mudança de
racionalidade, de como é visto o Direito e sua teorização. "Uma
Constituição democrática exige que a cumpramos. O Direito, hoje, tem um elevado
grau de autonomia. Portanto, depende menos do agir individual dos juízes. Se
quisermos resumir isso em uma frase, podemos dizer: na dúvida, julgue conforme
o Direito, seguindo a legislação. Se persistirem os sintomas, a Constituição
deverá ser consultada", afirmam.
Streck
e Nunes são autores do livro Comentários ao Código de Processo Civil,
recém-lançado, em parceria com Leornardo Cunha e Alexandre Freire (clique aqui
para mais informações sobre a publicação).
Abaixo,
a dupla responde a 11 questões sobre o novo CPC:
ConJur
— Qual a relevância da adoção de normas fundamentais pelo novo CPC?
Nunes
e Streck — A Lei 13.015/2015, seguindo uma linha reformista utilizada em
inúmeros outros países (como na CPR Inglesa de 1998 — Reforma Woolf), adota um
conjunto de normas concentradas em seu início (primeiros 11 dispositivos) e em
seu bojo (como por exemplo os artigos 489 e 926) que ofertam os principais
fundamentos da nova legislação para superação de um modelo de protagonismo
judicial e decorrente adoção de um modelo democrático e policêntrico de sistema
processual no qual se dimensiona uma divisão equânime entre o papel da
magistratura e da advocacia e, ao mesmo tempo, induz comportamentos
normativamente coparticipativos.
Ademais,
as referidas normas fundamentais promovem a aproximação da legislação com o
texto constitucional de modo a se corrigir uma série de vícios da praxe
brasileira, induzindo, por exemplo a adoção de modelos decisórios mais
dialógicos e maior responsabilidade aos advogados pelos riscos econômicos de
uma propositura equivocada de uma demanda (por exemplo artigos 85, 338,
parágrafo único).
ConJur
— Não seria suficiente, neste aspecto, somente aplicar as normas
constitucionais processuais?
Nunes
e Streck — Infelizmente, cremos que não! É óbvio que boa parcela das normas
fundamentais buscam somente a expansividade do que está na Constituição e, caso
fossem aplicadas com toda a sua força, tornariam desnecessário a repetição ou
descrição de seu conteúdo pelo CPC-2015. Porém, como sabemos e vimos
denunciando há muito tempo, várias normas postas na Constituição são
olimpicamente desprezadas por muitos profissionais e torna-se deveras
importante seu reforço pela legislação.
Um
exemplo notório neste aspecto diz respeito à fundamentação decisória. Apesar da
CF/88 prever a nulidade pela inaplicação de seu comando (artigo 93, IX) é
recorrente o uso de fundamentações superficiais e despreendidas do caso em
julgamento, sem esquecer do desprezo ao dever de consideração com os argumentos
relevantes suscitados pelas partes. Em face deste vício, a legislação se viu
compelida a contrafaticamente corrigir este comportamento não cooperativos dos
julgadores.
ConJur
— Se tornou lugar comum a alusão ao novo sistema de precedentes que o CPC-2015
estabeleceu. Vocês acreditam que ele será a solução definitiva ao problema de
alta litigiosidade do direito brasileiro?
Nunes
e Streck — De imediato precisamos advertir a todos de que o sistema de
precedentes do CPC não é nenhum remédio milagroso que resolverá nossos
problemas. Possuímos uma litigiosidade plural e com números assustadores, que
jamais será resolvida somente com reformas legislativas; por melhores que as
mesmas sejam.
Para
reduzir as litigiosidade deveríamos atacá-las em sua gênese, por exemplo, com a
redução do descumprimento dos direitos (inclusive fundamentais) pelos grandes litigantes
brasileiros — repeat players — (como o poder público, bancos, telefônicas etc.)
mediante um aumento da fiscalidade (accountability) e da promoção de efetivos
diálogos institucionais. Eles usam o judiciário para resolver seus problemas.
Lembramos aqui de uma frase do ministro Luis Salomão do Superior Tribunal de
Justiça: as companhias telefônicas transferiram seu call center para o
Judiciário. Bingo! Nada mais precisa ser dito.
Porém,
o que se busca com o sistema de precedentes do caso é o de oferecer uma nova
racionalidade para o trabalho dos tribunais. A palavra chave é:
previsibilidade. A superficialidade dos julgamentos e a anarquia interpretativa
são apenas alguns dos problemas do trato do direito jurisprudencial entre nós.
E, em face disto, o CPC-2015 cria um modelo altamente dialógico de formação
destas decisões e impõe o respeito à estabilidade, coerência e integridade...
ConJur
— Quais cuidados os profissionais devem possuir neste momento de transição?
Nunes
e Streck — Além dos efetivos problemas de adaptação com novo sistema e novas
técnicas e as questões envolvendo o direito intertemporal, é imperativo o
aumento do cuidado com as partes onde tivemos maiores modificações, como o
tutela provisória e o sistema recursal.
Os
advogados terão que ter muito cuidado para não exporem seus clientes a um
desastre judicial. Se existe precedente confiável contra a tese do cliente, o
causídico deve ter extrema cautela. A possibilidade de perder deve ser
comunicada ao cliente. Até pensamos que, nestes casos, deve isto estar
estabelecido no contrato, para evitar demandas contra o advogado.
ConJur
— Poderiam exemplificar algumas das novidades no sistema recursal?
Nunes
e Streck — Além da adoção do mesmo prazo para todos os recursos (15 dias
contados em dias úteis — artigo 219), com a exceção do recurso de embargos de
declaração (artigo 1.003, §5º), há uma mudança brutal do cabimento dos recursos
de agravo (artigo 1.015) e apelação (artigo 1.009), sem olvidar da adoção de um
modelo único para os recursos extraordinários repetitivos (artigos 1.036 a
1.041), com previsão expressa de técnicas de distinção (artigos 1,037, §§9º a
13) e superação de precedentes (artigo 927, §§ 2º a 4º).
O
modelo casuístico de cabimento do agravo, com o uso da apelação de modo supletivo
para as hipóteses de interlocutórias não previstas no rol legal (artigo 1015)
traz um complicador para os habituados ao sistema do CPC-1973.
Um
alento é a adoção da chamada primazia do mérito (artigos 4º e 932, paragrafo
único) que combate a jurisprudência defensiva e impõe ao relator a abertura de
prazo para a correção de vícios formais dos recursos, antes de declarar sua
inadmissibilidade, como nas situações de falta de preparo (artigo 1007) ou de
documentos do instrumento de agravo (artigo 1.017, §3º)
ConJur
— Quais os principais artigos do CPC que tratam daquilo que os senhores chamam
de “previsibilidade”?
Nunes
e Streck — Além do artigo 10, chave de interpretação sistêmica do CPC, há o
artigo 926, que, de forma inédita, coloca a exigência de coerência e
integridade no CPC. Isto, lido de acordo com o artigo 10, talvez seja o maior
trunfo em favor da previsibilidade e segurança dos jurisdicionados. Já o artigo
489 estabelece uma verdadeira criteriologia decisional. Bem claro, o
dispositivo diz em que hipóteses uma decisão, incluindo acórdãos, não estarão
fundamentados devidamente. Aliás, este é o artigo que está causando uma maior
resistência no seio da magistratura. Em alguns ramos da justiça como a do
Trabalho, até enunciados já foram aprovados “decidindo” que, pasmem, este
artigo não se aplica a eles. Ou seja, estão acima da lei. Não nos parece que
isso seja um bom exemplo em um país com tantos problemas. Cumprir a lei é a
primeira obrigação dos agentes públicos.
ConJur
— Vocês lutaram para a retirada do poder de livre convencimento do Código. Como
foi isso? E qual é a importância?
Nunes
e Streck — Lenio escreveu um artigo na ConJur criticando duramente o projeto. O
deputado Paulo Teixeira lhe chamou para discutir sugestões. Lenio ligou para
Dierle, que já trabalhava na Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados.
Discutiram teses e temas. O resultado direto pode ser visto nos artigos 371,
926 e 927, sendo que, direta e indiretamente, buscamos auxiliar no
aprimoramento de dispositivos como o 10, 489 e 926. Mas uma grande luta
travamos para evitar o veto a dispositivos importantes como o §1º do artigo
489. Fizemos dois artigos na ConJur para pedir que a presidente sancionasse.
Mesmo após a sanção também buscamos diretamente com parlamentares e com a
publicação de textos aqui coibir retrocessos impostos pela Lei 13.256/2016. Um
registro: a ConJur foi de extrema relevância para a nossa luta. Sem o site,
teria sido muito difícil consolidar alguns avanços. Somos muito agradecidos à
ConJur.
ConJur
— Mas, especifiquem melhor a alteração no livre convencimento.
Nunes
e Streck — O livre convencimento é uma marca colocada nos Códigos. Essa marca
aponta para o passado. No século XIX e início do século XX isso até se
justificava. Em tempos de democracia, não é adequado que se permita o livre
convencimento nas decisões. E não adianta dizer que o livre convencimento é
motivado. Sem sentido. Se tenho liberdade para escolher, a motivação que vem
depois é só para colocar um verniz naquilo que decidi. Muitas vezes o juiz já
se encontra enviesado e com uma tendência de confirmar seu pré-julgamento, isto
é, o seu “adiantamento de sentido” do caso (confirmation bias). Aceitar o livre
convencimento é aceitar a tese de que a interpretação é um ato de vontade. E
disso sabemos todos as consequências.
E
isso enfraquece o processo. O processo é condição de possibilidade da aplicação
do Direito. Ele não é um mero instrumento. Por isso, as decisões não podem ser
teleológicas ou finalísticas. A decisão deve ser produto dialogal, com a
participação dos atores e não um produto que vem da mente insulada do juiz.
Alguém poderia dizer: “sim, mas não adianta proibir. Quando o juiz quer, ele
decide como quer”. Nossa resposta: pode até ser assim. Mas essa é uma visão que
enfraquece o Direito e o processo. Isso é o mesmo que dizer que o Direito é
aquilo que os juízes dizem que é. Se isso é mesmo verdade, devemos parar de
escrever, de estudar, de lecionar ou cursar pós-graduação. No fundo, se isso é
verdade, nem votar será necessário. Se o direito é o que os juízes dizem que é,
nem mais direito — no sentido democrático — existirá. Porque só existirá aquilo
que se diz que é direito. E tudo se resumirá em um jogo de poder. Somos
otimistas: achamos que há esperança. Os artigos 10, 371, 489, 926 e 927, bem
aplicados, podem constituir em um grande avanço.
ConJur
— Trata-se, então, de uma questão cultural?
Nunes
e Streck — E de mudança de racionalidades. Temos que mudar o modo como vemos o
Direito e a sua teorização. Uma Constituição democrática exige que a cumpramos.
O Direito, hoje, tem um elevado grau de autonomia. Portanto, depende menos do
agir individual dos juízes. Se quisermos resumir isso em uma frase, podemos
dizer: na dúvida, julgue conforme o direito, seguindo a legislação. Se persistirem
os sintomas, a Constituição deverá ser consultada.
ConJur
— E a ponderação que está no artigo 489?
Nunes
e Streck — Aqui reside um problema: tudo indica que os juristas que
participaram da Comissão de elaboração do CPC quiseram estabelecer a ponderação
de origem alexiana. Ocorre que o dispositivo foi aprovado com um grave defeito,
ao falar em “colisão de normas”. Ora, se regras também são normas — e,
efetivamente, o são — isso quer dizer que o juiz poderá “ponderar” regras? Mas,
se assim proceder, estará escolhendo uma regra em detrimento de outra. Afinal,
não é Alexy quem diz que regra é no tudo ou nada? Logo, estará invalidando uma
delas. Só que, então, estará violando a jurisdição constitucional e criando
Direito, o que lhe é vedado a toda evidência. Portanto, o dispositivo que
autoriza o juiz a ponderar normas (e regras são normas) é inconstitucional,
porque fere o artigo 2º da Constituição Federal, que estabelece a divisão de
Poderes na República. Além do mais, o próprio Robert Alexy se refere à colisão
de princípios e não colisão de regras, criação, aliás, tipicamente brasileira.
ConJur
— Uma mensagem final?
Nunes
e Streck — Conclamamos a comunidade jurídica a acreditar no Direito. Olhemos o
novo com os olhos do novo. Quem olha o novo com os olhos do velho, transforma o
novo no velho. Crise é quando o novo não nasce e o velho não morre. Temos que
olhar para a frente. Superar crise. Acreditar que o Direito não é manipulável
como se fosse um jogo em que as cartas são marcadas. Por isso lutamos tanto, junto
com tantos outros juristas, para aprovarmos este Código. E estamos prontos para
a batalha do novo Código de Processo Penal. A raiz dos problemas é a mesma. Mas
isso já é pauta para outro momento.
http://www.conjur.com.br/2016-mar-25/lenio-streck-dierle-nunes-analisam-mudancas-trazidas-cpc
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