A
história do Direito Penal foi, na grande maioria das vezes, marcada pelas
indagações acerca dos sentidos, funções e limites da sanção criminal. Longe de
visar a uma discussão isolada acerca das inúmeras teorias da pena desenvolvidas
ao longo dos anos, o presente artigo pretende discutir as formas mediante as
quais o ordenamento jurídico brasileiro incorpora normativamente tais teorias e
como tal “adesão” deve ser analisada sob a ótica dos princípios constitucionais
de proteção à pessoa e dos parâmetros de racionalidade aduzidos por Eugenio
Raúl Zaffaroni.
De
início, portanto, a discussão estará centrada na identificação de uma suposta
complementação “deôntica” – em face da própria Constituição – produzida pelo
Pacto de São José da Costa Rica, o qual prevê, em seu artigo 5.6, a
ressocialização como função primordial das penas privativas de liberdade. Na
sequência, tal conjectural “legitimidade” será confrontada pelos referidos
critérios de racionalidade propostos por Zaffaroni. Por fim, mediante uma leitura
conforme a Constituição do Pacto de São José da Costa Rica, propugnar-se-á uma
solução normativa para a questão concernente à incorporação, pelas normas
brasileiras, das funções da pena.
Em
busca de uma orientação telológico-normativa para a pena de prisão a partir do
Pacto de São José da Costa Rica
A
disposição genérica trazida no artigo 59 tem sido encarada pela doutrina
majoritária como uma adesão do Código Penal às teorias unificadoras aditivas no
tocante às funções da pena. Tal disposição, no entanto, deve ser interpretada
em coerência com as normas superiores. Se, por um lado, a Constituição não
dispõe teleologicamente sobre a punição, resultando em um “déficit deôntico” a
ser integralizado hermeneuticamente, por outro, a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que atualmente é vinculante
para os Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual o
Brasil faz parte, indica, em seu artigo 5.6, que a reforma e a readaptação dos
condenados, como finalidade essencial das penas privativas de liberdade, são
garantias da segurança cidadã e direitos das pessoas privadas de liberdade.
Pode-se
seguramente admitir, pois, que o disposto no item 5.6 do Pacto de São José da
Costa Rica, norma supralegal que é, prevalece sobre o artigo 59 do Código Penal
brasileiro. O tema concernente à função primordial da pena de prisão deve ter
como balizamento normativo, portanto, a norma convencional.
Tal
conclusão implica, em um primeiro momento, uma implícita e importante
deslegitimação normativa de todas as demais teorias ou funções da pena que não
guardem estreita relação com a prevenção especial positiva (tais como as
assertivas de caráter preventivo geral e especial negativo).
O
projeto ressocializador atende a um parâmetro de racionalidade?
A
mera previsão de tal projeto ressocializador pela norma convencional, no
entanto, não tem o condão de, pura e simplesmente, extrair daí legitimidade
absoluta. Ressalvando as especificidades do estudo desenvolvido por Juarez
Tavares, vale reconhecer que a legalidade não pode ser encarada, em termos de
punição, como mera presunção de evidência, senão deve ser confrontada por
outros recursos desenvolvidos pela doutrina, tais como a potencialidade de
aferição empírica da lesão a bem jurídico, a clareza e a taxatividade dos
enunciados, os princípios de humanidade, culpabilidade, presunção de inocência,
etc.
Se,
portanto, “em um Estado Democrático de Direito [...], a incriminação não pode
ser enunciada como evidente apenas pela circunstância de que seja legalizada”,
não pode, por analogia, uma disposição abrangente como aquela prevista no
artigo 5.6 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – a qual constitui
orientação genérica para o desempenho das agências punitivas – ser apreendida
de maneira peremptória.
Por
isso, “é preciso ter em conta que toda e qualquer proibição esteja lastreada em
fundamentos empíricos”, motivo pelo qual a legitimação deôntica da prevenção
especial positiva pelo Pacto de São José da Costa Rica há de ser
necessariamente confrontada por investigações ônticas ou empíricas que, segundo
a proposta de Eugenio Raúl Zaffaroni, verifiquem o nível de racionalidade da
atuação do Sistema de Justiça Criminal (a partir de que, aí sim, é possível
falar em legitimidade).
Para
este autor, a racionalidade significa, em suma, a coerência interna do discurso
jurídico-penal e o seu valor de verdade quanto à nova operatividade social. Tal
“verdade social”, por sua vez, deve ser definida segundo dois níveis, isto é,
(i) um abstrato, “valorizado em função da experiência social, de acordo com o
qual a planificação criminalizante pode ser considerada como o meio adequado
para a obtenção dos fins propostos”; e (ii) um concreto, o qual “deve exigir
que os grupos humanos que integram o sistema penal operem sobre a realidade de
acordo com as pautas planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico-penal”.
A legitimidade do saber penal, em Zaffaroni, assume, pois, um valor empírico
forte, isto é, trata do grau de realização – no mundo vital – dos propósitos
manifestos da pena e do controle penal.
Seguindo
tal orientação, portanto, esta investigação deverá verificar a legitimidade do
sistema penal a partir da eficácia empírica de seu discurso manifesto, isto é,
da previsão – pelo Pacto de São José da Costa Rica – da prevenção especial
positiva como função primordial das penas privativas de liberdade.
A
saber, a teorias preventivas especiais – de matriz positivista (cujo principal
representante é Enrico Ferri) – atribuem à pena “a função de reparar a
inferioridade perigosa da pessoa para os mesmos fins, diante dos mesmos
conflitos, e na medida necessária para a ressocialização, repersonalização,
reeducação, reinserção, etc. (o chamado conjunto de ideologias re)” . Em outras
palavras, trata-se da “correção (ou ressocialização) do condenado, realizada
pelo trabalho de psicólogos, sociólogos, assistentes sociais e outros
funcionários da ortopedia moral do estabelecimento penitenciário”.
Seguindo
os parâmetros de racionalidade aduzidos por Zaffaroni, portanto, a prevenção
especial positiva deve ser valorada em função de uma (i) análise preliminar
entre meios e fins; é dizer, o cárcere é meio idôneo à ressocialização ou
reeducação do condenado? Tal questionamento pode ser respondido a partir de
duas perspectivas diversas.
No
primeiro caso, conforme destacam Rusche e Kirtchheimer, a manutenção da
disciplina prisional “não tem qualquer valor na recuperação do preso, uma vez
que os padrões requeridos ao prisioneiro são aqueles da submissão às formas
externas de disciplina carcerária” e, portanto, não se confundem com os padrões
de convivência social.
Com
efeito, a submissão à disciplina carcerária revela tão somente uma adequação à
rotina prisional. A obediência ao plexo de normas da execução penal, assim, não
pode ser imediatamente interpretada como evidência da “ressocialização” do
interno, assim como a desobediência, em contrapartida, não é sintomática da
falta de reabilitação.
Ainda
mais, como seria possível definir com precisão os limites entre a aceitação das
regras de comportamento social impostas pelo cárcere e uma inconstitucional
exigência de ajuste da personalidade e da concepção do mundo àquelas que lhe
são ofertadas na prisão? Se o Estado democrático se funda na proteção da
dignidade humana e na liberdade, esta que representa não apenas a liberdade
ambulatória, não é exigível de ninguém que acolha as visões de mundo
dominantes. As teorias da prevenção especial positiva não podem servir,
portanto, à “função de reparar a inferioridade perigosa da pessoa para os mesmos
fins, diante dos mesmos conflitos”.
No
segundo caso, tendo em vista as péssimas condições de encarceramento no Brasil,
não é precipitado afirmar que o sistema prisional brasileiro não apresenta as
condições mínimas para a realização do projeto técnico-corretivo de
ressocialização, reeducação ou reinserção social do sentenciado. Nessa esteira,
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os problemas
apresentados no “Informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de
libertad en las Américas” revelam a existência de sérias deficiências
estruturais nos estabelecimentos prisionais brasileiros – tais como
superlotação, higiene, iluminação, aeração, alimentação, assistência médica,
segurança –, que violam gravemente os direitos humanos e impedem que as penas
privativas de liberdade cumpram com a finalidade essencial que estabelece o
Pacto de São José da Costa Rica.
Dessa
forma, não merece censura afirmar que a pena de prisão – tal como configurada
no contexto nacional – é inadequada, no que tange à análise de meios e fins, à
realização do projeto de ressocialização ou reeducação do condenado. O discurso
jurídico-penal de prevenção especial positiva, por conseguinte, segundo a
proposta de Zaffaroni, é falso quanto ao nível abstrato de verdade social.
(ii)
Quanto ao nível concreto, ou seja, “a adequação operativa mínima conforme
planificação” , a eficácia empírica do projeto de ressocialização deve ser
avaliada a partir do dado de reincidência no sistema carcerário nacional. Ora,
a adoção de quaisquer outras perspectivas – tais como a aderência a certo
comportamento moral – não é facilmente aferível e viola o propósito primordial
do discurso preventivo especial, qual seja, a “correção” do condenado para a
prática posterior de delitos.
Ocorre
que a inexistência de um estudo nacional sistematizado impossibilita que se
extraiam conclusões mais ou menos seguras sobre o tema. Por ora, só se pode
afirmar, ainda de forma meramente conjectural, que o sistema carcerário é
ineficaz quanto ao seu objetivo ressocializador manifesto e, levando em conta
as contribuições da chamada criminologia crítica, apresenta uma atuação
deformadora e estigmatizante sobre o condenado.
Dessa
forma, é possível dizer que o encarceramento no Brasil representa uma não-realização
social da programação discursivo-preventiva. Seguindo a linha de raciocínio de
Zaffaroni, portanto, diz-se, do ponto de vista empírico, um déficit de
legitimidade.
Consequentemente,
muito embora se fale de uma autorização normativa do projeto corretivo do
cárcere, as análises perfilhadas acima evidenciam, do ponto de vista empírico,
uma não realização da prevenção especial positiva, bem como refletem a eficácia
invertida de tal projeto. Assim, o disposto no artigo 5.6 do Pacto de São José
da Costa Rica encontra limite no déficit empírico da teleologia
ressocializadora, o que, finalmente, é sintomático da ilegitimidade do
discurso-jurídico penal manifesto.
Uma
leitura conforme a Constituição do item 5.6 do Pacto de São José da Costa Rica
Valendo-se
do recurso da interpretação conforme a Constituição – isto é, a escolha de um
sentido que torne constitucionais normas infraconstitucionais dotadas de
inúmeros significados – pode-se afirmar, portanto, que a norma convencional em
estudo deve ser compreendida como uma desautorização (para além das teorias
preventivas especiais negativas e gerais positivas e negativas) da própria
teleologia ressocializadora.
Isso
porque os princípios de proteção à pessoa, bem como as garantias
constitucionais de não discriminação e os limites normativos e doutrinários à
legalidade resultam, conjuntamente, na assunção de um teor negativo para a pena
criminal, tal como propõe E. Raúl Zaffaroni. Em outras palavras, trata-se de
compreender a pena criminal como um exercício de poder, uma “coerção que priva
de direitos e inflige uma dor (pena) sem buscar seja um fim reparador seja a
neutralização de um dano em curso ou um perigo iminente”.
De
outra forma, a atuação das agências punitivas, em um Estado Democrático de
Direito, deve pautar-se na estrita contenção do poder de punir sem, por isso,
legitimá-lo mediante a falsa assunção de funções manifestas para a pena.
Conclusões
Tal
a exposição, procede-se a algumas conclusões:
Embora
a Constituição não disponha, sob o aspecto teleológico, acerca da pena
criminal, o Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 5.6, afirma que a
penas privativas de liberdade devem ter como função primordial a ressocialização
dos internos. Em um primeiro momento, portanto, pode-se assumir que o “déficit
deôntico” decorrente do silêncio constitucional está supostamente sanado.
A
necessidade de confrontação empírica dos enunciados normativos, no entanto,
exige que sua legitimidade esteja condicionada – na linguagem de Zaffaroni –
também a uma análise de racionalidade.
A
confrontação do projeto ressocializador a uma análise de adequação entre meios
e fins, bem como a sua plena realização segundo a nova operatividade social
demonstram, de forma geral, que a prevenção especial positiva está eivada de
ilegitimidade.
Uma
análise conforme à Constituição do artigo 5.6 do Pacto de São de José da Costa
Rica, nos aduzidos termos, pode levar, para além de uma deslegitimação das demais
teorias da pena, à ruína discursiva da prevenção especial positiva, bem como à
assunção de um teor simplesmente negativo à pena de prisão.
1.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Conceito Editorial:
Florianópolis, 2012, p. 429.
2.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Ob. cit., p. 8. Assim: “Artículo
5. Derecho a la Integridad Personal
[...] 6. Las penas privativas de la libertad tendrán como finalidad esencial la
reforma y la readaptación social de los condenados.”
3.
TAVARES, Juarez. Os objetos simbólicos da proibição: o que se desvenda a partir
da presunção de evidência. In: Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro, ano 17, n.
19/20, pp. 89-100, 1o e 2o semestres de 2012, p. 94.
4.
Idem, p. 93.
5.
Idem, p. 94.
6.
ZAFFARONI, E. Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Editora Revan,
1991, p. 16.
7.
ZACKSESKI, Cristina. Da prevenção penal à “nova prevenção”. In: Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 8, n. 29, pp. 167-191,
jan./mar. 2000, p. 170.
8.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; et al. Direito Penal Brasileiro - I.
Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 116.
9.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Ob. cit., p. 424.
10.
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro:
Revan, 2004, p. 215.
11.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; et al. Ob. cit., p. 116.
12.
ZAFFARONI, E. Raúl. Ob. cit., p. 19.
13.
Idem, p. 531.
14.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo, et al. Op. cit., p. 99.
15.
Idem, p. 87.
http://www.conjur.com.br/2016-jan-01/encarceramento-brasil-nao-cumpre-funcao-ressocializadora
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