Na
atual conjuntura brasileira em que o poder judiciário vem assumindo, cada vez
mais, um papel de protagonismo no desenrolar do conflito político – o que
cientistas políticos costumam chamar de ‘judicialização da política’ -, uma das
perguntas que precisamos fazer é: quem é esse judiciário, qual a sua cara e
quais são os seus valores? A partir da nossa experiência enquanto advogadas
populares, afirmamos que o judiciário brasileiro é elitista, defensor da
propriedade privada, racista, refratário às pautas feministas e corporativista.
Um censo recente realizado pelo Conselho Nacional de Justiça aponta que a
magistratura brasileira é composta majoritariamente por homens brancos.
Mulheres perfazem 36% da magistratura de primeira instância e 18% em Tribunais
Superiores. Negras e negros não chegam a 2% em todo conjunto. Trata-se de uma
casta que recebe, em média, o correspondente a R$ 41.802,00 mensais[1] (no ranking mundial, os salários
dos juízes no Brasil estão entre os maiores do mundo[2]) e os maiores
privilégios do país (auxílio-moradia, auxílio-saúde, auxílio alimentação,
férias duas vezes por ano, carro do tribunal…), e, para além de tudo isso, não
é controlado por ninguém, a não ser por seus próprios pares.
O
legislativo, com todos os problemas do nosso sistema político, passa ao menos
pelo crivo das eleições diretas e periódicas – extremamente
limitadas/constrangidas, é necessário dizer, haja visto o financiamento privado
de campanhas e a concentração do poder midiático no país – mas ainda assim, permanece passível de algum
(mínimo) controle popular. O legislativo é também controlado pelo poder
judiciário, via, por exemplo, controle de constitucionalidade das leis que ele
produz. O poder executivo similarmente se constitui a partir de eleições
diretas e periódicas – com os mesmos vícios já mencionados -, mas, em alguma
medida, é submetido a controle popular, bem como a controle tanto pelo
legislativo quanto pelo judiciário, nesse último caso, por meio, por exemplo, de
ação civil pública e ação popular. Mas, e quem controla o judiciário?
A
resposta é que não há controle. Ele está descontrolado. De um lado, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), órgão que possui a missão de contribuir para o
aperfeiçoamento da justiça, possui composição de membros que coincide com o
perfil dos magistrados brasileiros[3]. Passados mais de 10 anos de existência
do conselho, ainda há muito o que se avançar para democratizar os espaços do
sistema de justiça, incluindo as demandas dos movimentos sociais e da sociedade
civil organizada. Por outro, as corregedorias são compostas pelos próprios
juízes, guiando-se, como é de se esperar, pelo corporativismo institucional.
Aos
que defendem veementemente que o judiciário é um poder livre e calcado na legalidade
e imparcialidade – como se isso esvaziasse a necessidade de seu monitoramento
real – rebatemos, com a nossa experiência concreta, que o judiciário não é
técnico e neutro, mas é político e orientado por uma ideologia mantenedora de
privilégios, inclusive por coincidirem com os seus próprios privilégios.
Assistimos esses dias a um judiciário cheio de si, protegido pelo manto da
imparcialidade, que tira selfie em protesto a favor do impeachment, posta no
facebook, e dias depois decide “imparcialmente” ação que discute atos da mesma
presidenta que ele, declaradamente, quer afastada do poder. Ou outro membro da
corporação, que reconhece a ilegalidade da interceptação telefônica que ele
próprio vazou para os meios de comunicação, mas diz que há precedente em
Watergate! E, ainda, que intercepta telefone central de escritório de advocacia
bem como celular de advogado, ignorando o sigilo profissional no exercício da
profissão e impedindo assim o exercício da ampla defesa. Um judiciário que
assume, abertamente, que tem lado e assim se torna, como acontecia na Idade
Média, ao mesmo tempo, inquisidor e julgador.
O
fato é que, para nós, advogadas populares que atuamos em defesa de ocupações
urbanas, povos e comunidades tradicionais, populações organizadas contra a
mineração, população em situação de rua, ações judiciais que seguem a mesma
lógica das citadas acima não são exceção, mas REGRA. É esse o nosso cotidiano:
lidar com um judiciário que segue legitimando a exploração e subordinação dos
grupos subalternos em defesa da manutenção do status quo que o produz e mantém.
Vamos
dar alguns exemplos: durante a Copa do Mundo, no contexto de manifestações
contra o imperialismo da FIFA, após impetrarmos mandado de segurança contra a
tática de envelopamento utilizado pela polícia militar para coibir
manifestantes, o judiciário legitimou os cercos policiais típicos de regimes
autoritários. “Defesa do patrimônio privado!” – quase dava pra ouvir.
Assistimos ao progressivo esvaziamento das ruas em razão do clima de medo, travestido
de ordem. Razoabilidade? Hoje, além da hostilização de pessoas vestidas de
vermelho, do espancamento de governistas, manifestantes ocuparam a Av. Paulista
por 28h e a polícia bateu continência aos que lá estavam. Defesa de integridade
física? E o tão avocado direito de ir e vir? Nada de cerco policial dessa vez:
é o direito à manifestação!
No
caso das ocupações da Izidora, diante de ações de reintegração de posse de
terrenos abandonados e que não cumpriam sua função social, nos termos da
Constituição, o judiciário foi implacável em ordenar o despejo, sem qualquer
consideração aos direitos dos moradores, antes mesmo que se concluísse a
instrução processual. Neutralidade? Além disso, seguindo estritamente a lei,
impetramos um mandado de segurança em razão do despreparo da polícia militar
para executar a operação de reintegração de posse dentro de normativas
nacionais e internacionais. O mandado de
segurança era contra ato do comandante da polícia militar e do governador e, em
razão do último réu, expressamente de competência do órgão especial do tribunal
mineiro. O mandado foi invariavelmente indeferido por desembargadores de câmara
incompetente, em flagrante desconsideração da normativa do próprio tribunal.
Técnica? No caso de outra ocupação, Guarani Kaiowá, presenciamos
desembargadores assentirem que “o tribunal de justiça não é lugar de se fazer
justiça”. Justiça? Isso porque não é possível nos delongarmos aqui quanto aos
detalhes dos inúmeros casos de pretos e pobres que são encarcerados pelo
judiciário sem provas e sem decisões fundamentadas.
Não
podemos nos esquecer que no ano passado nos deparamos com o I Congresso Mineiro
sobre Exploração Minerária promovido pela Associação de Magistrados Mineiros –
AMAGIS, e financiado declaradamente, com direito a divulgação, pasta e tudo
mais, pelas mineradoras: as mesmas que violam diariamente direitos dos povos e
comunidades tradicionais desse Estado. O objetivo do congresso era “promover o
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional”… para as mineradoras, claro.
O
desrespeito a nós, advogadas populares, também é recorrente. Sofremos
constrangimentos, inúmeras vezes, por sermos mulheres e defensoras de
“invasores”, “baderneiros”, etc. Subgente para um judiciário classista que
seleciona quem são, de fato, os “sujeitos de direito”. E essa seleção não só
aparece nas decisões proferidas, como se espacializa: o Tribunal de Justiça,
mais de uma vez, criou empecilhos à entrada de moradores de ocupações que
assessoramos durante o julgamento de processos que os envolviam. Tentou impedir
também que moradores em situação de rua entrassem no julgamento de agravo de
instrumento de processo contra recolhimento arbitrário de seus pertences pela
polícia, sob a justificativa de que estavam sem documentos de identidade –
justamente os que, dentre outros pertences, haviam sido recolhidos forçadamente
e deram ensejo à ação popular cujo recurso seria julgado.
Por
outro lado, a leniência e condescendência do judiciário com os grandes é também
grande: não se investiga o helicóptero cheio de cocaína do Perrela[4], Aécio
Neves até hoje não foi intimado a depor, privatarias do FHC nunca foram
investigadas, abusos da mídia, com destaque da rede globo, acontecem à revelia
da perspectiva constitucional de mídia… O judiciário não os controla, e ninguém
controla o judiciário!
A
conjuntura atual, portanto, coloca em evidência o teor político, seletivo e
legitimador de manobras convenientes ao judiciário. O contexto atual escancara
que a lei é retórica, que os argumentos são interpretações tendenciosas e que,
definitivamente, o judiciário passa longe de ser nossa corte máxima da imparcialidade,
da técnica e da justiça. Resta perguntar: e agora, para onde esse judiciário
vai nos levar, sob as vestes de grande herói da limpeza de ilegalidades?
Tememos as possíveis respostas.
–
Carolina
Vieira, Layza Queiroz, Larissa Vieira, Márcio Ramos, Mariana Assis e Thaís
Lopes são Advogadas Populares
[1]
Conforme o levantamento, a média de rendimentos de juízes e desembargadores nos
estados é de R$ 41.802 mensais; a de promotores e procuradores de justiça, R$
40.853. Os presidentes dos Tribunais de Justiça apresentam média ainda maior:
quase R$ 60 mil (R$ 59.992). Os procuradores-gerais de justiça, chefes dos MPs,
recebem também, em média, R$ 53.971. Fura-se o teto em 50 dos 54 órgãos
pesquisados. Eles abrigam os funcionários públicos mais bem pagos do Brasil. Há
salários reais que ultrapassam R$ 100 mil. O maior é de R$ 126 mil. Fonte:
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/01/as-mordomias-os-privilegios-e-o-paternalismo-de-um-judiciario-arrogante.html
[2]
Leia mais aqui: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u63332.shtml
[3]
Leia mais aqui:
http://www.jusdh.org.br/2014/09/05/uma-decada-de-cnj-mais-participacao-social-no-judiciario/
[4]
Sobre o assunto:
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-do-dcm-sobre-o-helicoptero-dos-perrellas-e-retirado-do-youtube/
http://racismoambiental.net.br/?p=203712
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