Do
Afinsophia, desde Weimar
Os
promotores, Cássio Roberto Conserino, José Carlos Guillem Blat e Fernando
Henrique de Moraes Araújo — que pediram a prisão preventiva de Lula — afirmam
no documento que se apoiaram no filósofo Nietzsche para elaborar a acusação
contra o ex-presidente.
Para
melhor sustentação do pedido, se apoiaram na palavra (não no conceito, já que
conceito é de outra ordem filosofica-epistemológica) super-homem.
O
conceito nietzschiano é apresentado pelo filósofo em várias de suas obras,
porém com maior demonstração na obra Assim Falava Zaratustra, escrita entre os
anos de 1883-1885. Que também trata da morte de Deus e sua sombra.
Assim
os promotores começam suas explanações.
“101)
De proêmio, apresentamos passagem da obra Assim Falou Zaratustra.
“Nunca
houve um Super-Homem. Tenho visto a nu todos os homens, o maior e o menor.
Parecem-se ainda demais uns com os outros: até o maior era demasiado humano”.
102)
Fundamental a referência à obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, pois de
forma muito racional estabelece que todos os seres humanos se encontram em um
mesmo plano, premissa maior que norteará todo o pedido de prisão preventiva do
denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA”.
Quem
estudou ou estuda o filósofo Nietzsche sabe de início que sua filosofia não
defende de forma alguma o Estado.
Ainda
mais o Estado com sua conjuntura jurídica que pretende fazer dos homens um
grande rebanho. Em quase todas suas obras Nietzsche trata o Estado como um
corpo impotente, onde falta a vontade de potência, vigorando o niilismo que
toma a vida como a vingança do pessimismo.
Mas,
para entender melhor o que não há de Nietzsche na “premissa maior que norteará
todo o pedido de prisão preventiva” de Lula, é preciso saber das Três
Metamorfoses do espírito apresentadas no Assim Falava Zaratustra. Que não podem
ser afastadas do conceito da morte de Deus mostrado pelo filósofo do Ecce Homo.
Primeira
Metamorfose – “O que há de pesado para transportar?”. Pergunta o espírito
transformado em asno. O asno se agacha e pede que coloquem em seu lombo os
fardos. Percebendo que aguenta mais peso pede que coloquem mais fardos. Ele
quer gozar de sua força. Como camelo, ele quer alcançar o deserto. O seu
deserto.
Segunda
Metamorfose – O espírito-asno se metamorfoseia em espírito-leão. Quer
conquistar a liberdade e ser o rei de seu deserto. Para ser livre ele precisa
lutar contra o último senhor, o último Deus. Assim, ele encontra o dragão que
tem o nome de “Tu-deves”. Mas a alma do leão é “Eu quero”. O dragão é coberto
de escamas que brilham em seu corpo, que são os valores milenares. O dragão é a
soma de todos os valores criados no passado. Por isso, o dragão afirma que não
haverá qualquer “Eu quero”. Como o leão ainda não se encontra preparado para
criar seus próprios valores, ele continua com seus fardos.
Terceira
Metamorfose – O espirito leão se transforma em criança. Como criança é livre de
todos os valores. É “o novo começar, jogo, roda que se move por si mesma,
primeiro móvel, afirmação santa”. Ao sair do mundo dos valores milenares ela
“conquista o seu próprio mundo”.
A
primeira metamorfose representa os valores cristãos dominantes na Europa
durante toda a Idade Média, que regiam os comportamentos dos homens dessa
época.
A
segunda metamorfose representa a morte de Deus quando a Ciência mostra que a
Terra não é o centro do universo, mas o sol. É a teoria heliocêntrica
destituindo a teoria geocêntrica que servia de suporte ao teocentrismo. É o
renascimento, o iluminismo, o racionalismo.
Com
a morte de Deus os homens criaram outros valores. Só que com os mesmos sinais
dos valores cristãos passados. É a sombra de Deus que, apesar de morto,
continua servindo de modelo. O que significa que não alcançaram a terceira
metamorfose. Daí continuarem humanos, demasiado humanos.
Mais
um conceito de Nietzsche que mostra a miséria da existência reativa que os
promotores não entenderam.
Humano,
demasiado humano, outra obra do filósofo, mostra que o homem continua preso ao
sobrenatural, ao metafísico em forma niilista, pessimista em relação à vida.
Negando
a vontade de potência: o que cria a vida como afirmação e não como negação. O
humano, demasiado humano sempre diz Não à vida ao se apegar aos valores como
orgulho, covardia, medo, vaidade, ambição, submissão, busca de aprovação,
traição, reconhecimento, desonestidade, estupidez, ignorância, brutalidade,
cobiça, entre outros cultuados principalmente pelos burgueses.
Ele
é o homem do espírito cativo modelado, serializado, registrado só para
tagarelar o que lhe impuseram como “verdade humana”, sem ter nunca ultrapassado
o que tagarela. Daí que ele se limita em relações com sua família, classe,
colegas de profissão e grupos particulares. Nada que carrega o homem do
espírito livre, aquele que constrói novas formas de existência.
O
super-homem de Nietzsche sempre foi entendido como dominação. Mas, não é.
Primeiramente, ele é vontade de potência e eterno retorno, não retorno do
mesmo, mas da vontade de potência.
Como
dominação ele é tido, pelos ressentidos e reativos, como força de opressão só
realizada pela pura raça germânica, como doutrinava Hitler. A irmã de
Nietzsche, Elizabeth Forest-Nietzsche, casada com o antissemita Bernhard
Förester, foi quem propagou essa ideia para servir a Hitler. O absurdo foi
tamanho que o casal, movido por esse desatino, tentou fundar uma colônia
nazista no Paraguai, mas não vingou — para o bem da democracia e de Nietzsche.
O
super-homem é aquele que vem depois do último homem, assim afirma Zaratustra.
Aquele que não é dominado pelos valores milenares que foram criados para
impedir o movimento da vida. O super-homem é o criador de seus próprios valores
e para criar valores não pode ser aprisionado em forças constituídas como
verdades inabaláveis e propagá-las.
Por
isso, Nietzsche perguntava a quem servem essas verdades. O super-homem é o que
realiza a tresvaloração de todos os valores, como mostra Nietzsche em seu Para
Além do Bem e do Mal. Para o filósofo, esse conceito de Bem no mundo humano,
demasiado humano, é ainda valor niilista que defende a negação da vida.
Dessa
forma compreende-se que as três metamorfoses conduzem ao entendimento de que o
super-homem atribuído pelos três promotores a Nietzsche é negado pelo próprio
Nietzsche. Assim, como também, o conceito de humano, demasiado humano. O humano
de Nietzsche não tem nenhuma relação com o conceito jurídico-antropológico
apresentado pelos promotores.
E
mais, os promotores afirmam que o filósofo da Genealogia da Moral “de forma
muito racional estabelece que todos os seres humanos se encontram em um mesmo
plano”.
Nietzsche
não tratava os homens como iguais, para ele isso é concepção de rebanho. Gado
humano. Ele tratava das individuações. Por isso ele falava de duas massas. Uma
dominada pelo niilismo que segue o líder, em alguns casos o Estado. Outra,
aquela em que os indivíduos, embora juntos, mantém suas individuações. A
vontade de potência.
Nessa
afirmação atribuída pelos promotores a Nietzsche destaca-se também, como forma
de efeito linguístico-jurídico, a enunciação “de forma muito racional”.
Razão
para Nietzsche não significa condução de raciocínio através de uma lógica
estabelecida como coerência de objetivo. Aliás, para ele a lógica é recurso
para servir de segurança aos que dizem não à vida. Ele não trata de razão
instrumental. A razão para ele antecede toda forma de representação, como
consciência e seus conteúdos. Está ligada à potência dionisíaca.
Por
isso, para Nietzsche o homem pessimista, ressentido, niilista, reativo, não faz
uso da razão. Faz uso de uma máscara da razão, que muitas vezes é fabricada
pelas graduações escolares: razão das receitas postas pela voz de comando
escolar.
Um
adendo filosófico para outro recurso que os promotores usaram para sustentar o
pedido de prisão preventiva de Lula.
Eles
afirmam que as atuais condutas de Lula “deixariam Marx e Hegel envergonhados”.
Não
sabemos se eles queriam se referir ao camarada de Marx, o filósofo Engels. Mas,
se foi exatamente ao filósofo Hegel, que foi quem criou o conceito Espirito
Absoluto para onde convergem todos os eus-individuais e que serviu de germe
para a criação jurídica do Estado Ocidental, também a referência não encontra
respaldo.
Hegel,
em sua filosofia do Direito, afirma que é o povo quem cria o Estado e suas
representações legislativas, assim como a Constituição. E Lula é criação do
povo.
Quanto
a Marx, não precisa esforço de raciocínio. Lula é a simbologia da representação
democrática que o filósofo de Trier, de certa forma, deixava claro como um dos
estágios para a libertação da classe trabalhadora da exploração do capitalismo.
Logo, Marx é só elogio para Lula. Embora Lula não seja comunista.
Em
síntese, Nietzsche repudia o uso errado de seus conceitos filosóficos para
amparar o pedido de prisão preventiva contra Lula. Logo, Lula não pode ser
nietzscheanamente preso.
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/lula-pode-ser-preso-mas-nao-nietzscheanamente-preso.html
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