Caças às bruxas, não importa
quando e como tenham acontecido ou estejam acontecendo, costumam merecer o
aplausaço da opinião pública. As sociedades rudimentares – e aí incluo a nossa,
renitentemente escravagista, enfatiotada em privilégios – têm a sanha da
punição antes mesmo de saber o que deve ser punido. Somos linchadores em
potencial. A mídia gosta. O público dos estádios – aquele que ofende
governantes democraticamente eleitos – ovacionava o ditador de radinho no
ouvido. Os xerifes balofos da TV, em cruzada do olho por olho, são líderes de
audiência.
A Inquisição, ou as
inquisições, é um desses momentos de deleite popular. O historiador inglês
Trevor-Roper, investigando o frenesi antibruxas na Europa dos séculos XVI e
XVII, percebeu: “A semelhança entre a perseguição aos judeus (motivação da
Inquisição nos países latinos, submissos ao Vaticano) e a perseguição às
bruxas, que atingiu seu clímax em diferentes lugares ao mesmo tempo, sugere que
a pressão atrás de ambas era social. A feiticeira e o judeu representam uma
forma de inconformismo social”. Os pretextos, por exemplo as leis da Igreja, só
mascaram a verdade. Trevor-Roper poderia acrescentar ao seu rol de socialmente
indesejáveis os mandingueiros do século XX: os comunistas e os simpatizantes
das causas populares. Para o status quo, bruxas, judeus e vermelhos são todos
traidores a ser exemplados.
O fato é que os sanguinários
algozes da Inquisição portuguesa e espanhola (decretada por bulas papais em
meados dos 1500) e os magistrados da França e Itália a serviço do catolicismo
retrógrado da Contrarreforma sempre caíram nas graças das massas, menos por
convicção delas e mais por pusilanimidade. Aos olhos de seus contemporâneos,
Galileu Galilei morreu como herege – não como herói. O cruel dominicano
Savonarola era, na virada do século XV para o XVI, em Florença, tão popular – e
temido – quanto o juiz Moro, o carcereiro de Curitiba. Igualmente fanático, se
via investido de uma missão divina. Savonarola foi colhido por seu próprio
exibicionismo messiânico.
Os togados da Bastilha de
Curitiba têm, na história, precedentes em seus prejulgamentos partidarizados e
enviesados. Na França do século XVII, apurou o historiador Robert Mandrou, os
magistrados seculares vieram a substituir os prelados fanatizados na tortuosa
arte de promover, com a fachada da Justiça, os autos da fé com que a Igreja se
notabilizou. Os processos de feitiçaria – que vitimaram primordialmente as
mulheres – eram um ritual que sempre conduzia ao mesmo resultado: arrastar o
suspeito até a fogueira. “A partir do momento em que o juiz abre um dossiê
sobre uma denúncia, rapidamente confirmada pelo rumor público, o
encarceramento, os depoimentos e interrogatórios, a procura de marcas (que
identificariam, em algum pretenso sinal corporal, os possuídos por Satanás) e a
confissão se encadeiam imutavelmente.” A crença do magistrado já estava absolutamente
formada. Testemunhas abundavam – assim como as intrigas, as mentiras e as
pequenas vinganças pessoais. A base de um processo supostamente laico é forrada
por “um maniqueísmo grosseiro, simplista
e terrivelmente eficiente que faz da vida terrestre um combate constante
entre o Maligno e as criaturas”. Criada a legitimação ética da deduragem, o
vizinho passa a ser suspeito de manter um pacto com o Tinhoso.
Da Inquisição à Lava Jato,
passando pelo macarthismo, por Guantánamo, pelo DOI-Codi e pela prisão de Abu
Ghraib, do julgamento de Sócrates na Grécia antiga (por “não respeitar os
deuses da cidade”) ao flagelo das bruxas de Salem, Massachusetts, na América puritana
(acontecimento real que Arthur Miller transformou em peça), os justiceiros mais
arbitrários usam o pretexto do imperativo moral, é como se esse demônio
onipresente e ardiloso espreitasse por toda parte as pessoas de bem. Se tiver
barba, então, e morar em São Bernardo, é o capeta em pessoa.
Joana d’Arc pagou, como
herege, o preço de um pecado político. Ao tomar partido do rei da França contra
os invasores ingleses e seus aliados do Ducado de Borgonha, assinou sua
sentença de morte. A fase do julgamento foi comandada pelo bispo de Beauvais.
Camponesa e analfabeta, foi imolada numa fogueira – à moda das feiticeiras – em
maio de 1431. Tinha 19 anos. No século XIX, o Vaticano, em tardio mea-culpa, a
proclamou santa.
A maioria das pessoas não
consegue distinguir no outro – aquele que é, pensa, age diferente delas – se
não o adversário a ser castigado, o Belzebu a ser humilhado, o malfeitor
responsável por todos os males do mundo. O discurso moralista divide o mundo
entre os maus e os bons. As grades, as torturas, o justiçamento e a fogueira
purgam, no altar do eterno bode expiatório, a paranoia dos cretinos e dos
medrosos.
A lógica do suplício
prescinde de provas. Como demonstrou com raro brilho o historiador Elias
Lipiner, num livro de antologia (Terror e Linguagem: Um dicionário da Santa
Inquisição – infelizmente fora de catálogo), a trama inquisitorial não busca a
apuração da verdade; a verdade já está presumida. Aquela verdade que interessa
aos acusadores. Cumpre apenas fazer com que o prisioneiro venha, sob tortura,
suficientemente humilhado, pressionado a algum tipo de delação, enredar-se nos
argumentos que lhe propõem os próprios verdugos. Em nome da Justiça arma-se a
cilada traiçoeira da injustiça.
Está em cartaz Trumbo, de
Joy Roach, que teve em Bryan Cranston indicação para o Oscar de melhor ator –
retrato de um dos mais talentosos roteiristas de Hollywood e uma das vítimas
mais notórias do macarthismo. É um filme incômodo, ainda que não se vá pedir
àquela plateia de um domingão preguiçoso um esforço de reflexão, mínimo que
seja, capaz de relacionar aqueles sombrios tempos de perseguição nos Estados
Unidos dos anos 50 ao que se vê em tempos atuais. É bastante provável que, ao
sair daquela didática lição sobre a intolerância, troquem o farnel de pipoca
pelas panelas rabugentas.
O macarthismo foi a prova
viva de como pode florescer o espírito antidemocrático no país que sempre quis
se fazer passar por campeão da democracia. Imaginem, então, em outros. Em 1952,
quando era o xodó das manchetes de jornais e dos noticiários de rádio e tevê, o
senador Joe McCarthy, o brucutu do Comitê de Atividades Antiamericanas do
Congresso, mereceu na convenção do Partido Republicano as honras de estrela da
festa, ofuscando até mesmo o candidato à Presidência, general Dwight
Eisenhower. Eisenhower era herói de guerra. Joe McCarthy ia inventar o seu
próprio conflito. Obscuro político do Meio-Oeste em busca de um bom tema,
eleito em Wisconsin com o apoio de sindicatos dominados... pelos comunistas,
iria virar o símbolo e o sinônimo de uma vergonhosa tragédia
político-ideológica, na qual foram cúmplices os norte-americanos assustados com
a Guerra Fria e com o discurso do nós aqui versus os traidores lá.
Na verdade, o macarthismo
precedeu a McCarthy. A Doutrina Truman açulava o delírio antissoviético depois
do armistício de 1945. A conquista do Senado e da Câmara pelos republicanos
iria radicalizar a paranoia. Em novembro de 1947, os Dez de Hollywood –
incluindo o roteirista Dalton Trumbo – eram processados por desacato ao
Congresso. A caça às bruxas focava no cinema. Os chefes de estúdio covardemente
decidiram demitir os suspeitos de “subversão”.
O que passou à história com
o nome de macarthismo virou a catarse doentia que faz do medo, intolerância. Os
Dez de Hollywood seriam sentenciados em junho de 1950 e foram cumprir pena em
presídios federais. Típico delito de opinião. Prisioneiros políticos. Ou seja,
é um velho filme. Mas iria repetir-se outra vez sob a fanfarronice caricata do
governo de Bush II, então tendo o Islã no papel de inimigo externo.
A sórdida cruzada de
McCarthy e sua trupe de fanfarrões patriotas (com destaque para cúmplices como
John Wayne, no papel de caubói de si mesmo, e de delatores como Ronald Reagan,
futuro presidente da pátria da liberdade) deu prestígio e ibope, só terminando
porque o senador-justiceiro cometeu o erro de confrontar o Exército. No filme
Trumbo, há uma cena emblemática: no presídio, a plateia de um filme de guerra
aplaude com entusiasmo a pancadaria de soldados americanos contra os japs (os
japoneses). Ou seja, aquelas criaturas condenadas a um desterro coercitivo
confraternizam afetivamente com a América que os afasta do convívio social, que
os despreza, que os humilha.
Nem tudo foi covardia na
Operação Lava Jato dos gringos fóbicos. Um talk-show de tevê, ancorado por Ed
Murrow, na CBS, ajudou a sangrar de morte o macarthismo, ainda que Murrow tenha
enfrentado o risco de ser tomado como um daqueles que se insubordinavam diante
da intolerância e da injustiça. Chamavam-no, como a outros, de “traidor da
América”. “Boa noite e boa sorte”, o bordão de despedida de Ed Murrow,
acionava, noite após noite, uma luz de esperança nos espectadores menos
trogloditas (o âncora mereceu um filme, que estreou em 2005, com direção de
George Clooney e David Strathaim como protagonista).
Antes de Trumbo, os Dez de
Hollywood já tinham sido lembrados – e homenageados – em The Front, de Martin
Ritt (de 1976), aqui no Brasil Testa de Ferro por Acaso. A doce vingança de
Martin Ritt arrolou para o filme várias figuras que tinham – assim como o
próprio diretor – frequentado a lista negra do macarthismo: o roteirista Walter
Bernstein e os atores Zero Mostel, Herschel Bernardi, Lloyd Gough e Joshua
Shelley.
Mas para chegar às entranhas
do terror ideológico do macarthismo nada melhor que um surpreendente faroeste.
Em Matar ou Morrer (High Noon), a alegoria emprestada pelo Velho Oeste olha não
tanto para a valentia, e sim para a covardia. O filme é de 1952, mas o tema é
tão atual quanto foi pertinente na época: a responsabilidade do cidadão. Um
xerife enfrenta, leva a júri e manda para a prisão um assaltante de banco. De
repente, chega a notícia de que o bandido fora solto e seus irmãos estão na
estação esperando pelo trem do meio-dia e pela hora da vingança. O xerife Kane
(Gary Cooper) se vê sozinho, enquanto os chamados cidadãos de bem, sob
pretextos variados, comportam-se como ratazanas assustadas. A pusilanimidade
triunfa, sob as bênçãos do culto dominical.
Hardleyville era, no início
dos anos 50, a alegoria perfeita da América acovardada pela ofensiva do
macarthismo, e o diretor Fred Zinnemann teve de ocultar nos letreiros o nome do
roteirista blacklisted Carl Foreman. A
narrativa em tempo real, ritmada pelo agoniante tique-taque do relógio, e a
trilha torturante de Dimitri Tiomkin aprimoram a tensão dramática na qual,
dessa vez, excepcionalmente, não é o xerife quem promove a barbárie, ao
contrário, é vítima dela.
Sessenta anos após o surto
macarthista, a América, carola e sem fibra, busca projetar seu medo em figuras
salvacionistas como Donald Trump e os pterodátilos do Tea Party. O Brasil,
triste cópia do Império, caça suas bruxas imaginárias em pretenso exercício de
purificação ética, abrigados os inquisidores em togas negras à guisa de batinas
brancas – mesmo que todos saibam, lá no fundo, que as tais bruxas no las hay.
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