A
partir da segunda quadra do século passado, temos assistido à expansão da
jurisdição constitucional em várias partes do mundo como um desdobramento
institucional de um novo paradigma de Estado de Direito, que, antes de ser
centrado nas leis e nos códigos, baseia-se numa Constituição. Daí a denominação
“Estado constitucional”. Nesse contexto, o fortalecimento das cortes se deu,
sobretudo, pela necessidade de garantir a proteção efetiva dos direitos e
garantias fundamentais, os quais não mais podiam ficar à mercê do jogo de poder
que se estabelece nas arenas políticas. Eis o ethos da função jurisdicional no
Estado constitucional: a tutela dos direitos e garantias fundamentais,
especialmente contra eventuais maiorias políticas.
Por
isso, nessa semana, a comunidade jurídica foi surpreendida pelo STF, justamente
o órgão que, por incumbência da própria “Constituição cidadã”, deveria
resguardar os direitos que ela consagra. As liberdades públicas sofreram um
primeiro e contundente ataque com a decisão que, ignorando a literalidade do
texto constitucional, permitiu o cumprimento provisório da pena a partir de
decisões condenatórias prolatadas por tribunais de segunda instância. Cedeu ao
populismo penal. Desta feita, nossa corte constitucional flexibilizou o
importante direito individual à privacidade ao permitir a quebra do sigilo
bancário por ordem direta da administração pública, sem necessidade de
autorização judicial para tanto.
Discutia-se,
na ocasião, a constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001, cujo artigo 6º
dispõe que: “As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos
estados, do Distrito Federal e dos municípios somente poderão examinar
documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os
referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver
processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais
exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa
competente”. Seu parágrafo único estabelece um dever de sigilo para a
autoridade fazendária nos seguintes termos: “O resultado dos exames, as
informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em
sigilo, observada a legislação tributária”.
Como
premissa do Estado constitucional, é a lei que deve girar em torno dos direitos
fundamentais, e não o contrário. Assim, a inviolabilidade do sigilo de dados,
prevista no artigo 5º, XII, da CF, do que decorre a proteção do sigilo de
informações bancárias, fiscais e telefônicas das pessoas, deve funcionar como o
parâmetro normativo e limite de eventuais intervenções estatais, devendo-se
ressaltar, ainda, que tais prerrogativas constituem um desdobramento do próprio
direito à intimidade e à vida privada (artigo 5º, X, da CF). Como parte de seu
âmbito de proteção, essas cláusulas constitucionais asseguram o direito à
intimidade e à vida privada em múltiplos aspectos (pessoais, familiares e
negociais) e compõem o próprio núcleo dos direitos da personalidade e autonomia
da vontade. Desse modo, o indivíduo tem o direito de manter consigo informações
acerca de sua vida particular e de só compartilhá-las com terceiros mediante seu
próprio consentimento. Em sua dimensão negativa, o direito à privacidade
projeta um dever de obediência tanto para outros particulares (eficácia
horizontal), que não podem ter acesso a informações privadas sem autorização de
seu titular, quanto para o próprio Estado (eficácia vertical), cujos órgãos não
podem se valer de seus poderes para monitorar, ter acesso e/ou utilizar tais
informações, a não ser nas hipóteses constitucionalmente legítimas. A regra,
portanto, é a não intromissão na vida privada das pessoas.
É
certo, também, que nosso sistema constitucional não considera o direito à
privacidade como absoluto, de modo que o sigilo bancário pode sofrer
relativizações. Porém, importa destacar, a invasão na vida privada de alguém
constitui exceção e, por isso mesmo, deve ser compreendida com cuidados. Assim,
a quebra do referido sigilo pode ser decretada, mas não por qualquer ato
estatal, e sim por ordem judicial, devidamente motivada. Apenas ao juiz, então,
compete avaliar e justificar a necessidade da quebra do sigilo bancário.
A
necessidade de autorização judicial afasta a possibilidade de outros órgãos do
Estado terem poderes para quebrar o sigilo bancário do cidadão-contribuinte,
como os tribunais de Contas, a polícia judiciária e o próprio Ministério
Público. Tanto é assim que apenas às comissões parlamentares de inquérito,
porque possuem “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”,
reconheceu-se a competência para a quebra de sigilos sem ordem judicial.
Trata-se de exceção expressamente prevista no texto constitucional (artigo 58,
parágrafo 3º). E mais: exceção que confirma a regra.
Além
disso, não se pode desconsiderar que a necessidade de autorização judicial para
a quebra do sigilo bancário fortalece a proteção desse direito fundamental,
evitando ou mitigando os efeitos de uma indesejada hipertrofia ainda maior do
Estado em relação ao contribuinte. Nas relações tributárias, é bom lembrar, a
administração pública detém muito poder. Cobra tributo elevadíssimos, impõe
sanções políticas, aplica multa confiscatória, restringe a concessão de
certidões de regularidade fiscal, exige garantias e impõe arrolamentos abusivos
aos contribuintes, dentre outras medidas não menos gravosas. A presença da
jurisdição constitucional é fator de equilíbrio a favor do contribuinte.
Por
ocasião da decisão, o ministro Dias Toffoli alegou que, a rigor, referida lei
não autorizava quebra de sigilo pelos órgãos fazendários, o que a tornaria
constitucional. Considerando que, por força da própria lei, defendeu o
ministro, tais órgãos administrativos devem manter o sigilo das informações
fornecidas pelas instituições financeiras, então haveria uma “transferência de
sigilo” (dos bancos para a administração). Entendemos que esse argumento é
meramente retórico e envolve um jogo de palavras, cujo intuito é esconder a
violência institucional praticada em desfavor do cidadão. Ora, o núcleo
essencial do direito à privacidade consiste em dividir informações pessoais
apenas com quem o próprio titular dessas informações desejar. Portanto, decorre
desse direito, por exemplo, o ato voluntário de alguém divulgar nas redes
sociais seus extratos bancários, movimentações financeiras, faturas de cartão
de crédito, aplicações etc. Todavia, o que a LC 105/2001 estabelece é que os órgãos
fazendários terão acesso a dados bancários contra a vontade de seus titulares.
A circunstância de que esses órgãos terão que manter o sigilo das informações
recebidas não apaga o fato de que elas foram obtidas sem ordem judicial e sem
anuência do cidadão-contribuinte. Sendo mais claro, o cidadão não anuiu que o
banco com o qual ele possui conta bancária repassasse suas informações a um
órgão administrativo. E o direito ao sigilo é oponível ao próprio
Estado-administração.
Por
isso, estamos diante de um lamentável episódio em que o STF chancelou a ânsia
estatal em vigiar e punir os indivíduos, sem respeitar suas garantias
constitucionais. Pragmatismos e argumentos consequencialistas não são
fundamentos adequados para relativizar direitos fundamentais onde a CF não os
relativiza. Então, não é de se aceitar que, em nome de uma suposta maior
eficiência administrativa, afaste-se a atuação judicial como condição para a
quebra do sigilo bancário. Ninguém está a defender desvios ou condutas ilícitas
cometidas por maus contribuintes, muito menos sua impunidade. Tampouco se está
sustentando barreiras instransponíveis que pudessem frustrar as pretensões
fiscalizatórias do Estado. Como se disse anteriormente, importantes órgãos como
tribunais de Contas, Ministério Público e polícia judiciária não possuem
legitimidade para quebrar os sigilos das pessoas, e nem por isso se diz que tal
fator obstaculiza o regular desempenho de suas funções constitucionais. O mesmo
vale para o Fisco. Ademais, caso qualquer desses órgãos entenda necessária a
quebra de algum sigilo, basta provocar o Poder Judiciário, que, enquanto
instituição imparcial na relação
“investigador-investigado”, terá condições de bem avaliar a real necessidade da
invasão da privacidade de alguém. E, estando presentes as exigências legais, de
certo autorizará a quebra. Ocorre que, diante da decisão do STF, se por opção
do legislador a proteção da privacidade pode ser flexibilizada a favor dos
órgãos fazendários, não deverá causar maiores surpresas se daqui em diante
forem aprovadas outras leis autorizando os demais órgãos estatais a quebrarem o
sigilo das pessoas. Vê-se, então, que estamos diante da ponta do iceberg para
um completo esvaziamento do direito à privacidade.
Observando
a posição do STF sob outro prisma, qual seja, de seu papel institucional na
proteção da ordem constitucional, a decisão simboliza um grave retrocesso. Caso
a Corte houvesse declarado a inconstitucionalidade do artigo 6º, da LC
105/2001, poder-se-ia levantar questionamentos acerca do caráter
antidemocrático da judicial review e da conhecida “dificuldade
contramajoritária” do tribunal por ter invalidado uma opção política aprovada
pela maioria dos representantes eleitos. Todavia, no âmbito de um Estado
constitucional, as constituições devem funcionar como instrumentos garantistas,
inclusive voltando-se contra a vontade política de uma maioria ocasional. Nesse
paradigma, as decisões majoritárias apenas são legítimas se não agredirem os
direitos fundamentais, sob pena de absolutizar a regra da maioria. A função de
um tribunal como o STF é exatamente dar concretude aos limites que as
Constituições impõe à política.
Portanto,
a lição que o constitucionalismo contemporâneo nos oferta é a de que o dogma
rousseauniano da infalibilidade das leis caiu por terra, e as tiranias
legislativas e majoritárias podem ser tão violentas quanto a tirania dos
governos. Sendo assim, o jurista italiano Mauro Capelletti aponta os dilemas
que a jurisdição constitucional enfrentaria nos novos tempos: a) manter-se nos
estreitos limites da função judicial do século XIX, logo submissão à “vontade
da lei” ou b) elevar-se ao nível dos outros poderes, convertendo-se no
“terceiro gigante”, para controlar o legislador-mastodonte e o
administrador-leviatã. Parece que o STF fez sua escolha.
Glauco
Salomão Leite é advogado e professor de Direito Constitucional da Universidade
Católica de Pernambuco, da Universidade Federal da Paraíba e da Faculdade Damas
de Instrução Cristã. Possui mestrado em Direito Constitucional pela PUC-SP e
doutorado em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. É membro
do grupo Recife de Estudos Constitucionais.
Geilson
Salomão Leite é advogado e professor de Direito Tributário da Universidade
Federal da Paraíba e do Centro Universitário de João Pessoa. Possui doutorado e
mestrado em Direito Tributário pela PUC-SP.
http://www.conjur.com.br/2016-fev-25/supremo-chancelou-ansia-estatal-vigiar-punir-individuos
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