Consoante
dispõe o art. 5º, caput, da Constituição Federal, a liberdade é um direito
fundamental de primeira dimensão, cláusula pétrea que não pode ser suprimida ou
mitigada. Destarte, tendo em vista o princípio da presunção de inocência, em
regra, ninguém pode ser preso antes de sentença penal condenatória transitada
em julgado.
Entretanto,
mesmo com status de direito fundamental, o direito a liberdade não possui
caráter absoluto, visto que em determinadas situações, mesmo em conflito com a
presunção de inocência, é possível que um sujeito de direito tenha seu status
libertatis tolhido. Afinal, como sabiamente pondera J. J. Gomes Canotilho, “se
o princípio for visto de uma forma radical, nenhuma medida cautelar poderá ser
aplicada ao acusado, o que, sem dúvida, acaba por inviabilizar o processo
penal.”[1]
Com
efeito, no direto brasileiro tem a prisão duas naturezas distintas, quais
sejam:
a)
prisão-pena, que decorre de sentença penal condenatória transitada em julgado e
que visa, em sintonia com art. 59, do CP, retribuir, com o mal — a prisão —, o
mal causado, mas também prevenir que novos delitos venham a ser cometidos —
função retributivo-preventiva; e a
b)
prisão cautelar, provisória, processual ou sem pena, que tem como subespécies a
prisão preventiva e temporária. Nesta situação — prisão processual — há
segregação já na persecução penal, antes mesmo de haver a formação da culpa;
portanto, somente pode ser admitida em casos de exacerbada excepcionalidade.
Feito
este introito, adentremos no mérito do presente artigo que se restringirá a
temas inerentes à prisão processual, analisados a luz da lida cotidiana com
processos penais onde referida espécie de prisão se tornou regra.
Pois
bem, tendo em vista que a prisão processual — atendo-se, aqui, mais
especificamente à prisão preventiva — se confronta com o princípio da presunção
de inocência, deve ser vista como medida excepcional, quando não houver outra
medida cautelar diversa da prisão menos gravosa, capaz de alcançar o mesmo fim
desejado (art. 319, Código de Processo Penal).
Para
que haja, portanto, a [legítima] decretação de prisão cautelar, alguns
pressupostos devem ser preenchidos, sob pena de se macular o decreto pela pecha
da ilegalidade, devendo ser a prisão, nestes casos, relaxada. Nessa esteira,
dois são os requisitos gerais de cabimento das cautelares: necessidade e adequação,
nos termos do artigo 282, inciso I e II, do Código de Processo Penal.
No
que tange especificamente a prisão preventiva, ultrapassada a fase dos
requisitos gerais, é preciso analisar os requisitos específicos da prisão
preventiva, onde deve estar preenchido o fumus comissi delict, que se
traduziria na “fumaça do cometimento do delito”. Vale dizer, há necessidade de
fortes indícios de que o agente tenha cometido um crime.
Mas
não é só, a decretação da prisão preventiva pressupõe prova da existência do
crime [materialidade delitiva] mais indícios suficientes de autoria; todavia,
por mais gravosa que seja a imputação e por mais robusta que seja a prova de
autoria, esses pressupostos, por si sós, não são suficientes para justificar o
encarceramento preventivo.
Destarte,
não basta somente essa “fumaça do cometimento do delito”, há que se verificar,
em cada caso, se o investigado/indiciado/acusado oferece risco à eficácia do
processo. Vale dizer, deve-se vislumbrar, ainda, o conhecido periculum
libertatis, que, segundo Aury Lopes Jr., “decorre do estado de liberdade do
imputado”.[2]
De
modo geral, consoante dispõe o Código de Processo Penal, em seu art. 312, o
perigo da liberdade consubstancia-se em atos que possam evidenciar riscos à
ordem pública, à ordem econômica, atitudes do imputado que embaracem a
conveniência da instrução criminal ou, ainda, comportamentos concretos, por
parte do acusado, que revelem uma intenção de fuga, colocando em xeque, assim,
a própria aplicação da lei penal.
Assim
sendo, o magistrado, quando da expedição de um decreto de prisão cautelar, deve
se ater à existência de um fato criminoso cumulada ao perigo que o acusado,
caso aguarde o tramitar processual em liberdade, possa causar à eficácia do
processo. Com efeito, estando presentes o fumus comissi delict e o periculum
libertatis pode-se decretar [legitimamente] a constrição processual da
liberdade.
Contudo,
o que tem causado estranheza, é a decretação sucessiva e reiterada da prisão
preventiva, a um mesmo acusado, pelo mesmo magistrado, com supedâneo nos mesmo
fundamentos utilizados para expedir o primeiro mandado prisional.
Ora,
não existe qualquer lógica jurídica nisto!
Para
melhor ilustrar, tomemos como premissa um caso hipotético: Digamos que um
magistrado decrete a prisão preventiva de determinada pessoa alegando a
necessidade de resguardo da ordem pública e que o mesmo poderia atrapalhar a
conveniência da instrução criminal.
No
transcorrer do processo, quando diversas medidas de combate ao referido decreto
prisional estão pendentes de análise por Tribunais Superiores, esse mesmo
magistrado, no bojo de outra ação penal, decreta a prisão preventiva do mesmo
acusado, com base em fatos diversos, mas com fundamentação idêntica, de que a
prisão é necessária para resguardo da ordem pública e por conveniência da
instrução criminal.
A
ilegalidade da segunda prisão é patente haja vista que não há qualquer
possibilidade de se caracterizar o periculum libertatis de uma pessoa que já se
encontra presa! A toda evidência, não há fundamento jurídico para tal
atividade, porquanto a primeira prisão exclui, consectariamente, os fundamentos
da segunda.
Nesse
sentido, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do habeas corpus 128.278/PR, de
relatoria Eminente Ministro Teori Zavascki, analisando a matéria, consignou
que:
1.
Na superveniência de fatos novos, nada impede o decreto de nova prisão
preventiva, como prevê, aliás, o art. 316 do Código de Processo Penal. Todavia,
é indispensável que eventual superveniência de novo ato constritivo não
concorra — nem mesmo involuntariamente — para limitar o exercício da
competência do Supremo Tribunal Federal na apreciação de habeas corpus
impetrado contra o primeiro decreto de prisão.
2.
A preservação da integridade da competência do Supremo Tribunal Federal
recomenda que, ressalvada a hipótese excepcional de autonomia plena entre os
atos atacados, se considere desde logo incluído nos limites da cognição da
Suprema Corte o controle jurisdicional de ambos os decretos prisionais, com as
cautelas de colher das autoridades impetradas as informações indispensáveis a
esse julgamento conjunto.
3.
A perda de objeto do habeas corpus somente se justifica quando o novo título
prisional invocar fundamentos induvidosamente diversos do decreto de prisão
originário. Precedentes.
Na
mesma direção, no julgamento do HC 130.254/PR, novamente ressaltou o Ministro
Teori que “é preciso avaliar com cautela situações como a presente, de superveniência
de um segundo decreto de prisão preventiva às vésperas de julgamento de habeas
corpus relativo ao decreto prisional anterior, a fim de que não sirva um fato
assim, voluntária ou involuntariamente, de empecilho ou de limitação ao regular
exercício da competência jurisdicional desta Suprema Corte”.
Esses
precedentes versam sobre prisões ocorridas no bojo da famigerada operação
"lava jato”, cuja repercussão é nacional. O que preocupa é que a imensa
repercussão dessa causa e das reiteradas e sucessivas prisões preventivas lá
decretadas, tem orientado diversos juízes que passaram a também decretar
prisões a esmo como se regram fossem no processo e em evidente limitação de
competência dos Tribunais Superiores!
É
preciso tomar cuidado para que o magistrado de primeiro grau não se apaixone
pela causa e perca a necessária imparcialidade, deixando de ser magistrado,
para se tornar um estrategista inquisidor. Vale aqui destacar trecho do voto do
Ministro Celso de Mello, no bojo do HC 95518/PR, que consignou que “O interesse
pessoal que o magistrado revela em determinado procedimento persecutório,
adotando medidas que fogem à ortodoxia dos meios que o ordenamento positivo
coloca à disposição do poder público, transformando-se a atividade do
magistrado numa atividade de verdadeira investigação penal. É o magistrado
investigador.”
Referido
acórdão, em parte, restou assim ementado:
2.
Atos abusivos e reiteração de prisões. São inaceitáveis os comportamentos em
que se vislumbra resistência ou inconformismo do magistrado, quando contrariado
por decisão de instância superior. Atua com inequívoco desserviço e desrespeito
ao sistema jurisdicional e ao Estado de Direito o juiz que se irroga de
autoridade ímpar, absolutista, acima da própria Justiça, conduzindo o processo
ao seu livre arbítrio, bradando sua independência funcional. Revelam-se
abusivas as reiterações de prisões desconstituídas por instâncias superiores e
as medidas excessivas tomadas para sua efetivação, principalmente o
monitoramento dos patronos da defesa, sendo passíveis inclusive de sanção
administrativa.
Com
efeito, é evidente a ilegalidade das reiteradas e sucessivas prisões cujo
objetivo é perpetuar a prisão, em clara hipótese de antecipação de pena, e
tornar dificultoso o trabalho da defesa que, ao lograr êxito nos Tribunais
Superiores, é forçada a novamente busca-los, para combater nova prisão que
impede o acautelado de ver-se livre do cárcere.
Esse
cenário releva que o iter processual se torna verdadeira chicana e tortura,
daquele que aguarda, ansioso, a revogação de uma prisão, muitas vezes,
totalmente desfundamentada.
[1]
Constituição da República portuguesa anotada. 3ª ed. Coimbra: Ed. Coimbra,
1993. p. 203.
[2]
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p.
590.
http://www.conjur.com.br/2016-mar-27/ilegalidade-reiteradas-prisoes-preventivas
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