Em
artigo publicado hoje, jurista adverte: “o sistema penal é historicamente um
lugar de expansão do fascismo”.
Nilo
Batista
A
centralidade que a questão criminal assumiu, visível nas altas taxas de
encarceramento ou na criminalização do cotidiano privado e da vida pública,
responde às transformações econômicas das últimas décadas. Interessa-nos um
aspecto dessa centralidade: a espetacularização do processo penal e os sérios
danos que causa a direitos fundamentais e ao estado de direito.
A
espetacularização do processo penal não é novidade. Na Inquisição, a colheita
de provas e o julgamento eram sigilosos. Falsas delações e torturas são
eficientes na obscuridade; a festa era a execução da pena de morte. Com a
adoção da pena de prisão, a execução numa cela tornou-se uma rotina sem apelo
jornalístico. O espetáculo deslocou-se para a investigação e o julgamento.
Basta
ligar a TV à tarde: deploráveis reality shows policiais, nos quais suspeitos
são exibidos e achincalhados por âncoras “policizados”. Diz a Constituição
inutilmente que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e
moral”, garantia repetida pelo Código Penal e pela Lei de Execução Penal. Mas é
no noticiário “sério” sobre inquéritos e ações penais que reside um grave
problema, opondo a liberdade de comunicação à presunção de inocência e ao
direito ao julgamento justo. A liberdade de imprensa geralmente prevalece sobre
o direito à privacidade. Contudo, quando o confronto se dá com a presunção de
inocência e o direito ao julgamento justo, a solução é distinta, como se
constata em países democráticos.
A
Corte Suprema dos EUA manifestou desconforto por ter identificado “julgamento
pela imprensa” e anulou condenações. Numa delas, registrou que “o julgamento
não passou de uma cerimônia legal para averbar um veredicto já ditado pela
imprensa e pela opinião pública que ela gerou”. Alertou que o noticiário
intenso sobre um caso judicial pode tornar nula a sentença e que a publicidade
dos julgamentos constitui uma garantia constitucional do acusado e não um
direito do público.
Na
Europa, o assunto preocupa legisladores e tribunais. França e Áustria criminalizaram
a publicação de comentários sobre prováveis resultados do processo ou sobre o
valor das provas. Em Portugal, a publicação de conversas interceptadas em
investigação é criminalizada, salvo se, não havendo sigilo de Justiça, os
intervenientes consentirem na divulgação: o sigilo de Justiça vincula todos
aqueles que o acessarem a qualquer título. A Corte Europeia de Direitos Humanos
já decidiu que a condenação de jornalistas por publicidade opressiva não viola
a liberdade de comunicação.
Não
será por meio da criminalização da publicidade opressiva que se poderá reverter
o lastimável quadro que vivemos, onde relações entre agentes do sistema penal e
alguns jornalistas produzem vazamentos escandalosos, editados e
descontextualizados, com capacidade de criar opiniões tão arraigadas que
substituem a garantia constitucional por autêntica “presunção de culpa” e
tornam impossível um julgamento justo.
Entre
nós, existem casos em que todo o processo se desenvolve na mídia. Nesse
cenário, pelo menos deveria ser exigido dos meios de comunicação aquilo que é
exigido dos tribunais e das repartições públicas: obedecer ao contraditório.
Hoje, após a longa veiculação da versão acusatória, segue-se breve menção a um
comentário do acusado ou de seu defensor, que frequentemente desconhece a prova
já divulgada para milhões de telespectadores. Se vamos persistir neste caminho
perigoso — afinal, o sistema penal é historicamente um lugar de expansão do
fascismo — pelo menos o contraditório obedecido pelos tribunais deveria ocorrer
na mídia. Se a autoridade policial ou o Ministério Público divulgar sua
acusação por três minutos, o acusado ou seu defensor deveria desfrutar do mesmo
tempo para falar o que quisesse em sua defesa. Já que o processo se desenrola
na mídia, que haja pelo menos paridade de armas. A prática atual é abertamente
antidemocrática.
Nilo
Batista é professor de Direito Penal da UFRJ e da Uerj
http://tijolaco.com.br/blog/33786-2/
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