"Ainda falta muito,
todavia, para a interpretação e a aplicação da lei reconhecer a sua própria insuficiência
para solucionar problemas dessa gravidade social e não preferir supri-la com
afirmação de pura autoridade, como acontece na maioria das execuções de decisões liminares em ações possessórias carregadas de
violência. Ou seja, tanto a
lei, como a sentença e o ato administrativo só chegam ali para punir os efeitos
da injustiça social, sem jamais conseguirem remover as suas causas",
escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande
do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis
o artigo.
Tem qualquer sentido
fazer-se uma pergunta dessas? Não deveria fazer-se um questionamento invertido,
de como a gente da favela se comporta em obediência às leis, às sentenças e aos
atos normativos das administrações públicas? – Mesmo nos limites de uma
resumida opinião sobre assunto que envolve a vida e a casa de milhões de
pessoas pobres, no Brasil e mundo, aqui se pretende sugerir que essa realidade também “julga” leis,
sentenças e atos administrativos.
Excluir de cogitação leis e
direitos relativos a esses espaços de terra, não se deixar impressionar por
contradições visíveis presentes na intepretação e aplicação da lei sobre eles e
os sujeitos de direitos ali abrigados, servem de exemplo da possibilidade de a
gente pobre favelada “julgar” a lei, a administração pública e o Poder
Judiciário, quando, em vez de sujeito
de direito, é vítima de cada uma dessas autoridades.
Antes do mais, as favelas comprovam uma ocupação de espaço de terra por multidão de gente
pobre sem liberdade de escolha por falta de capacidade econômica para pagar
outro onde morar, seja por compra, aluguel, permuta ou outra espécie de
quitação de valor. Muito raramente uma necessidade ao nível da
sobrevivência como essa é levada em consideração nos juízos de autoridade sobre
conflitos relacionados com a terra, embora
a erradicação da pobreza e o direito de moradia figurem, a primeira como um dos
objetivos fundamentais da República (art. 3º, inciso III) e o segundo, como um dos direitos humanos fundamentais
(artigo 6º), ambos da Constituição
Federal. Tanto essa como o Estatuto
da Cidade, por outro lado, exigem
bastante da propriedade privada a obrigação de ela não servir de
barreira contrária a tal direito pelo descumprimento da sua função social.
Em segundo lugar, existem
contradições típicas de intepretação jurídica do tratamento dispensado a esse
espaço físico favela pelo Poder Público, aí incluído o Judiciário, já na sua
identificação como “clandestino”, em assimilado e até culturalmente inconsciente
preconceito, característicos de toda a distância injustificada da realidade,
que esse Poder conserva.
Clandestina,
como se sabe, é aquela situação de
uma determinada coisa como escondida, fora da visão pública e, por via lógica
de consequência, infringente de lei. A realidade da favela, porém – até
pela feiura, amontoado desordenado de barracos, casas de papelão e lata,
“gatos” utilizados para servir-se de luz, água ligada de qualquer jeito, vias
estreitas de acesso às moradias, sarjetas fétidas e lixo, além da companhia de
ratos e insetos – de clandestina não tem nada.
Tudo quanto há de injustiça
numa realidade pobre como essa está muito bem estudado num livro recente de Raquel Rolnik, “A guerra dos lugares. A
colonização da terra e da moradia na era das finanças” (São Paulo: 2015,
Boitempo Editorial). Ela é apresentada por Flavio Villaça como professora da
faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, especializada em política
habitacional, planejamento e gestão da terra urbana. Foi relatora especial para
o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de 2008
até maio de 2014, diretora de planejamento da cidade de São Paulo (1989-1992),
Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades do Brasil
(2003-2007) e Coordenadora de Urbanismo do Instituto Polis (1997-2002).
Sob um currículo dessa
expressão, são de suas práticas e estudos algumas observações quase sempre
ignoradas pelas leis, pelos atos administrativos e pelas sentenças. Sobre a
causa do cada vez maior estreitamento do espaço de terra urbana para famílias
pobres, sua advertência é muito clara:
“Em tempos de capitalismo
financeirizado, em que a extração de renda sobrepõe-se ao mais-valor do capital
produtivo, terras urbanas e rurais tonaram-se ativos altamente disputados. Isso
tem produzido consequências dramáticas, especialmente – mas não exclusivamente
– nas economias emergentes. As dinâmicas que acompanham a liberalização dos
mercados de terras estão aumentando a pressão do mercado sobre os territórios
controlados por comunidades de baixa renda. Isso ocorre num contexto global em
que a terra urbanizada não está
disponível para os grupos mais pobres. Comunidades ficam, então, sob a constante ameaça de espoliação de
seus ativos territoriais.” {...} “As políticas de planejamento,
administração e gestão da terra – inclusive das terras públicas – têm enorme
impacto na construção da matriz segurança/insegurança. No entanto, assim como
nas políticas habitacionais, a
propriedade privada individual ganhou hegemonia sobre todas as outras formas de
reforma e administração fundiária no mundo.”
Além de demonstrar como essa
estratégia não está dando resultado, ela agrava um “pluralismo de conflitos”, mantendo o povo pobre favelado
numa paradoxal “transitoriedade
permanente”, na precisa observação da autora. Essa é a razão de ela
reclamar com sobradas razões:
“Ao tratar dos assentamentos populares das cidades ao
redor do mundo, a categoria “ilegal” não deve – e não pode – ser
absolutizada. Em vários casos, a maioria dos habitantes vivem em sistemas de
posse que podem ser considerados como paralegais, semilegais ou quase legais,
tolerados ou legitimados por leis costumeiras ou pelo simples uso ou tradição,
reconhecidos ou simplesmente ignorados pelas autoridades.”
Não se pode negar a
existência crescente, particularmente em alguns tribunais do país e algumas
administrações públicas, de colocarem a questão toda das favelas, dos cortiços,
dos loteamentos considerados “irregulares” nesse outro patamar aconselhado pela
Raquel.
Ainda falta muito, todavia,
para a interpretação e a aplicação da lei reconhecer a sua própria
insuficiência para solucionar problemas dessa gravidade social e não preferir
supri-la com afirmação de pura autoridade, como acontece na maioria das
execuções de decisões liminares em ações possessórias carregadas de violência.
Ou seja, tanto a lei, como a sentença e o ato administrativo só chegam ali para
punir os efeitos da injustiça social, sem jamais conseguirem remover as suas
causas.
Quantos juristas ficarão
escandalizados com posses de terra identificadas como “paralegais, semilegais
ou quase legais”. É por não ter coragem e ousadia, como essas da Raquel, que a
tradição doutrinária do passado, ainda vigente na intepretação e aplicação das
leis sobre posse, continua ignorando existir, ao lado da classificação
civilista desse tipo de sujeição de coisas, (dos tipos posse objetiva,
subjetiva, justa, injusta, de boa ou de má fé, nova ou velha...) um outro tipo
de posse, uma posse necessária, material, concreta, indispensável à vida, como
a exercida por pessoas sem outro teto, numa favela, ou sem terra num
acampamento rural.
A leitura dessa obra da
Raquel, assim, faria muito bem a legisladoras/es, autoridades da administração
pública e juízas/es, se não pelo dito aqui, pelo testemunho de David Harvey
sobre ela, registrado na contracapa do livro:
“Uma denúncia devastadora da incapacidade dos nossos sistemas
político e econômico atuais de oferecer abrigo decente em condições de vida
dignas para a maioria dos cidadãos do planeta. Como relatora especial
para o Direito à Moradia Adequada da ONU, Raquel Rolnik adquiriu um cabedal
incrível de experiência global relativa a questões de moradia, ora
materializado neste livro. É uma obra fantástica, que articula e entrelaça de
forma admirável o debate teórico e um rol impressionante de testemunhos
pessoais colhidos em primeira mão ao redor do mundo.”
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/550540-o-que-as-favelas-revelam-sobre-leis-juizases-e-administracoes-publicas
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