Elaborado nos últimos dias
de 2015, o relatório do Senador Acir Gurgacz (PDT-RO) está destinado a se
transformar no primeiro texto base da política brasileira em 2016. Resposta à
resolução do Tribunal de Contas da União que propõe a rejeição das contas do
governo Dilma em 2014, o documento é uma aula de administração pública,
conhecimento jurídico – e respeito pelas regras do Estado Democrático de
Direito. Também oferece novidades fulminantes contra a decisão do TCU.
Lembrando que qualquer
acusação de irregularidade contra a presidente da República “ deve ser
comprovada, e não presumida”, ele observa na página 67: “apesar de recomendar a
rejeição (das contas), em nenhum momento do TCU especificou o efetivo prejuízo
causado às contas públicas pela conduta presidencial.” Não é uma omissão
qualquer.
Entre as quatro hipóteses
previstas legalmente para a rejeição das contas da presidente, três se referem
a desfalques, desvios e atos de natureza criminal ou pelo menos ilegal. (A
outra hipótese pune o governante que simples deixar de enviar ao Congresso um
relatório sobre suas contas). Ao se mostrar incapaz de definir sequer o “efetivo
prejuízo causado às contas públicas pela gestão presidencial,” o documento do
TCU valoriza uma narrativa que pretende descrever um suposto sistema de desvios
e irregularidades, mas não aponta fatos para justificar o que pretende.
Privilegia a trama, sem apresentar a prova.
Com paciência e detalhamento
– o relatório tem 243 páginas, com gráficos e tabelas que tornam a argumentação
mais compreensível – Gurgacz sustenta que as contas de Dilma em 2014 devem ser
aprovadas “com ressalvas.”
Essa classificação é um
termo técnico, usado para definir uma gestão onde podem ter ocorrido falhas e
deslizes de natureza formal, mas que não causaram prejuízo aos cofres públicos.
Para permitir um debate ponderado sobre as contas, o documento recorda que em
2011 o TCU apontou 25 falhas e deslizes formais, quase o dobro daquilo que se
aponta nas contas de 2014 – e nem por isso concluiu que as contas deveriam ser
rejeitadas, como agora se pretende.
A principal crítica de
Gurgacz envolve a postura do TCU, que acusa de tentar assumir um papel de
protagonista num debate no qual deveria manter-se em função secundária, de
assessoramento do Legislativo, como determina a Constituição. Com essa observação, o senador coloca o
debate no plano correto – da democracia.
Diz que, ao pedir a rejeição
das contas de Dilma, o TCU de extrapola suas atribuições legais, de órgão de
assessoria do Legislativo, fugindo ao espírito da Constituição democrática de
1988. Chega a denunciar, na página 63, uma “quebra de princípios da igualdade e
independência entre os poderes.” Lembra que, não cabe ao TCU julgar um governo
e muito menos fazer recomendações a deputados e senadores, pois seu trabalho é
muito mais modesto, de outra natureza: apenas emitir um “parecer prévio”,
apoiado em fatos objetivos e dados técnicos, sem tentar “influenciar” a decisão
dos parlamentares. Sem demonstrar, em nenhum momento, o mais leve desrespeito
pelo tribunal e sua atividade, empregando, por todo tempo, uma linguagem
adequada, ele recorda, entre outras, uma observação de Marco Aurélio Mello, em
1992, que define o TCU como “simples órgão auxiliar da esfera opinativa.”
As diversas referências à Constituição de 1988 não constituem um
truque retórico. Sem esconder-se atrás de eufemismos que poderiam prejudicar a
clareza do raciocínio, o senador argumenta que com a postura assumida no exame
das contas de 2014 o TCU em 2015 permitiu-se “julgar tudo o que considera
conveniente.”
Diz, por exemplo, que o tribunal
chega a “reinterpretar” as normas internas do Banco Central, num esforço
destinado a contestar a metodologia tradicional da instituição para produzir
suas próprias estatísticas fiscais, num exercício padronizado há décadas, e
aceito internacionalmente.
O texto localiza a origem
desse comportamento de quem ignora fronteiras legais a suas atribuições num
período lamentável de nossa história, no Brasil que vivia sob o AI-5. Lembra
que o TCU foi usado pelo regime dos generais para funcionar como um instrumento
de pressão permanente para enquadrar o Congresso, visto como principal foco de
discórdia e atitudes de contestação que, mesmo limitadas, pretendia-se evitar a
qualquer custo.
Num necessário serviço de
reconstituição da memória histórica, o relatório recorda que, nos primórdios da
Constituinte de 1988, quando os rumos da democratização ainda não estavam
claros, fez-se uma tentativa de assegurar que o TCU mantivesse os poderes
políticos acumulados no período anterior. Esse movimento chegou a prosperar no
início dos trabalhos, como um dos diversos entulhos autoritários – até que,
numa reação compreensível da maioria dos parlamentares, o texto definitivo
assegurou as devidas prerrogativas dos representantes eleitos, aos quais o TCU
deve prestar uma assessoria, limitada a “aspectos meramente formais,” como
ensina o mestre Celso Bandeiro de Mello, uma das vozes mais respeitadas do
direito administrativo brasileiro.
Para sublinhar que o debate
real não envolve problemas de contabilidade, mas opções de política econômica
que dizem respeito ao destino de um país com mais de 200 milhões de habitantes,
a ser resolvido em urnas, pelos eleitores, Gurgacz recorda, na página 8, uma
observação antológica deixada por Aliomar Baleeiro (1905-1978), um parlamentar
da UDN que chegou ao Supremo por indicação de Castello Branco, primeiro
presidente do golpe 64 mas, com o passar dos anos, tornou-se uma referência
liberal na mais alta corte do país.
Em obra clássica sobre
administração pública e sobre o papel dos governantes, Baleeiro observou que é
preciso considerar as mudanças de conjuntura de cada país – e de cada governo –
para entender o ordenamento de despesas e definição de prioridades, o que só
reforça a necessidade de reservar o trabalho de julgar as contas da presidente
da República a um poder político, o Legislativo, e não a um órgão de assessoria
técnica.
“Num país dominado por uma
elite requintada, esta exigirá do governo obras de luxo e de conforto,”
escreveu Baleeiro. Falecido no mesmo ano
em que ocorreram as grandes greves que projetaram a liderança de Luiz Inácio
Lula da Silva no plano nacional, o jurista acrescentou: “se as circunstâncias
mudam, e as massas humildes conseguem a partilha do poder político, as despesas
públicas se dirigirão para a construção de hospitais, maternidades, postos de
puericultura, escolas primárias e outros serviços que de modo geral interessam
ao proletariado.”
É nesse contexto, observa o
senador, que cabe ao Congresso examinar se a presidente “procedeu como devia e,
ainda, como prometeu.”
Pela consistência, o
trabalho, intitulado “Contas Prestadas
pela Excelentíssima Senhora Presidente da República (Exercício 2014)”
representa, no plano político, aquilo que o voto do ministro Luiz Roberto
Barroso, do STF, representou no plano jurídico, ao desmontar, linha por linha,
argumento por argumento, o projeto de Eduardo Cunha, que encaminhava a proposta
de impeachment por uma via rápida, leviana e irresponsável.
Pela qualidade de sua
argumentação, pela importância dos dados que apresenta, é de se imaginar que
possa vir a ter um impacto semelhante entre seus pares, contribuindo para
assegurar uma discussão de bom nível, fundamentada em conhecimento de caso e
dados consolidados.
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/211065/Cad%C3%AA-o-preju%C3%ADzo-pergunta-Gurgacz.htm
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