B.G.T.,
tinha uma vida pacata e "normal", "normal" para os padrões
de quem é jovem, negro e mora na periferia de São Paulo e tem que conviver
diariamente com os desmandos do estado. Todos os dias acordava de madrugada
para trabalhar como ajudante de carga e descarga juntamente com seu pai, que
era motorista de caminhão, no maior centro de distribuição de alimentos do
Brasil, Ceagesp - Ceasa.
Tal
qual ocorre com inúmeros jovens brasileiros, um dia dois Policiais foram até
sua residência e o obrigaram a acompanhá-los até a delegacia sob a alegação de
que era suspeito de cometer um crime de roubo em um grande supermercado
localizado em uma cidade na região da grande São Paulo.
Sem
entender muito bem o que estava acontecendo, mas convicto de que não havia
feito nada de errado, chamou sua mãe e ambos acompanharam os policiais até a
delegacia, onde B.G.T. passou por um reconhecimento pessoal e para sua surpresa
foi reconhecido como sendo um dos indivíduos que estava com outros criminosos
no famigerado roubo ao Supermercado X.
Pior,
havia sido reconhecido como sendo aquele que dera um tiro de espingarda calibre
12 nas costas de um dos funcionários do supermercado, que felizmente sobreviveu
e pode ver quem lhe ferira, e ali, naquela delegacia de polícia, firmou e
assinou o reconhecimento pessoal positivo reconhecendo B.G.T. como sendo um dos
roubadores.
Na
oportunidade B.G.T. foi liberado pelo Delegado de Polícia, vez que não havia
motivo flagrancial para sua prisão, mas na mesma semana, de posse de uma ordem
de prisão preventiva assinado por uma respeitável magistrada daquela Comarca,
os Policiais voltaram à sua residência e o levaram preso, sem dó, nem piedade,
tudo nos termos da lei.
B.G.T.
foi denunciado como incurso, por duas vezes, nas sanções do artigo 157, §2º,
incisos I, II e V, c.c artigos 29 e 70, todos do Código Penal, por duas vezes,
porque, segunda a denúncia, no dia 18 de fevereiro de 2012, por volta das 8h,
na estrada de tal, agindo em concurso de agentes e caracterizados pela unidade
de desígnios e identidade de propósitos, conjuntamente com R.S.S. e o
adolescente infrator I.O.A. e mais um indivíduo não identificado, voltados ao
objetivo comum, subtraíram mediante grave ameaça e violência exercida com
emprego de armas de fogo contra M.A.A. e T.M.S., bem como emprego de violência
contra P.L.B., com um tiro de arma calibre 12, da qual resultou lesão corporal,
levaram, inclusive, um telefone celular pertencente a P.L.B., mantendo todos em
seu poder, restringindo suas liberdades.
O
sempre respeitável representante do Ministério Público juntou integralmente o
inquérito policial como sendo a prova absoluta dos acontecimentos. Recebida a
denúncia a família de B.G.T. buscou auxílio deste advogado, que logrou
diligenciar e estudar minuciosamente o Processo Crime ali instaurado. Em
conversa reservada com B.G.T. este negou veementemente sua participação no
crime. Disse que não entendia as razões pelas quais seu nome havia sido
mencionado, tampouco fazia ideia de qual era o tal supermercado.
Para
piorar a situação de B.G.T., nos autos havia sido homologado um acordo de
delação premiada entre Ministério Público estadual e R.S.S., que confirmou a
participação de B.G.T., e garantiu que este era o indivíduo que tinha dado o
tiro no funcionário do supermercado.
Voltei
na unidade prisional e expus o acordo de delação premiada existente nos autos.
Expliquei, inclusive, que a fase de instrução e julgamento no processo de
R.S.S. já tinha terminado e culminado em uma sentença condenatória, cujo teor
dava-lhe uma condenação de pouco mais de 9 anos no regime fechado, mas que em
detrimento da delação premiada este havia recebido uma sentença condenatória
definitiva de 6 anos, 9 meses e 20 dias e que teríamos uma certa dificuldade em
convencer a juíza de seu caso que eras inocente.
B.G.T.
continuava afirmando que não havia cometido crime algum e que no dia dos
acontecimentos estava trabalhando. Confesso que por um instante duvidei de
B.G.T., mas como não me cabia acusar ou julgar, me fortaleci no espírito da
advocacia e acreditei em cada palavra dita. Colocamos a equipe para trabalhar e
diligenciamos no Ceasa para conversar com algumas pessoas para tentar encontrar
alguém que tivesse eventualmente visto B.G.T. trabalhando no dia dos fatos.
O
Ceasa é realmente muito grande e não encontramos ninguém a tempo para indicar
no rol de testemunhas, mas, mesmo com a audiência marcada, continuamos
procurando com as informações que B.G.T. nos passava. Enquanto B.G.T. estava
preso, sem poder ajudar seu pai, que trabalhava como motorista de caminhão no
Ceasa, seu irmão, com apenas 17 anos de idade, o substituiu nos trabalhos, e
todos os dias, na madrugada fria de São Paulo, estava nas estradas ajudando seu
pai, no labor e no sustento da família.
No
entanto, o mundo não para quando o filho chora e a mãe não vê. Muitas vezes o
advogado criminalista, mesmo sofrendo todos os preconceitos sociais, é o único
alicerce e pilar de esperança de toda uma família. E neste caso, não fomos
apenas o alicerce, mas também o porta voz de uma triste notícia. Fui ao
presídio informar B.G.T. que na madrugada anterior seu pai havia sofrido um
grave acidente de caminhão em um determinado trecho do Rodoanel (SP) e estava
em coma na UTI de um hospital público da região.
B.G.T.
entrou em desespero, pânico, indignado por estar preso e nada poder fazer. Aos
berros gritava que era inocente e que não merecia tanto sofrimento. Que não
acreditava que seu pai, agora em coma, corria o risco de não ver sua neta
crescer, o filho recém-nascido de seu irmão que o substituíra no trabalho.
Engoli
a seco aquela mistura de ódio, aquele sofrimento e revolta. Me questionava
incansavelmente como uma tragédia como essa poderia ser encarada pelo estado.
Acreditava na inocência de B.G.T., mas me sentia absolutamente impotente
naquele instante. Ainda assim, como o ofício falava mais alto, respirei fundo e
prossegui com a notícia... informei a B.G.T. que além de seu pai estar em coma
sem saber como ele reagiria aos ferimentos, seu irmão, seu único irmão, aquele
que resolveu ajudar o pai enquanto B.G.T. estava preso provisoriamente, o irmão
que dois dias antes do acidente tinha sido pai, não resistiu aos ferimentos e
morreu no local.
Não
há como descrever o que se passou naquele parlatório. Seria necessário um sol
inteiro para clarear todo aquele sofrimento e tristeza que imperou naquele
ambiente. B.G.T. pediu licença, chamou um guarda, e sem dizer uma única
palavra, mas com lágrimas no rosto, retirou-se para as entranhas do calabouço
que é a prisão no Brasil.
Parti
arrasado, com o coração aos pedaços, parei em um lugar qualquer para refletir
sobre tudo o que acabava de acontecer. Não consegui achar respostas às
incontáveis perguntas que me vieram à mente, mas estava convicto de que teria
aquele caso como uma questão de honra. Sabia que poderia contar com toda equipe
do escritório para trabalhar em tudo o que fosse possível e assim o fizemos.
Impetração
de Habeas Corpus feita no Tribunal Paulista, como já não era surpresa nesse
importante tribunal, liminar e mérito negados. Habeas corpus substitutivo e
Recurso Ordinário Constitucional ao STJ, o primeiro teve o pedido liminar
negado e o outro sequer teve tempo de subir, face ao que ocorreu adiante.
Prosseguimos
com os estudos e diligências na busca da verdade real. A audiência foi marcada
para quase sete meses após o dia da prisão de B.G.T. Quase na véspera da tão
esperada audiência, conhecemos duas pessoas que confirmaram terem visto B.G.T.
nas dependências do Ceasa no dia e hora dos fatos, o que comprovava
definitivamente que ele não teria condições de cometer aquele crime a que era
acusado.
Como
não havia mais tempo para incluir testemunhas no processo, pedimos que fizessem
declarações de próprio punho daquilo que viram e ouviram com a intenção de mostrar
para a magistrada no afã de que esta os chamassem, se assim entendesse cabível,
como testemunha do juízo.
No
entanto, no dia da audiência, o inesperado (para juíza e promotor) aconteceu. E
para demonstrar o ocorrido, pedimos venia para transcrever parte da sentença
que se seguiu após o término da audiência.
"Mantido
o recebimento da denúncia (fls. 161), durante a instrução criminal foram
ouvidas as vítimas e uma testemunha comum. Em seguida, foi colhido o
interrogatório do acusado. Em memoriais, as partes requereram a improcedência
da ação. A ação penal é improcedente. As materialidades dos delitos de roubo
retratados nos autos restaram comprovadas pelo boletim de ocorrência (fls.
03/08), bem como pela prova oral colhida. A participação do acusado nos
delitos, no entanto, não restou evidenciada de forma segura, senão vejamos.
Conforme consta dos autos, cerca de quatro a cinco indivíduos armados teriam
ingressado no Supermercado X, antes do horário de abertura, rendido os
funcionários e subtraído celulares e dinheiro do local. Durante a ação, um dos
agentes teria efetuado disparo de arma de fogo, que teria atingido as costas do
funcionário P. Antes de deixarem o local, a polícia chegou. Três indivíduos
teriam conseguido fugir e dois, sendo um adolescente, foram detidos no local. O
indivíduo R.S.S., maior de idade, preso no local, já foi processado em autos
apartados pelos fatos ora apurados[...] B.G.T. foi trazido à Delegacia e
reconhecido pela vítima M. Por conta deste reconhecimento, B.G.T. foi denunciado
e decretada sua preventiva. O acusado, ouvido na fase policial, permaneceu em
silêncio (fls. 15). Em juízo, negou a prática delitiva, não sabendo dizer o
motivo de estar sendo acusado. As vítimas T.M.S., M.A.A. e P.L.B., ouvidos neta
data, relataram o roubo do qual foram vítimas. Ao visualizaram o réu, nenhum
teve condições de reconhecer o acusado como sendo um dos autores do delito.
Questionado, M.A.A. confirmou ter realizado o reconhecimento de um indivíduo na
fase policial, porém esclareceu que, na ocasião, ao visualizar os três
indivíduos que lhe foram mostrados, não teve condições de reconhecer nenhum
deles com segurança. Disse que apenas reconheceu um dos indivíduos, porque os
policiais falaram que o rapaz teria confessado o crime. O policial civil
V.M.G., por fim, afirmou que recebeu denúncia anônima indicando o endereço de
um indivíduo de nome B.G.T., que estaria envolvido no roubo ocorrido no
supermercado X. Levantado o boletim de ocorrência, intimaram B.G.T. a
comparecer à delegacia, oportunidade em que ele foi reconhecido pela vítima
M.A.A.. Disse que M.A.A., na ocasião, teve certeza ao fazer o reconhecimento.
Afirmou que além do reconhecimento realizado pela vítima, durante as
investigações não foi colhido nenhum outro elemento de prova que apontasse o
réu como autor do crime. Pois bem, como se afere dos autos, o único indicativo
que apontava o acusado como autor do crime seria o reconhecimento extrajudicial
realizado pela vítima M.A.A., o qual não se confirmou em juízo, eis que M.A.A.
não reconheceu o acusado, bem como esclareceu que quando de seu reconhecimento
extrajudicial, não teve certeza, acabando por reconhecer por ter sido
influenciado pelos policiais, que disseram que o réu teria confessado o crime.
Assim, forçoso reconhecer que a prova não é segura a embasar um decreto
condenatório, o que impôs a improcedência da ação. Ante exposto, julgo
improcedente a ação penal para o fim de absolver B.G.T., qualificado nos autos
da imputação que lhe move a Justiça Pública por infração, duas vezes, ao artigo
157, §2º, incisos I, II e V, c.c artigos 29 e 70, todos do Código Penal, nos
termos do artigo 386, inciso V, do Código de Processo Penal. Poderá apelar em
liberdade. Expeça-se alvará de soltura clausulado. Custas na forma da lei.
P.R.I.C. Guarulhos, 23 de outubro de 2014." (negritamos e reduzimos)
A
Juíza passou um sermão na vítima que havia assinado um reconhecimento positivo
na delegacia, que, por sua vez, alegou que diante de tantos policiais na
delegacia não teve coragem de contrariá-los. Ao policial ouvido como
testemunha, nenhuma palavra, nenhum sermão, nenhuma reprimenda. O promotor
presente na sala de audiência estava atônito com o que acabara de ver e ouvir.
B.G.T.
não se conteve em lágrimas. Todos aqueles meses preso inocentemente foram
depurados em lágrimas e soluços. A Juíza tentou se explicar dizendo a B.G.T.
que ele só estava preso porque a vítima o havia reconhecido, momento em que me
intrometi no diálogo entre juíza e réu, agora declarado inocente, para
educadamente afirmar à respeitável magistrada que aquela afirmação não era
verdadeira, vez que a vítima não tinha competência para decretar ordem de
prisão preventiva e aquela havia sido decretada por ela. Que as motivações
expostas no art. 312, do CPP, não continham dentre os requisitos,
reconhecimento pessoal positivo na fase extrajudicial.
Após
B.G.T. ser retirado da sala contei à nobre juíza a história de B.G.T. e que ele
sequer pode acompanhar o enterro de seu irmão, já que o CDP (Centro de Detenção
Provisória) e a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) alegaram não
ser possível levá-lo ao velório por falta de homens para a escolta.
Contei
à juíza que o processo crime do delator premiado, aquele que recebeu uma
diminuição de pena por ter "colaborado" com a justiça havia
transitado em julgado para a acusação, o que significa dizer que os benefícios
alcançados em detrimento de sua "colaboração" não poderiam mais serem
questionados.
Na
sala de audiência, até o término da lavratura da ata de audiência, o promotor,
homem do nosso máximo respeito, ficou mudo, sem dizer uma única palavra. A
juíza aparentava estar triste e ao mesmo tempo sem entender tudo o que havia
acontecido. Disse que as declarações que havíamos levado e mostrado antes do
início da audiência não seriam necessárias, já que não tinha qualquer dúvida
acerca da inocência de B.G.T.
Saí
da sala de audiência leve, com a certeza que valeu a pena acreditar em B.G.T.
Que apesar de todo o sofrimento que se passou naqueles meses, nosso esforço,
nosso trabalho e nossas lágrimas valeram à pena. Saí da sala convicto de que a
Polícia busca dar legalidade aos seus atos, especialmente quando ilegais; as
testemunhas e vítimas podem ser influenciadas pelos agentes públicos; os
promotores só acreditam no que está no papel e, se possível, naquilo que possa
garantir uma vitória judicial; os juízes (nem todos), assim como os promotores,
se convencem que a prisão é a melhor solução, mesmo antes do trânsito em
julgado.
E,
ainda, quando se deparam com uma situação como a descrita, buscam acobertar-se
em alguém que possa eventualmente ter errado para justificar suas decisões.
B.G.T. pode finalmente despedir-se de seu irmão no cemitério em que este foi
enterrado. Pode abraçar e beijar seu sobrinho; abraçar e beijar sua mulher e
filha. Seu pai conseguiu sair da UTI do hospital e se recuperar, mas ainda não
voltou ao labor.
B.G.T.
acorda todos os dias às 3h da manhã para agora ser o motorista do caminhão que
seu pai dirigia. Os policiais envolvidos no reconhecimento pessoal positivo...
bem, estes continuam sendo policiais envolvidos em outros processos; as
testemunhas e as vítimas, estas provavelmente vivem suas vidas como se B.G.T.
jamais tivesse passado por elas, talvez sem nunca descobrir o que realmente
aconteceu na vida de B.G.T.
Eu?
Continuo aqui, cada vez mais convicto que o Estado tem muita força e condições
para destruir vidas, famílias inteiras. Continuo acreditando e pregando que o
instituto da delação premiada existe e ganhará cada vez mais forças, mas não é
a salvação do Brasil, pelo contrário, foi uma desgraça na vida de B.G.T. e pode
ser a desgraça dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Fizemos
questão de abreviar todos os nomes, muito embora o processo não tenha tramitado
em segredo de justiça, ops, Justiça? Ah, esquece!
http://www.conjur.com.br/2016-fev-20/welington-arruda-prisao-morte-sao-resultados-delacao-premiada
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