A
Constituição da República está sendo sistematicamente violada no âmbito da
operação "lava jato".
Os
tribunais, ao tolerarem as violações, fragilizam as bases constitucionais da
nossa democracia.
As
democracias contemporâneas não estão fundadas na força das armas, mas na convicção
de que as regras da Constituição e dos Tratados Internacionais de Direitos
Humanos, orientadas à contenção do poder e à evitação do arbítrio, obrigam a
todos
Como
na história recente de tentativas de golpes parlamentares na América Latina, é
perceptível um padrão de conduta que define neste momento quase-tardio não mais
a qualidade das violações, mas a intensidade e sua oportunidade.
O
amplo rol de garantias constitucionais (e das Convenções) é impeditivo da
condução coercitiva de pessoas que têm domicílio certo e se fazem representar
nos procedimentos. Mas estas conduções antijurídicas foram validadas por
tribunais. Por isso são repetidas e apropriadas como espetáculos
midiático-políticos.
São
da espécie dos espetáculos que se prestam à tentativa de enfraquecer o governo
e tomar pela via da criminalização da política a legitimidade que as urnas não
oferecem às grandes empresas de mídia e não ofereceram a setores insatisfeitos
da oposição.
Da
mesma maneira — e muito claramente — a Constituição não admite a prisão
provisória a título de castigo. Examino as decisões da "lava jato" em
um projeto de investigação sobre standards probatórios, na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), e também em razão de consultas que me fizeram sobre a
minha opinião acadêmica sobre casos concretos neste âmbito.
Várias
prisões foram decretadas em flagrante violação à Constituição — e foram
mantidas pelos tribunais — apoiadas em um único argumento: o suspeito ou
acusado é culpado da prática dos crimes investigados. Isso viola clara e
literalmente a presunção de inocência nos termos da Constituição.
Apenas
estes dois exemplos são suficientes para ilustrar a sequência de atentados à
Constituição e sua progressão... mas não bastam para determinar o contexto.
Com
efeito, a tolerância dos tribunais quanto a violações sistemáticas da
Constituição, algo que se pensava extinto pelo menos desde 2009, tem muitas
causas, mas algumas remetem à nossa conturbada história de gozo com o
autoritarismo.
Carlos
Lacerda fez fortuna política no campo da direita, empunhando bandeiras de
moralismo e nacionalismo que o tornaram imune a críticas sobre fatos de
extraordinária gravidade, como a tentativa de golpe de estado em 1955, a bordo
do Cruzador Tamandaré, e a falsa "Carta Brandi", publicada em seu
jornal com o propósito de atingir o então vice-presidente João Goulart.
Com
sua retórica potente de combate à corrupção Lacerda foi um dos líderes civis do
golpe militar de 64, que teve amplo apoio das classes médias e das elites.
Naquela época as "panelas do Leblon" também batiam.
O
"moralismo" sempre foi a arma de reserva do arsenal conservador das
elites brasileiras. Nunca foi usado para denunciar a escravidão, a exploração
das empregadas domésticas, o exílio interno a que estão condenadas as pessoas
que moram em favelas sem água e esgoto, a vergonha do salário mínimo pré-2003,
o "branqueamento" das nossas virtudes e o "enegrecimento"
de nossos defeitos, obra cara aos "intelectuais" que se sentem no
direito de serem os porta-vozes da elite que pretende colonizar o seu próprio
povo. Alguns encontram cadeira na Academia Brasileira de Letras.
A
lista de exemplos da seletividade e desonestidade do moralismo tupiniquim é
quase infinita.
O
certo é que este moralismo constitui a expressão pública do autoritarismo. É
impensável, em certos grupos, que a corrupção seja investigada no Brasil no
marco do estado de direito. É impensável não por que seja impossível investigar
com regras constitucionais.
Na
Alemanha, com regras ainda mais rígidas, o Deutsche Bank foi investigado e as
práticas de corrupção punidas. Nos Estados Unidos da América a IBM foi
investigada e punida. E assim no mundo democrático, sem que as investigações
quebrassem a economia, sacrificassem empregos e, principalmente, sem que as
Constituições fossem desrespeitadas e a vontade popular achincalhada.
Nestes
lugares ninguém está acima da lei. Não está como potencial investigado,
tampouco na condução dos procedimentos legais, pois daqueles a quem a ordem
jurídica oferece a legitimidade do uso de armas, por si ou por seus agentes, há
de se exigir em grau elevado prudência e respeito às regras da Constituição.
Não
há dúvida de que as grandes corporações midiáticas no Brasil criam o ambiente
favorável a que decisões inconstitucionais sejam proferidas em um ritmo
frenético, que não sejam barradas nos tribunais, e que isso sirva como
argumento sobre a sua (falsa) legitimidade... quando em verdade, a história é
implacável ao denunciar, retrospectivamente, que a confirmação judicial serve
apenas para revelar o quanto os tribunais contribuem, muitas vezes de modo
inadvertido, outras vezes não, para consolidar o autoritarismo.
Mais.
O projeto de poder que alimenta este contexto simplesmente naturalizou a
delação, conferiu credibilidade a ela e nos transformou em um país de Silvérios
dos Reis. Não sem muito gozo. A contradição é da essência do moralismo.
Esta
é a essência do que chamo de "Lacerdismo Jurídico", que se compraz
até mesmo com a normalidade da tortura, se for empregada contra os de sempre.
Os
que derrubam conscientemente as barreiras erguidas pelo estado de direito não
tem o benefício da dúvida relativamente ao emprego político que é feito das
suas ações.
Estão
coniventes e é necessário, mais do que em qualquer outra época recente, que o
Supremo Tribunal Federal não os tema, que não tenha receio dos editoriais de
uma mídia cuja ausência de isenção é um dado conhecido, que não ceda às
investidas golpistas de oportunistas que, derrotados nas urnas, querem mostrar
uma vez mais a essa gente de pele morena qual é o seu verdadeiro lugar no
Brasil.
Por
fim a esse descalabro é urgente e é tarefa do STF.
Um
dia, nos anos 90, andava pelas ruas de Buenos Aires e entrei em uma livraria
jurídica. Fechada dentro de uma pequena caixa de cristal havia uma Constituição
de bolso. Por fora um aviso escrito: En el caso de una emergencia rompa el
cristal.
É
chegada a hora de romper o cristal.
Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2016-mar-06/geraldo-prado-constituicao-sistematicamente-violada-lava-jato
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